DISCRIMINAÇÃO RACIAL
Agente da EPTC chamado de ‘‘negão’’ em reunião vai ganhar um salário de dano moral

O trabalhador tem nome. A menos que se comprove que ele se apresenta com este apelido, ou assim se identifica socialmente, o uso da expressão ‘‘negão’’ como vocativo é discriminação racial.

A decisão é da Sexta Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) ao condenar a Empresa Pública de Transporte e Circulação S.A. (EPTC), de Porto Alegre, a indenizar um agente de fiscalização de trânsito chamado de “negão” pelo superior hierárquico durante reunião de trabalho. Ele vai receber um salário como compensação pelo dano moral, presumido, resultante da discriminação.

Assédio moral

Na reclamatória trabalhista, o agente de trânsito disse que esse chefe pressionava toda a equipe para aumentar o número de multas aplicadas aos condutores de veículos de Porto Alegre. Para atingir esse objetivo, ele relatou que o gerente de fiscalização de trânsito cometia assédio moral de modo sistemático, e foi nesse contexto que, segundo ele, se deu a discriminação.

Gravação de reuniões

Para comprovar as alegações de assédio moral e tratamento preconceituoso, o agente de trânsito gravou o áudio de algumas reuniões na empresa, e, em uma delas, o gerente se refere a ele como ‘‘negão’’. O empregado público disse que levou esse fato ao conhecimento da empresa, mas a situação teria sido relativizada pela diretoria como ‘‘mera impropriedade vocabular’’.

Segundo ele, as gravações eram provas inequívocas de que recebia tratamento diferenciado, ameaçador e humilhante diante dos demais colegas. ‘‘As palavras falam por si’’, argumentou na inicial.

‘‘Tratamento informal’’

O agente também juntou ao processo vídeos em que o gerente, ao se defender numa ação civil pública (ACP) relativa às cobranças, sustenta que se trata de ‘‘vício de linguagem’’ e de ‘‘forma de tratamento informal corriqueira’’ na empresa. Entretanto, o empregado observou que, durante 1h40min gravados de reunião com o plantão, o tratamento ‘‘negão’’ é direcionado apenas a ele.

Sem intenção de ofender

Ao indeferir o pedido de indenização, a juíza da 17ª Vara do Trabalho de Porto Alegre entendeu que o chefe, ao usar a palavra ‘‘negão’’ no contexto do áudio, não teve a intenção de ofender o agente de trânsito em razão de sua raça. Para ela, o uso do termo teve um caráter apenas vocativo, até mesmo porque não era acompanhado de adjetivos que pudessem dar uma conotação pejorativa.

‘‘Uma infeliz colocação’’

O Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4, Rio Grande do Sul) teve o mesmo entendimento da magistrada de primeira instância. Segundo o voto prevalecente, a conduta do chefe não passou de ‘‘uma infeliz colocação’’, e a expressão fora utilizada como vocativo, que poderia ser substituído sem alterar o sentido do discurso.

Vocativo racial 

Ministra Kátia Arruda foi a relatora
Foto: Secom/TST

Para a relatora do recurso do agente ao TST, ministra Kátia Arruda, a utilização de vocativos (termos de chamamento) relacionados à cor da pele é, em regra, associado à cor de pele preta.

‘‘Não é usual na sociedade brasileira a utilização de vocativos relacionados à pele branca, de modo que não há como falar que limitar um trabalhador, no seu ambiente profissional, à cor da sua pele – retirando-lhe sua identidade como indivíduo único – não configura discriminação racial’’, ressaltou.

A partir da transcrição do áudio, a ministra concluiu que o termo não foi empregado em um contexto em que o próprio trabalhador se identificasse com ela, ‘‘mas de modo grosseiro’’.

Racismo recreativo

Segundo a ministra, o racismo, muitas vezes – como no caso do racismo recreativo – se camufla de humor ou de vocativo e acaba sendo relativizado pela sociedade. ‘‘Não é porque se trata de prática comum que é uma atitude correta e despida de preconceitos’’, explicou.

‘‘A discriminação racial – independentemente da intenção de quem a pratica ou de sua consciência acerca da configuração da ação como discriminatória – é agressão grave, que fere direitos de personalidade e causa dano moral presumido.’’

Visão estruturalmente violenta

A relatora citou ainda em seu voto um precedente da Terceira Turma do TST em que outro empregado também havia sido chamado de ‘‘negão’’. Naquele caso, os ministros entenderam que ‘‘não há espaço para o que o Judiciário trabalhista chancele uma visão estruturalmente violenta e excludente’’.

Por unanimidade, a Turma condenou a empresa ao pagamento de indenização no valor de um salário do agente de trânsito. Com informações de Bruno Vilar e Carmem Feijó, da Secretaria de Comunicação (Secom) do TST.

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RR-20658-94.2019.5.04.0017