ADVOCACIA PREDATÓRIA
TRT-MG afasta suspeição de juiz e aplica multas de mais de R$ 100 mil a advogado que tumultua processos

Divulgação TRT-3

A mera apresentação de reclamação disciplinar no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) não retira a isenção juiz para o julgamento de um processo, haja vista que tal circunstância não se insere dentre as hipóteses de suspeição previstas no artigo 801 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) ou no artigo 145 do Código de Processo Civil (CPC)

Nessa linha de entendimento, a Décima Primeira Turma Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT-3, Minas Gerais), à unanimidade, rejeitou arguição de suspeição contra o juiz Lucas Furiati Camargo, da 2ª Vara do Trabalho em Betim, manejada pelo advogado Leonardo Jamel Saliba de Souza. O advogado é um dos procuradores de um ex-funcionário em litígio trabalhista contra a Transportes Pesados Minas S. A. (Transpes).

O colegiado penalizou o advogado por comportamento desleal durante a tramitação do processo trabalhando, já que identificou a prática de condutas abusivas na sua atuação, com o fim de obter vantagens indevidas, violando o dever de cooperação estabelecido na lei. Como consequência, aplicou-lhe duas multas que, somadas, alcançam montante superior a R$ 100 mil.

Os integrantes da Décima Primeira Turma determinaram que seja dada ciência imediata da decisão a todas as Varas do Trabalho de Minas Gerais. Após o trânsito em julgado (quando não cabe mais recurso), cópia da decisão será enviada à Secretaria de Uniformização de Jurisprudência, Gerenciamento de Precedentes e Ações Coletivas do TRT-3, para alimentar o banco de dados do CNJ.

Juiz relator Márcio Toledo Gonçalves
Foto: Imprensa/TRT-MG

Situações de conflito

O relator do recurso ordinário trabalhista (ROT) no Regional, juiz do trabalho convocado Márcio Toledo Gonçalves, apurou que o advogado do reclamante, de forma rotineira e contumaz, provoca situações de conflito com inúmeros magistrados. O advogado tentou forçar o juiz a declarar-se suspeito pelo fato de haver apresentado contra ele reclamação junto ao CNJ, elevando o tom de voz de forma provocativa quando este rejeitou requerimento formulado em audiência realizada em 25 de outubro de 2023, criando tumulto, além de agir de forma arrogante, truculenta e beligerante, fato que se repetiu em outras oportunidades.

Na audiência ocorrida em fevereiro de 2024, o mesmo advogado elevou o tom de voz e acusou o juiz de atuar no processo por mero capricho. A procuradora da ré testemunhou que o magistrado sempre agiu de forma imparcial e acusou o advogado da parte contrária de adotar idêntico procedimento contra outros magistrados.

Sem prova das acusações, as reclamações têm sido arquivadas no âmbito do CNJ, reforçando a convicção de que foram infundadas, integrando mera estratégia de manipulação do sistema.

A Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da Terceira Região (Amatra III) vem acompanhando de perto a situação (como amicus curiae = amigo da Corte). A Amatra III acredita que a conduta do advogado se encaixa nas hipóteses de má-fé previstas nas normas processuais, pautando-se pela alteração da verdade dos fatos, utilizando o processo para objetivos ilegais, além de agir de forma temerária, criando incidentes que tumultuam o andamento processual e acarretam prejuízos ao Tribunal, inclusive de ordem financeira.

Por essa razão, o relator, acompanhado pelos demais julgadores, decidiu que o advogado deve ser punido, não apenas por litigância de má-fé, mas também com multa por atentado à dignidade da Justiça. O relator frisou que essas penalidades têm o objetivo de prevenir a repetição desse tipo de comportamento desleal, principalmente quando tal conduta é praticada com a finalidade de afastar magistrados em virtude de entendimentos jurídicos indesejados pelo advogado.

Ferramentas contra o desrespeito à Justiça

O relator citou no voto a jurista Vívian Fernandes ao explicar que, no Brasil, foram adotadas algumas normas para punir quem desrespeita, obstrui ou impede a efetividade da decisão judicial.

No caso em destaque, foram anexadas as atas de audiência de outros processos nos quais o mesmo advogado atuou, mostrando um padrão de comportamento antiético e abusivo.

Na visão do relator, a prática de advocacia predatória e o assédio processual comprometem o funcionamento regular dos órgãos do Judiciário e devem ser prontamente sancionados.

Por essa razão, devem ser impostas penalidades rigorosas ao advogado responsável por essas práticas, prevenindo a repetição desse comportamento desleal. Nesse sentido, pontuou o relator em relação ao caso em análise:

‘‘Retornando ao caso em análise, o litígio aqui instaurado não tem por objeto a resolução da reclamação trabalhista patrocinada pelo advogado excipiente [que pediu a suspeição do juiz], nem cuida da persecução de uma solução viável no interesse do trabalhador. Não se trata, portanto, de atuação do advogado na defesa de pretenso direito do seu cliente, mas refere-se a conflito instaurado em face do magistrado que preside o processo, com o propósito de dificultar a atuação do Poder Judiciário. Se o magistrado tem o dever de estimular uma solução consensual dos conflitos, as partes e seus procuradores têm o dever de agir com boa-fé, lealdade e Cooperação (arts. 5º e 6º do CPC)”.

Suspeição do juiz rejeitada

O magistrado responsável pelo andamento da ação trabalhista negou sua suspeição, afirmando que a existência de reclamação no CNJ não afeta sua imparcialidade. Tanto que o corregedor regional, desembargador Manoel Barbosa da Silva, arquivou a reclamação disciplinar, por inexistir qualquer violação dos deveres funcionais. Segundo o corregedor, no caso, não houve comprovação de que o magistrado tivesse vínculo pessoal com as partes envolvidas.

Assédio processual e advocacia abusiva

O relator também concluiu que o advogado praticou advocacia abusiva ao apresentar um grande número de ações e medidas sem fundamento sólido e com o objetivo de prejudicar o andamento dos processos. Esse comportamento foi considerado uma tentativa de distorcer o sistema de Justiça e atrasar deliberadamente as decisões.

Além disso, as ações do advogado foram classificadas como ‘‘assédio processual’’, uma prática em que o profissional utiliza procedimentos legais de forma abusiva e repetitiva para desestabilizar o andamento do processo e afetar negativamente a outra parte envolvida. Assim se manifestou o relator sobre o tema:

‘‘Em reiteradas condutas no curso do processo, restaram explícitas a má vontade, a resistência, o descompromisso com o interesse das partes e com a busca da solução negociada do conflito. O desprezo e a insensibilidade para com a situação do trabalhador que o contratou, a afronta deliberada ao juiz e à parte contrária –  que também almeja por uma solução rápida e equânime do litígio –, além dos obstáculos opostos à atuação da Justiça, com o comprometimento da credibilidade, da eficiência e da efetividade da atividade jurisdicional, são incompatíveis com o exercício da advocacia.’’

Diante da atuação abusiva por parte do advogado, os julgadores da Décima Primeira Turma do TRT-MG aplicaram-lhe multa por má-fé processual, no valor de duas vezes o teto dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Impuseram, também, uma segunda multa de R$ 100 mil, destinada ao Fundo de Direitos Difusos, para prevenir a repetição da conduta abusiva. Redação Painel de Riscos com informações da Assessoria de Imprensa do TRT-3.

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ATOrd 0010972-70.2022.5.03.0027 (Betim-MG)

HOSPITAIS E ESCOLAS
A legitimidade das associações e fundações para o pedido de recuperação judicial e a nova posição do STJ

Advogada Jamile Beck Eidt, do escritório Cesar Peres Dullac Müller Advogados (CPDMA)

Por Jamile Beck Eidt

No início do mês de outubro, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria de votos, proferiu decisão em quatro recursos especiais (REsp 2.026.250, REsp 2.036.410, REsp 2.038.048 e REsp 2.155.284) se posicionando pela ilegitimidade ativa das fundações sem fins lucrativos para o pedido de recuperação judicial.

A decisão, inédita até então, parece, em primeira análise, solucionar uma controvérsia latente nos principais tribunais do país. Contudo, os problemas seguem sem soluções adequadas para o soerguimento de relevantes agentes que não estejam enquadrados no tipo societário de empresa, tais como as instituições de ensino e as associações hospitalares.

Da relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a decisão cita que, em contrapartida aos benefícios trazidos pela atividade empresarial, a recuperação judicial seria uma forma de sacrifício da sociedade e, principalmente dos empregados e fornecedores, para com aquele empresário ou sociedade empresária, com o objetivo de manter os postos de trabalho e a geração de riquezas. Entretanto, refere que essa lógica não poderia ser aplicada às associações e fundações, pois, como estas prestam serviços de utilidade pública, a contrapartida da sociedade seria a concessão de benefícios fiscais através do estado.

Discorre, ainda, acerca da insegurança jurídica dos credores que contratam com essas associações e fundações, que, no momento da celebração contratual, não levam em conta a possibilidade dessas entidades requererem recuperação judicial. Conclui, dizendo que o artigo 1º da Lei 11.101/05 é claro ao dispor que apenas os empresários e as sociedades empresárias poderiam requerer a superação do estado de crise através do instituto da recuperação judicial e que a não inclusão deste tema na alteração legislativa de 2020 já seria uma decisão.

Pois bem. Muito embora a decisão possa ser utilizada como precedente para os demais casos que tratam sobre a matéria, não se pode olvidar que, ainda que em cognição sumária, em 2022, a 4ª Turma do STJ decidiu, por maioria de votos, autorizar o prosseguimento da recuperação judicial do Instituto Metodista de Educação – IMED (TP nº 3654 / RS), estando pendente de decisão, ainda, o recurso especial.

Naquela oportunidade, o ministro Luis Felipe Salomão proferiu um extenso voto destacando que, não obstante à ausência de distribuição de lucro das associações, muitas acabam se estruturando como verdadeiras empresas do ponto de vista econômico, exercendo atividade econômica organizada para produção e circulação de bens e serviços, empenhando-se na manutenção de atividades de extrema relevância econômica e social, desempenhando atividades relacionadas a direitos socias e fundamentais, como educação e saúde, dos quais muitas vezes o estado é omisso.

Além da referida decisão, o legislador se encarregou de legitimar os clubes de futebol, mesmo que constituídos sob a forma de associação civil, ao pedido de recuperação judicial, através da Lei 14.193/21 [artigo 13 combinado com os artigos. 25 e 1º, parágrafo 1º, inciso I, da referida Lei], nomeada Lei da Sociedades Anônimas do Futebol. Em outras palavras, há a possibilidade de associações pedirem recuperação judicial, desde que desempenhem atividade futebolística. Em contrapartida, se forem instituições de ensino ou associação hospitalar, não possuem essa mesma legitimidade por ausência de previsão legal.

Nesse mesmo sentido, dentre as alterações realizadas pela Lei 14.112 de 2020, foi incluída a parte final do parágrafo 13 do artigo 6º. Essa modificação autoriza as cooperativas médicas que operam planos de saúde a se beneficiarem do regime de recuperação judicial, equiparando-as às empresas. A questão foi analisada recentemente pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7442, na qual foi reconhecida a constitucionalidade dessa alteração.

Assim, dizer que a recente decisão do STJ teria posto um fim na controvérsia acerca da legitimidade das associações e fundações para o pedido de recuperação judicial seria temerário por alguns fatores: (i) pela existência de entendimentos opostos entre os próprios Ministros; (ii) pela existência de legislação legitimando entidades constituídas no mesmo formato; e (iii) pela existência de inúmeros recursos especiais sobre a matéria pendentes de julgamento, dentre os quais estão importantes hospitais filantrópicos e instituições de ensino, como Santa Casa do Rio Grande, Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Fernandópolis, Maternidade de Campinas, do Instituto Metodista de Educação – IMED, entre outros.

O que é inegável, seja qual for o posicionamento, é que esses agentes possuem grande relevância social e econômica, criam empregos, renda e contribuem para o crescimento e o desenvolvimento social do país e, assim como os empresários e sociedades empresárias, se sujeitam às constantes instabilidades econômico-financeiras geradas pela gestão da sua atividade ou pelo próprio mercado. E quais são as alternativas desses agentes para solucionarem uma eventual situação de crise?

O Código Civil traz, nos artigos1.102 a 1.112, a hipótese de liquidação, que significa pôr fim à atividade; ou seja, na lei, não há uma possibilidade de superação da crise por parte desses agentes. A solução é o encerramento das atividades, o que em muitos casos significa fechar as portas de hospitais filantrópicos que atendem milhares de pessoas e dezenas de municípios.

A outra estratégia encontrada por algumas instituições, a exemplo da Ulbra e da Instituição Educacional São Judas Tadeu, foi a transformação de associações civis para sociedades empresárias. Contudo, essa não parece ser uma opção para todos os casos, haja vista a necessidade de encontrar potenciais investidores, bem como por envolver a privatização de instituições que possuem aportes de recurso públicos, como os hospitais.

Por fim, a exemplo da Lei da SAF, desenvolvida especialmente para os clubes de futebol, a alternativa que, de fato, colocaria fim à controvérsia e trataria segurança jurídica para todos os envolvidos nas operações seria a promulgação de uma lei que contemplasse essas entidades e regulasse a possibilidade de elas fazerem uso da recuperação judicial, com condições e requisitos que se adequem ao mercado e as estruturas organizacionais das instituições, a fim de viabilizar a superação de crise de importantes agentes econômicos.

Jamile Beck Eidt integra a Equipe de Reestruturação de Empresas do escritório Cesar Peres Dullac Müller Advogados (CPDMA)