Por Jomar Martins (jomar@painelderiscos.com.br)
Se a norma que embasa a aplicação de multa, pela administração fiscal, é passível de mais de uma interpretação, o contribuinte deve ser contemplado com a que lhe for mais favorável. Foi o que decidiu a 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), confirmando sentença favorável a um grande grupo empresarial gaúcho, numa queda-de-braço com a Fazenda Nacional.
A decisão do colegiado, na prática, acabou transformando em pó uma multa aplicada pela Receita Federal – por não homologação de compensação de crédito de IPI – no estratosférico valor de R$ 16 milhões.
Segundo destacou o acórdão, a norma legal invocada pelo fisco federal para sustentar a aplicação da multa isolada é a contida no artigo 18 da Lei 10.833/2003, especialmente quanto à locução presente no caput : ‘‘não ser passível de compensação por expressa disposição legal’’.
O conteúdo do dispositivo invocado, no entanto, abre a possibilidade de dupla interpretação, segundo os julgadores. Ou seja, a norma pode se referir tanto à vedação a qualquer tempo, circunstância em que se teria a conduta ilícita de compensar o que não pode ser compensado; como à vedação momentânea, circunstância em que a compensação autorizada pelo ordenamento terá momento oportuno para ser realizada.
‘‘No caso deste processo, sob o ponto de vista da primeira interpretação, ao contribuinte é lícito entender que o direito declarado em ação judicial poderia ser compensado de pronto, uma vez que essa sua intenção de compensar – com amparo judicial – não era ilícita. Dado que o art. 170-A do CTN revela sua natureza de norma imperfeita (segundo a doutrina, imperfeita é a norma que não comina sanção), eventual violação dos seus preceitos não acarretaria sanções administrativas. Sob esse ângulo, a aplicação da multa não deve ser admitida’’, cravou no acórdão o relator da apelação, juiz federal convocado Marcelo De Nardi.
Mandado de segurança
Josapar Joaquim Oliveira S.A. Participações impetrou mandado de segurança (MS) contra ato do delegado da Receita Federal em Porto Alegre com o objetivo de anular auto-de-infração que desaguou em multa administrativa no valor de R$ 16,4 milhões. A empresa foi multada por se valer da compensação antecipada de créditos escriturados de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), apurados nas aquisições de insumos. Por este detalhe, a compensação não foi homologada na Receita.
Na inicial, a autora disse que se valeu da compensação porque conseguiu obter na Justiça a declaração de inconstitucionalidade/ilegalidade do artigo100, inciso I, letra ‘a’, do Decreto 87.981/82, e do artigo 174, inciso I, letra ‘a’, do Decreto 2.637/98 – ambos os dispositivos vedam o creditamento de IPI nas aquisições de insumos tributados empregados na fabricação de produtos industrializados com saída não tributada. A ação ordinária (2001.71.10.003358-9) foi julgada improcedente no primeiro grau, mas reformada no segundo grau.
Informou que o acórdão de apelação reconheceu o seu direito ao creditamento limitado ao período prescricional de cinco anos anteriores ao ajuizamento da ação, e sua atualização pela taxa Selic. Esse acórdão foi publicado em 9 de abril de 2003 e, a partir dali, passou a escriturar os créditos. Ou seja, estava amparada por autorização judicial concedida pelo TRF da 4ª Região, que excepcionava o artigo 170-A do Código Tributário Nacional (CTN) para permitir a utilização imediata desses créditos.
Multa isolada para não-homologação de compensação
Com isso, historiou, entre 15 de abril e 15 de julho de 2002, formalizou Declarações de Compensação de débitos de PIS e da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) no valor de R$ 9,9 milhões, valendo-se dos créditos assegurados na via judicial. A decisão judicial favorável a seu pedido transitou em julgado em 29 de agosto de 2013 (AI 50226839820174040000).
A autora alegou no MS que o auto-de-infração que aplicou a multa invocou como fundamento o artigo 18 da Lei 10.833/2003 (que alterou a legislação tributária federal). Entretanto, o dispositivo prevê a aplicação da multa isolada para não-homologação de compensação apenas quando restar caracterizada a prática de infrações determinadas – o que não é o caso dos autos.
Por fim, sustentou que as decisões administrativas da Receita mantiveram a multa, valendo-se da redação atual desse artigo 18, trazida pela Lei 11.051/2004 (que dispõe sobre o desconto de crédito na apuração da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL e da Contribuição para o PIS/Pasep e Cofins não cumulativa). Portanto, posterior aos fatos. Referiu que a redação atual do dispositivo é dada pela Lei 11.488/2007, que prevê multa apenas para a hipótese de a compensação ser considerada não-declarada.
Segurança concedida
Ao analisar minuciosamente o caso, o juízo da 14ª Vara Federal de Porto Alegre decidiu atender ao pedido da autora, concedendo a segurança. Na fundamentação, o juiz federal Tiago Scherer observou, de início, que, apesar da vitória no TRF-4, a parte autora preencheu as declarações de compensação de crédito tributário sem o trânsito em julgado da ação – e este fato foi destacado no processo administrativo que gerou a multa.
‘‘Como visto, a não homologação [das compensações de crédito, por parte da Receita Federal] não decorreu da constatação de inexistência do crédito em si, mas do fato deste ser originado de decisão ainda não transitada em julgado. Nesses termos, não se discute sobre a existência ou suficiência dos créditos de IPI invocados pela contribuinte em suas compensações, mas apenas a respeito da legalidade do procedimento compensatório não homologado pelo Fisco’’, elucidou o julgador.
O juiz afirmou que a multa estava sendo aplicada a um contribuinte que detinha o direito ao crédito, exercendo-o, no entanto, antes do momento apropriado. Não se trata de não recolhimento ou de sonegação, mas da invocação de crédito, para compensação, antes de preenchido o requisito do trânsito em julgado da decisão que o concedeu. Para o julgador, embora o contribuinte tenha se precipitado na compensação do crédito, tal seguramente se deu por acreditar, mesmo equivocadamente, que isso lhe era permitido por ordem judicial já existente, mesmo sem trânsito em julgado.
‘‘Realmente, esta situação não tem qualquer evidência de abuso por parte do contribuinte, que, frise-se, não causou qualquer prejuízo material à Fazenda. Essas circunstâncias, aliadas ao vultoso valor que a multa atinge, deixam claro que a penalização da impetrante não atende a qualquer finalidade educativa nem repressora, mas gera, isto sim, enriquecimento indevido do ente público’’, concluiu Scherer.
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MS 5016858-19.2017.4.04.7100/RS
Jomar Martins é editor da revista eletrônica PAINEL DE RISCOS