SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA
Sócios da Confeitaria Armelin são absolvidos porque MP não prova dolo em sonegação de ICMS

Por Jomar Martins (jomar@painelderiscos.com.br)

Embora não se exija dolo específico, apenas genérico, não é possível condenar alguém por tão somente omitir informações em documentos fiscais, sem nenhuma intenção de enganar a fiscalização tributária. Noutras palavras, não basta que os lançamentos fiscais tenham sido incorretos ou indevidos; antes, é preciso provar que o comportamento do denunciado por sonegação configure dolo.

Nesta linha de entendimento, a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) absolveu os sócios-administradores da tradicional Confeitaria Armelin, sediada em Porto Alegre, acusados de sonegar R$ 1 milhão em ICMS – com acréscimos, a dívida foi a R$ 3,3 milhões. Ao contrário do juízo de primeiro grau, o colegiado entendeu que os autos não trouxeram prova de que os empresários estavam utilizando a substituição tributária – da qual não tinham direito –, em prejuízo do fisco, de forma dolosa.

O relator da apelação-crime, desembargador Newton Brasil de Leão, disse que o contador orientou a direção a se valer da substituição tributária, justamente por entender, à época, que a legislação já seria suficientemente clara para a aplicação deste regime tributário. Ele também considerou que os empresários já tinham sido absolvidos pelos mesmos fatos, noutra ação penal, pelo TJ-RS.

Conforme apurou o relator, as infrações tributárias apontadas tanto na ação penal anterior como na deste processo se deram em ‘‘continuidade temporal’; ou seja, os acusados começaram a cometer as irregularidades tributárias à frente da empresa em 1º de abril de 2010 e somente findaram em abril de 2013. E eles só foram avisados das irregularidades, pelo fisco estadual, em 19 de junho de 2013 – data do primeiro auto de lançamento. Em síntese, a atual ação penal era ‘‘continuação’’ da outra.

‘‘Ao órgão ministerial [Ministério Público] incumbe comprovar não só o fato imputado, mas o dolo do autor em ofender o bem jurídico tutelado pela norma, o que não ocorreu, in casu, eis que a prova dos autos, como já dito, comprova tão somente o não-recolhimento em tempo hábil – para o qual devem ser tomadas as medidas extrapenais cabíveis [nas searas administrativa ou cível] –, mas que não são aptas a configurar o crime’’, fulminou no acórdão o desembargador Newton Brasil de Leão, acolhendo a apelação-crime para absolver os empresários.

A denúncia do Ministério Público

No dia 5 de julho de 2018, o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) protocolou denúncia, na 11ª Vara Criminal do Foro Central da Comarca de Porto Alegre, contra José Alex Armelin e Keli Cristina Sangali, sócios-administradores da tradicional Confeitaria Armelin (J. Armelin & Cia Ltda), com sede em Porto Alegre, por sonegação de Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).

Segundo a denúncia, no período compreendido entre maio de 2011 e abril de 2013, ambos omitiram a realização de diversas operações comerciais de saídas de mercadorias, utilizando-se, indevidamente, da substituição tributária na transferência de produtos entre seus estabelecimentos – a empresa tem uma fábrica de doces e salgados em Canoas (região metropolitana) e suas filiais. Em síntese, deixaram de recolher o imposto devido nos produtos de confeitaria, como se estes já tivessem sido tributados anteriormente.

Tal procedimento é vedado legalmente. É que o inciso I do artigo 219 do Regulamento do ICMS do Rio Grande do Sul (RICMS-RS) não prevê a substituição nas transferências de produtos promovidas entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica, exceto se o destinatário for exclusivamente varejista. No caso, como os doces, salgados, pães e cucas, oferecidos à venda direta ao público consumidor, não se encontravam embalados, não podem ser considerados ‘‘industrializados’’.

Conforme o MP, as notas fiscais descreviam a transferência de produtos utilizados em confeitaria, tais como ‘‘parte torta’’ e outros da mesma natureza, como ‘‘salgadinhos diversos’’, todos ao abrigo da substituição tributária. Os réus adotavam, portanto, uma substituição tributária ‘‘imprópria’’ (ilegal) para efetuar as transferências dos produtos e, ainda, em valores menores ao efetivamente praticados, deixando de recolher o imposto devido por ocasião da venda. Este modus operandi gerou sonegação fiscal e créditos de ICMS para o estabelecimento filial.

Segundo apurou o Controle da Dívida Ativa da Secretaria da Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul (Sefaz-RS), os denunciados sonegaram R$ 955,7 mil de ICMS. Este valor, com os acréscimos legais computados até 1º de junho de 2018, alcançou a cifra de R$ 3,3 milhões.

Por reiterarem nesta conduta, os sócios foram denunciados por ‘‘omissão de saída’’ de mercadorias, crime contra a ordem tributária capitulado no artigo 1°, inciso II, da Lei 8.137/90 – ‘‘fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal’’. O dispositivo foi combinado com o artigo 71 do Código Penal (CP), por se constituir em ‘‘crime continuado’’, já que houve vários registros de sonegação entre maio de 2011 e abril de 2013.  A pena de reclusão, de dois a cinco anos, poderá ser aumentada de um sexto a dois terços.

Citados pela Justiça, os denunciados se defenderam. Preliminarmente, informaram que já estavam respondendo pelos mesmos fatos noutra ação penal. No mérito, alegaram ausência de dolo, esclarecendo que a filial de Canoas foi construída e idealizada para centralizar a operação industrial, já que a matriz da Confeitaria, situada em Porto Alegre, não suportava toda a demanda produtiva de suas vendas. A ideia era concentrar 100% da produção em Canoas, transferindo os produtos para a sede de Porto Alegre, que atuaria exclusivamente como varejista.

Condenação no primeiro grau

O juízo da 11ª Vara Criminal  da Capital gaúcha condenou os denunciados nos exatos  termos da denúncia do MP, por entender que ambos realizavam substituição tributária ilegal e recolhiam o imposto sobre a base de cálculo muito inferior à efetivamente praticada.

Ao fundamentar a sua decisão na sentença, a juíza Cristina Lohmann valorizou o depoimento de uma das testemunhas de acusação arroladas pelo MP-RS, o auditor fiscal Tércio Fernando Michelon, que participou dos dois autos-de-lançamento referidos no processo. Ele disse que, embora a empresa se classificasse como uma ‘‘indústria’’, o que havia era apenas o fornecimento de alimentos por duas confeitarias. Simplificando: tratava-se, apenas, de transferência de matéria-prima (ingredientes) entre matriz e filial. Logo, como ambas as lojas fabricavam e vendiam os alimentos, a empresa não poderia se valer do regime de substituição tributária.

Segundo a juíza, por mais que a matriz fosse exclusivamente varejista, a filial localizada em Canoas não poderia ser considerada indústria em razão do objeto da empresa, requisito para aplicar o inciso I do artigo 219 do RICMS. Além disso, de acordo com a Solução de Consulta 341, de 26 de setembro de 2007, ‘‘não se considera industrialização o preparo, em padaria, confeitaria e pastelaria, de produtos alimentares não acondicionados em embalagens de apresentação, desde que vendidos diretamente ao consumidor final’’.

Assim, a J. Armelin & Cia Ltda não poderia utilizar-se do regime de substituição tributária. As transferências de produção própria com substituição tributária foram realizadas, portanto, de modo ilegal, ignorando e desprezando o regramento jurídico-tributário vigente. ‘‘Ainda que tal tenha sido orientado pelos contadores da empresa, o fato é que a persistência da utilização da substituição tributária caracterizou o delito ora denunciado, pelo qual merecem condenação os demandados, já que evidenciado o dolo’’, concluiu.

Com a procedência da ação, os réus foram condenados à pena de dois anos e quatro meses de reclusão mais multa. Na dosimetria, a pena de prisão acabou substituída por prestação de serviços comunitários, à razão de uma hora por dia de condenação; e multa equivalente a 10 salários mínimos, em benefício de instituição indicada pelo juízo.

Clique aqui para ler a sentença

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001/2.18.0052216-7 (Porto Alegre)

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