PATRÃO DIGITAL
TRT-SP reconhece vínculo empregatício entre entregador motorizado e IFood
Por Jomar Martins (jomar@painelderiscos.com.br)
O parágrafo único do artigo 6º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) é claro: os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.
Assim, a Justiça do Trabalho no Estado de São Paulo, nas suas duas instâncias, reconheceu o vínculo empregatício entre um entregador de comida pronta e a IFood.Com Agência de Restaurantes Online S. A. e a IFood Benefícios e Serviços Ltda., em face do preenchimento dos requisitos do artigo 3º da CLT: subordinação jurídica, pessoalidade, onerosidade e não eventualidade – ou seja, trabalho contínuo. O reclamante fez entregas de motocicleta no período de maio de 2021 a maio de 2024.
Para o juiz Maurício Pereira Simões, titular da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo, a empresa reclamada – via plataforma digital – praticava a ‘‘subordinação algorítmica’’. Afinal, a IFood: decide quem pode trabalhar na sua plataforma; impõe as regras; controla em tempo integral as atividades dos motoristas; conhece tudo, e de forma ampla e irrestrita, o que é feito pelo entregador (como e quando é feito, individualmente em relação a cada entregador); tem amplo poder fiscalizatório da atividade dos entregadores; e tem o poder de punir os entregadores – de forma média, com restrição de chamadas, bloqueios unilaterais temporários, e de forma máxima, extrema, mediante bloqueio definitivo.
Comando impessoal e tecnológico
Na visão do julgador, a tecnologia exerce as funções que o antigo chefe (líder, supervisor, gerente) fazia de forma direta e pessoalizada no passado. A plataforma exerce este comando por meio de um aplicativo, em que as regras que nele constam são definidas pela empresa, com a diferença que, ao invés de o trato ser direto e pessoal, é indireto e tecnológico – mas continua a ser nos mesmos moldes de antes, pois há determinações do empregador.
‘‘Há uma dupla disruptividade, portanto, a da Ré com os clientes, o que a mantém enquadrada em atividade típica de intermediária entre estabelecimentos e clientes; e a da Ré com os entregadores, que a mantém na condição de parte subordinante da relação contratual. Em decorrência da presença simultânea de todos os elementos fáticos e jurídicos da relação de emprego, é imperioso o seu reconhecimento’’, anotou na sentença, acolhendo a pretensão trabalhador neste aspecto.
No segundo grau, o entendimento foi seguido pela maioria dos integrantes da 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2, São Paulo). ‘‘De fato, se as plataformas digitais se limitassem à venda de aplicativos para os trabalhadores e consumidores, sem participação posterior pelo uso ou organização dos serviços e atividades, poderíamos afirmar que seriam apenas empresas de tecnologia; no entanto, não é o que ocorre na realidade’’, escreveu no acórdão a relatora que negou provimento ao recurso ordinário da empresa, desembargadora Eliane Pedroso.
Entregador não tem autonomia nem independência
Para a relatora, a evolução do conceito de subordinação torna falha a tese da defesa de que o trabalhador é totalmente autônomo e independente, que pode escolher quando e de que modo trabalhar. A realidade mostra o contrário: ele se submete a longas e extenuantes jornadas de trabalho, ganhando por entrega, dentro das regras impostas pela plataforma. Daí, se presume que o baixo valor da remuneração pelas entregas conduz à permanência do trabalhador por longas horas conectado à plataforma.
‘‘E esse é um indício forte da subordinação jurídica, posto que o obreiro se sujeita a trabalhar com o que lhe é oferecido, entregue aos padrões estabelecidos pela empresa, cuja fiscalização ocorre por meio da avaliação (feedback) dos clientes, os quais avaliam o serviço prestado pelo entregador, por meio de notas e comentários lançados no aplicativo, e por meio do uso de dispositivo disciplinar, tendo em vista que, ocorrendo avaliação negativa dos clientes, o aplicativo pode promover o bloqueio do trabalhador’’, complementou.
Em fecho, a relatora frisou que a única liberdade de que dispõe o trabalhador é acessar o aplicativo e aceitar ou não as propostas e, ainda nestes casos, sujeito ao horário de disponibilidade do sistema e ciente de que, a partir do aceite da proposta, deverá seguir todos os parâmetros definidos pela empresa previamente estabelecidos. E mais: o entregador não possui qualquer ingerência sobre o valor do próprio trabalho. É o aplicativo que precifica o valor do frete, restando ao trabalhador sujeitar-se à proposta que aparece em sua tela de celular.
Voto divergente
Neste julgamento, ficou vencida a posição da juíza do trabalho convocada na 1ª Turma do TRT-2, Elza Eiko Mizuno, que apresentou voto divergente. Ela disse que a justiça não pode ficar alheia às novas tecnologias e formas modernas de prestação de serviço, que se dão de forma distinta da relação de emprego clássica.
A seu ver, o entregador do IFood pode definir os dias e os horários nos quais se ativa na plataforma digital, inclusive se manter desconectado em determinados períodos, sem necessidade de prévia anuência por parte da reclamada, ou mesmo de comunicação nesse sentido. Ou seja, não há quantidade mínima de entregas a serem realizadas, nem carga horária mínima de prestação de serviços.
‘‘De igual modo, a possibilidade de descredenciamento do entregador que não atenda às referidas diretrizes e recomendações não comprova a existência de subordinação, por si só, pois, para qualquer modalidade de prestação de serviços, é comum e esperada a exigência de padrões mínimos, ainda que utilizados meios telemáticos de comando, controle e supervisão, na forma sustentada pelo recorrente’’, encerrou no voto vencido, citando precedentes do Tribunal Superior do Trabalho (TST).
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ATOrd 1001799-33.2024.5.02.0004 (São Paulo)
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