Não é razoável retirar um bem essencial e fundamental do consumidor em face de uma dívida civil. Em caso de inadimplemento, o credor tem se valer dos instrumentos jurídicos compatíveis com a natureza da dívida assumida.
Assim, a 23ª Vara Cível de Brasília manteve decisão liminar que condenou as empresas Supersim Análise de Dados e Correspondente Bancário Ltda. e Socinal S.A. Crédito, Financiamento e Investimento a não mais firmarem contratos de empréstimo com cláusula que exija como garantia o celular do consumidor e o bloqueio de suas funcionalidades, em caso de inadimplemento ou mora.
Ação civil pública
A ação civil pública foi proposta pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) e pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC).
De acordo com os autores, as rés oferecem empréstimos e utilizam o celular do cliente como garantia. Afirmam que, ao assinar o contrato, o consumidor é forçado a instalar aplicativo que, em caso de inadimplência, bloqueia praticamente todas as funções do celular. Segundo o MPDFT, a prática é denominada kill switch e, conforme parecer da Anatel, conduta não autorizada pela agência e sem regulamentação sobre o tema.
Inadimplente tem o celular praticamente bloqueado
Contam que o aparelho serve como meio coercitivo para constranger o consumidor ao pagamento da parcela em atraso, de forma a suprir os meios executório admitidos pela legislação. Informam, ainda, que não existe registro da empresa Supersim no Banco Central, tampouco autorização da Anatel para bloqueio do telefone. Apontam também: abusividade da prática perante o Código de Defesa do Consumidor (CDC); violação aos direitos fundamentais fruídos via internet e ao Marco Civil da Internet; elevadas taxas de juros e indução do consumidor ao superendividamento; violação ao direito à informação e à boa-fé objetiva; e publicidade enganosa.
A defesa das empresas de crédito
Por sua vez, as rés afirmam que a ação civil pública foi proposta sem a apresentação de qualquer reclamação de consumidor que a fundamentasse, o que significa que não há interesse coletivo a ser defendido. Alegam que são devidamente cadastradas no Banco Central para exercício da atividade financeira e que Anatel reconheceu que o bloqueio de determinadas funções do aparelho celular não envolve o bloqueio de serviços de telecomunicações e, consequentemente, não depende de sua autorização ou regulamentação.
As rés também argumentam que não há violação ao Marco Civil da Internet e que a Supersim não é um provedor de acesso à internet, mas um correspondente bancário. Afirmam que não há vedação legal para concessão de empréstimo mediante a garantia de aparelho celular.
Por fim, reforçam que praticam taxas de juros compatíveis com o mercado e não contribuem para o superendividamento. Assim, consideram que está ocorrendo interferência estatal indevida na atividade das empresas e não há danos morais coletivos no caso.
Prática comercial abusiva, diz sentença
De acordo com a sentença, o aplicativo instalado no celular do consumidor concede à instituição financeira a permissão de administrador do aparelho, de modo que possibilita que as rés bloqueiem as funcionalidades do bem em caso de inadimplência. Resta aos inadimplentes utilizar os smartphones apenas para acessar configurações, contatar serviços de emergência e de assistência ao cliente.
‘‘Percebe-se que o celular não é utilizado como garantia, mas sim como forma de coerção/constrição para forçar o consumidor a pagar a dívida. Como já destacado na decisão que deferiu a tutela de urgência, essa prática comercial se mostra abusiva, pois impede o acesso dos consumidores às funcionalidades do aparelho celular, e, consequentemente, a bens e serviços sem relação com o empréstimo financeiro, aproveitando-se da vulnerabilidade dos consumidores’’, observou a juíza Ana Letícia Martins Santini.
A juíza destacou trecho da decisão de recurso sobre o tema, em que o desembargador Héctor Valverde registra que o público-alvo da atuação conjunta da Socinal S.A. e da Supersim são os autônomos com faixa de renda entre um e dois salários mínimos, bem como os inscritos em cadastros negativos, consumidores que ostentam a qualidade de hipervulneráveis.
‘‘Para além da abusividade, a garantia imposta pelas rés não possui qualquer previsão legal, como as instituídas pelo Código Civil ou nos casos de alienação fiduciária (Decreto-lei 911/1969 e Lei 9.514/1997). […] as rés privam o consumidor de um bem essencial sem a observância do devido processo legal’’, finalizou na sentença. Com informações da Assessoria de Imprensa do TJDFT.
Clique aqui para ler a sentença
ACP 0742656-87.2022.8.07.0001 (Brasília)