BLINDAGEM TRIBUTÁRIA
Reflexões sobre o risco oculto para proprietários de terras em parceria rural

Reprodução Blog Aegro

Por Eduardo Lima Porto

Dando sequência à série de artigos sobre recuperação judicial (RJ) no setor agropecuário – o primeiro abordou a inviabilidade dos pedidos feitos por arrendatários rurais com 70% da área cultivada –, o foco, agora, será sobre os riscos enfrentados pelos proprietários de terras que firmam contratos de parceria rural.

O avanço das RJs no agro tem exposto fragilidades contratuais e operacionais que impactam não apenas produtores e financiadores diretamente envolvidos, mas também terceiros que, à primeira vista, não estariam sujeitos aos riscos da insolvência.

Embora o contrato de parceria rural se diferencie formalmente do contrato de arrendamento, sobretudo em termos tributários e de divisão de riscos, na prática, a Receita Federal e diversos credores têm contestado essa distinção. A acusação central é de que muitos desses contratos mascaram verdadeiros arrendamentos, com finalidade de elisão fiscal ou, em situações mais graves, uso do arrendatário como interposta pessoa (laranja).

Riscos jurídicos para o proprietário: solidariedade e confusão patrimonial

O Estatuto da Terra (Lei 4.504/64) e o Decreto nº 59.566/66 definem a parceria rural como um contrato associativo, no qual parceiro-outorgante (proprietário) e parceiro-outorgado (explorador) compartilham os riscos do empreendimento.

Contudo, essa solidariedade intrínseca ao negócio pode gerar interpretações gravosas no contexto de recuperações judiciais, especialmente quando os credores alegam:

*    existência de confusão patrimonial entre outorgante e outorgado;

*     obtenção de vantagens indevidas por parte do proprietário, em razão de simulação contratual;

*      participação direta ou indireta na gestão operacional ou financeira da atividade rural.

Diante desse quadro, é juridicamente possível que credores tentem incluir o proprietário como corresponsável, ou até mesmo como coobrigado solidário pelas dívidas da massa em recuperação, principalmente em contratos atípicos ou redigidos de forma deficiente.

A gravidade do tema foi escancarada na ‘‘Operação Declara Grão’’, conduzida pela Receita Federal, que revelou distorções estruturais no uso da parceria rural.

Vários produtores foram autuados por contratos de parceria que, na prática, eram arrendamentos disfarçados, redigidos unicamente para evitar a tributação da renda do proprietário da terra.

Segundo os relatórios da Receita, foram identificadas discrepâncias entre os valores declarados como receitas de parceria (isentas) e os valores efetivamente pagos por operadores agrícolas, que atuavam, de fato, como arrendatários típicos.

Em muitos desses contratos, o proprietário não participava de decisões operacionais, nem assumia riscos de produção ou de mercado. Essas características contrariam frontalmente a definição legal da parceria rural.

O recado da Receita Federal foi direto: ‘‘Se o proprietário não compartilha os riscos, trata-se de renda de aluguel, tributável na forma da legislação aplicável’’.

Esse entendimento fiscal pode repercutir nas esferas civil e comercial. Se a Receita pode desconsiderar a forma contratual para fins de tributação, por que o Judiciário não poderia fazer o mesmo para atribuir responsabilidade solidária em uma recuperação judicial ou falência?

Por coerência jurídica e bom senso, não se pode gozar dos benefícios da parceria rural (isenção tributária) e, ao mesmo tempo, rejeitar seus ônus naturais (solidariedade e riscos do negócio) quando surgem adversidades.

Isso contraria o brocado latino Venire contra factum proprium (em português, ‘‘vir contra seus próprios atos’’). É um princípio jurídico que veda comportamentos contraditórios ou surpreendentes que causem prejuízo à confiança recíproca entre as partes envolvidas em uma relação jurídica, como um contrato. Noutras palavras, não se pode adotar determinada postura jurídica para obter vantagem e depois negá-la quando ela se torna desfavorável.

Assim, se o proprietário se apresenta como parceiro para fins fiscais, deve estar ciente de que poderá ser interpretado como corresponsável pelas obrigações da atividade rural, inclusive, e especialmente, diante de credores em uma RJ.

A armadilha dos arranjos mal estruturados

O que se observa, na prática, é o uso da estrutura de parceria rural como blindagem tributária, sem o devido alinhamento com a realidade operacional. A consequência tem sido a exposição crescente de proprietários a riscos jurídicos e patrimoniais não previstos, incluindo: autuações fiscais retroativas; e cobranças judiciais movidas por credores, fornecedores ou trabalhadores do parceiro-outorgado.

Assim, a pancada é dupla:

  1. para o proprietário: a ‘‘economia tributária’’ pode custar caro se a estrutura contratual for frágil, expondo-o à responsabilização pelas dívidas do parceiro;
  2. para o Judiciário: a coerência entre os achados da Receita e a percepção dos credores impõe uma revisão do tratamento das simulações contratuais. A dissociação entre as esferas fiscal e civil cria incentivos à simulação.

Com a insolvência do parceiro rural, o proprietário da terra pode enfrentar consequências severas:

  1. suspensão no recebimento da renda contratada;
  2. inadimplemento de obrigações ambientais ou trabalhistas, cuja omissão pode gerar responsabilização subsidiária;
  3. degradação física da propriedade: esgotamento do solo, compactação, perdas estruturais; e
  4. ações de massa promovidas por credores, buscando responsabilização solidária.

Considerações Finais

A era da passividade contratual precisa acabar. A visão de que o proprietário pode simplesmente ‘‘alugar’’ sua terra e aguardar os frutos, sem avaliar os riscos do parceiro, é cada vez mais insustentável e também inaceitável.

Terras não são imóveis urbanos. São ativos complexos, que demandam compreensão técnica em Agronomia, Finanças, Contabilidade e gestão de risco. Poucos proprietários contam com assessorias multidisciplinares capazes de compreender e orientar de forma consistente sobre esses aspectos.

Se o proprietário não domina os riscos envolvidos na cessão da posse produtiva, o mais prudente é vender o ativo e aplicar o capital em instrumentos financeiros de baixo risco, que hoje oferecem retorno líquido superior à média da renda obtida com o arrendamento informal de terras, com muito menos dor de cabeça.

AVISO:

Este artigo expressa minha opinião. Não sou advogado. Não pretendo influenciar decisões de qualquer natureza, mas contribuir com uma reflexão sobre o momento que o setor agropecuário está atravessando.

Eduardo Lima Porto é diretor da LucrodoAgro Consultoria Agroeconômica