RECRUTAMENTO DISCRIMINATÓRIO
Rede de farmácias vai pagar dano moral por orientar gestora a não contratar obesos, tatuados e homossexuais

A veiculação de orientação discriminatória por superior hierárquico em grupo de WhatsApp corporativo, determinando critérios estéticos e de identidade pessoal na seleção de candidatos, configura ato ilícito que viola o princípio da igualdade e da não discriminação, conforme os artigos 3º, inciso IV, e 5º, caput, da Constituição Federal, além de dispositivos da CLT e da Lei nº 9.029/1995.

A ementa do acórdão lavrado pela 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4, Rio Grande do Sul) sintetiza à perfeição o fundamento empregado pela Corte para confirmar sentença do Posto da Justiça do Trabalho de Tramandaí que condenou a rede de farmácias São João a pagar R$ 10 mil de danos morais a uma de suas 40 gestoras. Motivo: ela foi orientada, pela coordenadora regional, a contratar, preferencialmente, ‘‘pessoas bonitas’’, evitando candidatos acima do peso, tatuados, com piercings e homossexuais.

Em outubro de 2021, os áudios enviados pela coordenadora regional tiveram grande repercussão nas redes sociais. O fato foi, inclusive, objeto de inquérito civil do Ministério Público do Trabalho (MPT-RS). Nas gravações, a coordenadora orientava os gestores a terem cuidado com a aparência e orientação sexual dos candidatos selecionados.

O áudio tornado público continha trechos como: ‘‘Se contratarmos alguém, que seja, com todo respeito, alguém ‘veado’ e tudo mais, deve ser uma pessoa alinhada, que não tenha trejeitos exagerados’’ e ‘‘Não esqueçam: feio e bonito, a gente paga o mesmo preço, por isso, conto com vocês! Vamos preferir os bonitos. Afinal, não somos bobos’’.

Em defesa, a empresa afirmou que a orientação foi um caso isolado, não representando os valores da instituição. Atestou, ainda, que logo após o episódio, foi instaurada uma sindicância que resultou na dispensa da coordenadora. Apresentou cartilhas sobre respeito e diversidade, criadas após o episódio, e uma nota pública divulgada à época.

A partir dos depoimentos das testemunhas e demais provas anexadas no processo, a juíza do trabalho Marinês Denkievicz Tedesco Fraga concluiu que a coordenadora excedeu o poder diretivo, expondo a autora da ação reclamatória à determinações de práticas ilegais.

‘‘É certo que as orientações repassadas ao grupo de gestores, do qual fazia parte a reclamante, configuram exigências discriminatórias, vedadas por lei, passíveis, inclusive, de rescisão indireta, conforme preceito do artigo 483, inciso I, da CLT, o que, todavia, não se discute nos autos’’, ressaltou a magistrada de origem.

A juíza ainda destacou a necessidade da preservação da saúde física e mental dos trabalhadores, trazendo o exemplo da CIPA, que, em 2022, passou a ser denominada Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e de Assédio.

Desa. Ana Luiza Heineck Kruse foi a relatora
Foto: Secom/TRT-4

A gestora recorreu ao TRT-RS para aumentar o valor da indenização. A empresa, por sua vez, para afastar a condenação e, não havendo a reforma, para alterar critérios relacionados à correção monetária e juros. Apenas o segundo pedido foi acolhido pelos desembargadores.

Para a relatora do acórdão, desembargadora Ana Luiza Heineck Kruse, a orientação discriminatória infringiu os artigos 3º, inciso IV (que prevê a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e outras formas de discriminação), e 5º, caput (igualdade de todos), da Constituição, além de não ter sido observado o dever do empregador de garantir um ambiente de trabalho seguro (artigo 157 da CLT).

A magistrada apontou, ainda, a violação da Lei 9.029/199, que proíbe práticas discriminatórias nos processos seletivos e na manutenção do trabalho, salientando que o empregador responde objetivamente pelos atos dos seus prepostos, nos termos do artigo 932, inciso III, do Código Civil.

‘‘A responsabilidade da reclamada também se fundamenta na sua omissão em evitar situações dessa natureza. Embora tenha adotado medidas punitivas após a divulgação do áudio, não há nos autos evidências de que tenham sido implementadas políticas eficazes de prevenção anteriormente ao ocorrido. Não se verifica, ainda, nenhuma resposta ou orientação específica para os gestores que foram destinatários e também vítimas da mensagem, porquanto o teor discriminatório atinge igualmente quaisquer dos gestores que tiverem identidade com os grupos discriminados pela coordenadora’’, concluiu a desembargadora.

Também participaram do julgamento os desembargadores João Paulo Lucena e André Reverbel Fernandes. Não houve recurso da decisão.

Danos morais coletivos

A empresa Comércio de Medicamentos Brair Ltda., razão social das Farmácias São João, uma das maiores redes do setor farmacêutico no Estado, firmou, em 2022, um acordo judicial com o Ministério Público do Trabalho no Rio Grande do Sul (MPT-RS) em Passo Fundo para frear a escalada de casos de assédio moral e de dispensa discriminatória. Como coroamento do acordo, a empresa aceitou pagar R$ 1 milhão a título de danos morais coletivos, face à enxurrada de denúncias de assédio.

O acordo foi firmado no âmbito de uma ação civil pública (ACP), ajuizada pelo MPT gaúcho, que tramitava na 3ª Vara do Trabalho de Passo Fundo, sendo homologado pelo juiz do trabalho Marcelo Caon Pereira.

O procedimento no âmbito do MPT-RS foi aberto após denúncias realizadas tanto por ex-funcionários como pelo Sindicato dos Empregados no Comércio de Passo Fundo. Ao longo das investigações realizadas para apurar as denúncias, a instituição ouviu formalmente 34 empregados e ex-empregados da rede em Passo Fundo.

Na esfera judicial, o MPT-RS alegou a existência de inúmeras situações de assédio moral no ambiente de trabalho da empresa, como humilhações, xingamentos e deboches com empregados, existência de tratamento preconceituoso em razão de cor de pele e classe social, piadas de cunho sexual, dispensa discriminatória de trabalhadores que retornavam de auxílio-doença, entre outras violações de direitos.

Redação Painel de Riscos com informações de Sâmia de Christo Garcia, da Secretaria de Comunicação Social (Secom) do TRT-4, e da Assessoria de Comunicação Social (Ascom) do MPT-RS.

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ATOrd 0020389-30.2023.5.04.027 (Tramandaí-RS)