Reconhecido por seu protagonismo em matéria ambiental, o Brasil regula a proteção ao meio ambiente não só na Constituição – a exemplo do artigo 225 –, mas também em leis federais, estaduais e municipais. Há, além disso, todo um sistema de normas e princípios construído em convenções internacionais às quais o país aderiu nas últimas décadas.
Um desses princípios é o da precaução, consagrado na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92), segundo o qual a falta de certeza científica absoluta não justifica deixar de tomar as providências necessárias para prevenir danos possivelmente graves e irreversíveis. Em outras palavras: ainda que o dano ambiental seja incerto, ele deve ser levado em consideração quando determinada ação puder causá-lo.
Muito além de um simples balizador de condutas, o princípio da precaução gera diversos efeitos concretos, a exemplo da inversão do ônus da prova em ações que discutem potencial dano ambiental, transferindo ao possível poluidor a obrigação de provar que sua conduta não traz riscos ao mesmo ambiente. Esse é um dos vários entendimentos do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a respeito do princípio da precaução.
Inversão do ônus da prova se aplica às ações de degradação ambiental
Foi com base no princípio da precaução que, em 2010, a Corte Especial do STJ julgou o REsp 883.656 e adotou um entendimento sobre inversão do ônus da prova que viria a servir de precedente para a edição da Súmula 618.
O colegiado assentou que, diante do dever genérico e abstrato de conservação do meio ambiente, o princípio da precaução estabelece um regime ético-jurídico no qual o exercício de atividade potencialmente poluidora – sobretudo quando perigosa – conduz à inversão das regras de gestão da licitude e causalidade da conduta, com a imposição ao empreendedor do encargo de demonstrar que sua ação é inofensiva.
O ministro Herman Benjamin, relator, destacou que, no contexto do Direito Ambiental, o princípio da precaução transforma a máxima in dubio pro reo em in dubio pro natura, trazendo consigo uma forte presunção a favor da proteção da saúde humana e do meio ambiente.
‘‘A responsabilidade de demonstrar a segurança passa para as mãos daqueles que conduzem atividades potencialmente perigosas, o que representa um novo paradigma: antes, o poluidor se beneficiava da dúvida científica; agora, a dúvida funcionará em benefício do meio ambiente’’, expressou o ministro.
‘‘A própria natureza indisponível do bem jurídico protegido (o meio ambiente), de projeção intergeracional, certamente favorece uma atuação mais incisiva e proativa do juiz, que seja para salvaguardar os interesses dos incontáveis sujeitos-ausentes, por vezes toda a humanidade e as gerações futuras. Ademais, o cunho processual do artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor liberta essa regra da vinculação exclusiva ou do confinamento à relação jurídica de consumo. Por derradeiro, a incidência do princípio da precaução, ele próprio transmissor por excelência de inversão probatória, base do princípio in dubio pro natura, induz igual resultado na dinâmica da prova’’, arrematou.
Na falta de certeza científica, prevalece a defesa do meio ambiente
Em 2012, ao discutir um caso que envolvia a queima de canaviais, a Segunda Turma do STJ reafirmou o princípio da precaução: a ausência de certezas científicas não pode ser argumento utilizado para postergar a adoção de medidas eficazes para a proteção do meio ambiente.
O colegiado deu provimento ao recurso especial interposto pelo Ministério Público (REsp 1.285.463) em processo no qual o órgão pedia a anulação de todas as autorizações para a queima de canaviais na comarca de Jaú (SP) e a proibição de que outras fossem concedidas.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) havia entendido que, como não existiam dados capazes de provar cientificamente que a fuligem da cana-de-açúcar causa câncer – como sustentavam os críticos das queimadas –, o Judiciário não poderia paralisar a atividade canavieira do Estado, a qual proporcionava pelo menos 15 milhões de empregos diretos e indiretos.
O relator do recurso especial no STJ, ministro Humberto Martins, amparado no princípio da precaução, afirmou que, ‘‘na dúvida, prevalece a defesa do meio ambiente’’. Em seu voto, ele argumentou ainda que a possibilidade legal de autorização para o uso do fogo no processo produtivo agrícola não abrange as atividades exercidas de forma empresarial, que ‘‘dispõem de condições financeiras para implantar outros métodos menos ofensivos ao meio ambiente’’.
Na análise de medidas urgentes, periculum in mora favorece o meio ambiente
No julgamento do AgInt na TP 2.476, a Primeira Turma entendeu que, no exame de medidas de urgência em matéria ambiental, à luz dos princípios da precaução e da prevenção, o periculum in mora milita em favor da proteção do meio ambiente, não sendo possível a adoção de outra solução senão o imediato resguardo da pessoa humana e do meio ambiente, principalmente em situações críticas.
O Ministério Público ajuizou ação civil pública contra uma empresa que estaria causando danos ambientais ao utilizar um imóvel como depósito de resíduos siderúrgicos da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). O MP alegou que as montanhas de lixo estariam contaminando a água no subsolo e causando poluição atmosférica pela dispersão de partículas com o vento.
O Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) manteve a decisão de primeiro grau que limitou a quantidade e a altura das pilhas de escória recebidas mensalmente no depósito, por entender que ficou comprovado que esse material colocava em risco as populações vizinhas, o lençol freático da região e o rio Paraíba do Sul. Contra essa decisão, a empresa interpôs recurso especial com pedido de efeito suspensivo, o qual foi concedido pela vice-presidência do TRF-2. No entanto, após solicitação de tutela provisória pelo MP, o STJ revogou o efeito suspensivo – decisão da qual a empresa recorreu.
A ministra Regina Helena Costa, relatora do recurso, ponderou que o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, presente no caput do artigo 225 da Constituição Federal, é interesse difuso, de titularidade transindividual. E os princípios da precaução e da prevenção impõem a priorização de medidas que previnam danos à vulnerável biota planetária, bem como a garantia contra perigos latentes, ainda não identificados pela ciência.
‘‘Não se pode adotar outra solução, senão o imediato resguardo da pessoa humana e do meio ambiente, principalmente em quadros fáticos críticos como o presente, no qual, segundo apontou o tribunal de origem, já há constatação de prejuízos à saúde e à segurança da população’’, expressou no voto.
A magistrada ressaltou que, em conformidade com o princípio da precaução, é necessária a inversão do ônus da prova em ações civis ambientais, atribuindo ao empreendedor a responsabilidade de provar que o meio ambiente permanece intacto mesmo com o desenvolvimento de suas atividades.
‘‘Não se extrai dos autos nenhuma comprovação, pelo agravante, de que sua atividade não causaria a degradação apontada na ação civil pública, constatando-se, na verdade, a iminente ameaça de severos danos ambientais, bem como à saúde pública de um sem-número de pessoas, mormente pelo risco concreto de contaminação do rio Paraíba do Sul’’, concluiu a ministra ao negar provimento ao recurso.
Pode haver indenização por dano ambiental mesmo sem prova do prejuízo
Sob a relatoria do ministro Franscisco Falcão, analisando um caso de despejo irregular de esgoto, a Segunda Turma do STJ concluiu que a ausência de prova técnica para a comprovação do efetivo dano ambiental não inviabiliza o reconhecimento do dever de reparação ambiental.
A posição do colegiado se deu no julgamento do REsp 2.065.347, em que o Ministério Público pedia a condenação de um clube e uma pessoa física por lançamento irregular de esgoto no estuário do rio Capibaribe, em Recife. Após o juízo de primeiro grau condenar os réus ao pagamento de indenização por danos ambientais e danos morais coletivos, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5) reformou a sentença, por entender que não havia prova técnica dos danos.
O relator no STJ destacou que, diante de dano ambiental notório, é desnecessária, como regra, a realização de perícia, pois seria diligência inútil e meramente protelatória (artigo 370, parágrafo único, do Código de Processo Civil). Nesses casos, segundo o ministro, basta a prova da conduta imputada ao agente.
Falcão também apontou que a responsabilidade civil por danos ambientais, na situação dos autos, fundamentava-se na teoria do risco administrativo e decorria do princípio do poluidor-pagador, que imputa ao poluidor – aquele que internaliza os lucros – a responsabilização pelo impacto causado no meio ambiente.
‘‘Diante dos princípios da precaução e da prevenção, e dado o alto grau de risco que a atividade de despejo de dejetos, por meio do lançamento irregular de esgoto – sem qualquer tratamento e em área próxima à localização de arrecifes –, representa para o meio ambiente, a ausência de prova técnica pela parte autora não inviabiliza o reconhecimento do dever de reparação ambiental’’, concluiu o ministro ao restabelecer a sentença.
Juiz deve inverter ônus da prova se ficar evidenciada presunção do dano
Sob relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a Terceira Turma definiu, no AREsp 1.311.669, que, quando ficar evidenciada a presunção do dano, o magistrado deve inverter o ônus da prova e determinar que a parte ré demonstre a não existência ou a irrelevância dos prejuízos alegados na ação, bastando aos autores, por sua vez, provar a potencialidade lesiva da atividade.
Na origem do caso, dois pescadores ajuizaram ação de indenização contra a concessionária responsável pela construção de uma hidrelétrica, sustentando que a obra causou a diminuição da quantidade de peixes na região e prejudicou a atividade pesqueira. Por entender que o nexo causal e os prejuízos não foram demonstrados, as instâncias ordinárias afastaram o dever de indenizar.
No STJ, o ministro Cueva observou que a construção da hidrelétrica e a redução da quantidade de peixes são fatos incontestáveis, devendo a questão ser dirimida, portanto, pela interpretação das leis aplicáveis e à luz dos princípios norteadores do Direito Ambiental.
Segundo o ministro, a Lei 6.938/1981 adotou a sistemática da responsabilidade objetiva, que foi integralmente recepcionada pela ordem jurídica atual, tornando-se irrelevante a discussão da conduta do agente (culpa ou dolo) para atribuição do dever de reparação do dano. Além disso, segundo o magistrado, o artigo 4º, inciso VII, da mesma lei, prevê expressamente o dever de recuperar ou indenizar os danos causados, independentemente da existência de culpa.
‘‘Basta que haja um nexo de causalidade provável entre a atividade exercida e a degradação, devendo ser transferido para a concessionária todo o encargo de provar que sua conduta não ensejou riscos para o meio ambiente, bem como a responsabilidade de indenizar os danos causados’’, apontou no voto.
‘‘Não obstante a responsabilidade ser objetiva, o dano ser evidente e a necessidade de comprovação do nexo de causalidade ser a regra, não se pode deixar de ter em conta os princípios que regem o Direito Ambiental (precaução, prevenção e reparação)’’, afirmou o relator. Ele acrescentou que, na falta de provas cientificamente relevantes sobre o nexo causal entre certa atividade e o dano ao meio ambiente, este deve ter o benefício da dúvida.
Seguindo o voto do ministro, o colegiado determinou o retorno dos autos à origem para que houvesse novo julgamento, após a inversão do ônus da prova.
Atuação do administrador deve ser regida, cada vez mais, pela precaução
Ao negar provimento ao AgInt no AREsp 2.067.641, a Segunda Turma, com base no princípio da precaução, manteve a decisão que havia determinado a uma empresa ferroviária, após vários acidentes, a adoção do regime de ‘‘duplacondução’’ nos trens que transportassem cargas perigosas.
No caso, a empresa interpôs recurso especial, argumentando que, ao exigir a implementação da ‘‘duplacondução’’ nos trens, em vez da ‘‘monocondução’’, a administração pública teria alterado unilateralmente o contrato administrativo durante sua vigência, causando a quebra do equilíbrio econômico-financeiro do contrato e vionlado a segurança dos negócios jurídicos.
Em seu voto, o ministro Herman Benjamin, relator, observou que, no sistema jurídico brasileiro, a administração pública é titular de ampla atribuição cautelar, incumbindo aos seus agentes o dever de adotar, em relação a pessoas físicas ou jurídicas, medidas concretas que impeçam ou reduzam acidentes e outros eventos danosos à integridade físico-psíquica e a bens materiais e imateriais de terceiros, assim como ao meio ambiente e ao patrimônio público em geral.
Nesse sentido, o relator ponderou que a atuação do administrador contemporâneo se rege pelo princípio da prevenção e, cada vez mais, pelo princípio da precaução, até porque seria um absurdo defender que o estado ‘‘corra atrás do prejuízo’’, sobretudo se confrontado com ameaça ou ofensa de efeitos coletivos, algo que descaracterizaria a missão estatal e as expectativas sociais às quais deve estrita obediência.
“Entre a segurança jurídica dos contratos e a segurança das pessoas e do meio ambiente, só daria preferência àquela em prejuízo desta um legislador (ou juiz) insensível ao princípio da supremacia do interesse público, alienado da centralidade da comunidade da vida como valor de regência primordial no consenso normativo das sociedades democráticas do mundo todo”, declarou. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
REsp 883656
REsp 1285463
TP 2476
REsp 2065347
AREsp 1311669
AREsp 2067641