ERROR IN PROCEDENDO
TRF-4 anula sentença que julgou improcedentes embargos à execução fiscal por cerceamento da defesa da empresa

Divulgação RM Distribuidor

Por Jomar Martins (jomar@painelderiscos.com.br)

Incorre em erro de procedimento (error in procedendo) o julgador que indefere a juntada de novos documentos e a produção de perícia contábil, na fase de instrução probatória, e depois, na fase de sentença, julga os embargos à execução fiscal improcedentes sob o argumento de que o contribuinte deixou de apresentar provas e documentos em tempo hábil.

Diante desse quadro fático-processual, a maioria da 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) decidiu anular sentença da 1ª Vara Federal de Cachoeira do Sul (RS) que julgou improcedentes embargos de execução fiscal manejados por uma distribuidora de alimentos da Metade Sul do Rio Grande do Sul.

Juiz Andrei Piten Velloso foi o voto vencedor
Reprodução Youtube

O juiz federal convocado Andrei Pitten Velloso, voto divergente vencedor, apurou que a empresa embargante já havia requerido, na peça inicial da ação, a produção de prova pericial e a concessão de prazo para a juntada de documentos, mas o juízo de origem não se pronunciou sobre tais pedidos. Mais tarde, a autora requereu novamente a produção de prova pericial, indeferida sob o fundamento de que estaria ‘‘documentalmente esclarecida a matéria alegada’’.

Posteriormente, ao proferir a sentença, lembrou que o julgador de origem considerou a juntada de documentos imprescindível ao julgamento do processo, mas não ofereceu à empresa a oportunidade de fazê-la. Consequentemente, não deferiu a produção da prova pericial, devidamente requerida.

‘‘Assim, entendo ter havido erro no procedimento, pelo que a sentença deve ser anulada a fim de que seja concedido prazo razoável para a juntada dos documentos necessários à prova pericial postulada e, após a juntada, seja determinada a sua realização. Ante o exposto, divergindo do il. Relator, voto por acolher a preliminar, determinando a anulação da sentença para que seja franqueada a realização da perícia postulada’’, expressou no voto.

Embargos à execução fiscal

RM da Silveira & Cia. Ltda., distribuidora de alimentos sediada em Caçapava do Sul (RS), opôs embargos à execução fiscal movida pela Fazenda Nacional (União), pedindo o direito de compensar créditos tributários decorrentes de retificação do Demonstrativo de Apuração de Contribuições Sociais (Dacon) do período de janeiro/2011 a dezembro/2011, com a inclusão de valores de receitas tributadas a alíquota zero que antes teriam sido inclusas em campo diverso. Ou o reconhecimento de excesso a execução, com base no entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins.

A embargante alega que a referida compensação não foi homologada pelo fisco em razão de divergência com as informações lançadas na Declaração de Informações Econômico-Fiscais da Pessoa Jurídica (DIPJ) de 2012, as quais teriam sido lançadas por ‘‘simples equívoco’’. Assim, para verificação deste equívoco, pediu uma perícia contábil – o que mostraria a prova do seu direito à compensação tributária, negada na fase administrativa.

Citado pela 1ª Vara Federal de Cachoeira do Sul (RS), o fisco apresentou contestação. Preliminarmente, defendeu a extinção do processo, sem julgamento de mérito, pela ausência de pressupostos processuais, já que a parte autora deixou de declarar o valor que entende correto. Em síntese, sustentou que foi acertada a decisão administrativa da Receita Federal que deixou de homologar a compensação tributária.

Sentença de improcedência

A juíza federal Gianni Cassol Konzen acolheu os argumentos da ré, julgando improcedente a ação. Na fundamentação, ela observou que a autora não apresentou ao fisco as informações necessárias à verificação de quais mercadorias comporiam as receitas com alíquota zero. Também não anexou nenhum documento comprobatório.

Juíza Gianni  Cassol Konzen
Reprodução Youtube

Na visão da julgadora, não se trata apenas de simples verificação de incongruência entre os dados apresentados na Dacon e na DIPJ. Para o reconhecimento do direito à compensação pleiteada, seria necessária complexa análise dos fatos, relativa às mercadorias cuja alíquota tributária seria zero por cento – tarefa impossível sem a apresentação da documentação contábil da empresa.

‘‘Na mesma linha, resta afastada qualquer alegação de cerceamento de defesa pelo indeferimento da prova pericial, pois até mesmo o perito contábil necessitaria de tal documentação para realização da conta. Tampouco há que se falar em dificuldade de acesso à justiça, pois a embargante é empresa de grande porte, representada por escritório de advocacia especializado’’, anotou na sentença.

Em fecho, a juíza fez questão de registrar que a própria embargante mencionou, na peça inicial, o interesse em juntar a documentação fiscal pertinente. ‘‘Contudo, decorrida toda a instrução, não o fez. Por fim, convém reforçar novamente a presunção de certeza e liquidez da CDA (art. 3º da Lei 6.830/80 e art. 204 do CTN), circunstância que transfere ao contribuinte o ônus de comprovar a irregularidade da cobrança, o que não ocorreu nos autos’’, finalizou, fulminando os embargos.

Error in procedendo X error in judicando

Error in procedendo é uma expressão jurídica de origem latina que significa um erro de procedimento; ou seja, um vício de atividade que invalida um ato judicial. Ocorre quando o julgador desobedece a normas processuais, aplicando, por exemplo, incorretamente uma regra.

Tal vício processual pode ser reconhecido em qualquer tempo e grau de jurisdição, levando a decisão/sentença a ser cassada, para que outra seja proferida na instância de origem.

O error in procedendo é diferente do error in judicando, que é um erro no julgamento das questões de Direito material.

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5001246-47.2018.4.04.7119 (Cachoeira do Sul-RS)

 

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EXECUÇÃO TRABALHISTA
Doação de imóvel a filho de sócio é legal se feita antes do ajuizamento da ação reclamatória

Reprodução TST

A Oitava Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) afastou a caracterização de fraude à execução na doação de um imóvel realizada pelo sócio de uma empresa de alarmes em favor de seus dois filhos, antes do ajuizamento da reclamação trabalhista em que a empresa foi condenada. Para o colegiado, não se pode presumir que houve má-fé no caso, uma vez que não havia registro de penhora sobre o bem.

Imóvel foi doado aos filhos antes da ação

Em dezembro de 2013, o sócio transferiu o imóvel, em Campos do Jordão (SP), a seus dois filhos, por meio de doação, e a mudança na matrícula foi feita em março de 2015.

Em dezembro do mesmo ano, um empregado da Sekron Alarmes Monitorados Ltda. apresentou a ação trabalhista e, em dezembro de 2016, a empresa foi condenada em primeiro grau ao pagamento de diversas parcelas, totalizando R$ 140 mil. Na fase de execução, iniciada em 2019, a empresa estava em processo de dissolução de sociedade na esfera cível, e a cobrança da dívida foi direcionada aos sócios. O imóvel foi penhorado, e os filhos do sócio questionaram a medida.

TRT manteve penhora por considerar nula a doação

Tanto o Juízo da 3ª Vara do Trabalho de Guarulhos (SP) quanto o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2, São Paulo) consideraram nula a doação. O TRT baseou-se no fato de que os filhos eram membros do núcleo familiar, moravam no mesmo endereço e sabiam da situação financeira do pai. Por outro lado, a empresa respondia por ações trabalhistas desde 2011, e não havia outros bens disponíveis para arcar com as dívidas.

Para o relator, não se pode presumir a má-fé no caso

O desembargador convocado José Pedro de Camargo, relator do recurso de revista dos filhos do executado no TST, explicou que, segundo a Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a caracterização de fraude à execução requer o registro de penhora sobre o bem ou evidências claras de má-fé do beneficiário da doação, o que não ficou comprovado no caso. Para ele, a presunção de má-fé não poderia ser estendida aos filhos, beneficiários de uma doação anterior ao início da reclamação trabalhista.

A decisão foi unânime. Com informações do técnico judiciário Bruno Vilar, compiladas pela Secretaria de Comunicação Social (Secom) do TST.

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RR-1001169-88.2022.5.02.0313

REPETITIVOS
ISS compõe base de cálculo do IRPJ e da CSLL se apurados pelo regime de lucro presumido

Reprodução Youtube

​O Imposto sobre Serviços (ISS) deve compor a base de cálculo do Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) quando apurados pela sistemática do lucro presumido. A definição é da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Tema 1.240 dos recursos repetitivos.

Para consolidar esse entendimento, o colegiado estabeleceu comparações entre a questão debatida no recurso especial representativo da controvérsia (REsp 2.089.298) e a tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Tema 69 da repercussão geral, a qual excluiu o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) da base de cálculo da contribuição ao Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins).

No caso analisado pelo STJ, um laboratório médico de patologia questionou decisões das instâncias ordinárias que validaram a manutenção dos valores do ISS na base de cálculo do IRPJ e da CSLL. Invocando a posição do STF, a empresa defendeu que o ISS deveria ser excluído da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, quando apurados na sistemática do lucro presumido.

Ministro Gurgel Faria foi o relator
Foto: Imprensa STJ

Precedente do STF foi estabelecido em contexto específico

Relator do repetitivo, o ministro Gurgel de Faria destacou que não deve prevalecer nesse caso a tese firmada no julgamento do Tema 69 do STF, pois foi adotada em contexto específico, à luz da Constituição. ‘‘A legislação federal, de constitucionalidade presumida, expressamente determina que o valor relativo aos impostos, como o ISS, no caso, integra a receita para fins de tributação de IRPJ e CSLL pelo lucro presumido’’, observou.

O magistrado verificou que o próprio STF deixou claro em seu precedente que a tese não se aplica ‘‘quando se tratar de benefício fiscal oferecido ao contribuinte, como na espécie, em que se pode optar por regime de tributação’’.

Lucro real e lucro presumido: diferenças entre regimes de tributação

Segundo Gurgel de Faria, no regime de tributação pelo lucro real, a base de cálculo do IRPJ e da CSLL é o lucro contábil, ajustado pelas adições e deduções permitidas em lei. Nessa sistemática, o ISS é um imposto dedutível como despesa necessária à atividade da empresa.

Já na tributação pelo lucro presumido, prosseguiu, multiplica-se um dado percentual – que varia conforme a atividade desenvolvida pelo contribuinte, nos termos dos artigos 15 e 20 da Lei 9.249/1995 – pela receita bruta, a qual representa o ponto de partida nesse regime de tributação. Sobre essa base de cálculo, incidem as alíquotas pertinentes.

‘‘A adoção da receita bruta como eixo da tributação pelo lucro presumido demonstra a intenção do legislador de impedir quaisquer deduções, tais como impostos, custos das mercadorias ou serviços, despesas administrativas ou financeiras, tornando bem mais simplificado o cálculo do IRPJ e da CSLL’’, detalhou o ministro.

Ainda de acordo com Gurgel de Faria, se o contribuinte quiser considerar certos custos ou despesas, deve escolher o regime de apuração pelo lucro real, que abarca essa possibilidade.

‘‘O que não se pode permitir, à luz dos dispositivos de regência, é que promova uma combinação dos dois regimes, a fim de reduzir indevidamente a base de cálculo dos tributos’’, concluiu o relator. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

Leia o acórdão do REsp 2.089.298

REsp 2089298

REsp 2089356

DEVER DE SOLIDARIEDADE
VT derruba justa causa de trabalhadora que faltava ao serviço para cuidar da filha doente

Após demitir por justa causa trabalhadora que faltou ao serviço para cuidar da filha de um ano que estava doente, o Supermercado e Atacado Saito Ltda., de Nova Mutum (MT), deverá reverter, por determinação da Justiça do Trabalho, a pena aplicada. A empresa alegou que aplicou a penalidade em razão de atrasos e faltas, incluindo uma ausência em julho de 2024.

A trabalhadora argumentou que avisou a empresa sobre a possível ausência, enviando uma mensagem na noite anterior para informar que poderia faltar caso não conseguisse alguém para cuidar da criança.

A empresa atacadista argumentou que a dispensa se deu por desídia, sustentando um histórico de dois atrasos e três faltas sem justificativas, com aplicação de advertências e suspensão antes da justa causa.

Ao avaliar o caso, o juiz Paulo Cesar da Silva, da Vara do Trabalho de Nova Mutum, converteu a demissão por justa causa em dispensa sem justa causa, assegurando à trabalhadora o direito às verbas rescisórias. Ele apontou que a caracterização de desídia requer uma reiteração de atos de desleixo, o que não ocorreu neste caso, em que a empregada se antecipou e comunicou previamente à empresa sobre a possibilidade de faltar para cuidar da filha adoentada, demonstrando que não houve descompromisso com o trabalho.

O magistrado destacou que, desde o início do vínculo empregatício, em 2021, a ex-empregada havia recebido apenas uma advertência e um atraso antes de 2024, ano em que passou a ter os cuidados próprios pós-maternidade. Conforme afirmou, a situação da trabalhadora exige compreensão da realidade vivenciada por ela à época da rescisão do contrato.

A sentença destacou ainda o dever de solidariedade previsto na Constituição que envolve a família, o estado e a sociedade na proteção de crianças e jovens. ‘‘Não se pode desprezar o papel constitucional e moral da trabalhadora de ser responsável legal por sua filha menor, assim como o dever de solidariedade da empresa, que lhe impõe, no mínimo, a obrigação de compreender que seus empregados também são pais, mães e cidadãos’’, salientou o juiz.

A decisão foi fundamentada também no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que considera a vulnerabilidade enfrentada por mulheres no mercado de trabalho. O juiz atribuiu valor ao relato da trabalhadora, que optou por cuidar da filha em casa sem buscar atendimento médico imediato, não tendo, portanto, um atestado médico para justificar a ausência.

Ele lembrou que essa atitude é comum entre pessoas que cuidam de crianças. ‘‘Isso porque é corriqueiro que crianças pequenas adoeçam sucessivas vezes com gripes, resfriados e enfermidades respiratórias menos graves, já sabendo os pais, em razão disso, lidar com aquela sintomatologia, o que dispensa, pelo menos a priori, dirigir-se até um posto de saúde, onde se costuma enfrentar longa espera e sujeitar-se a outras enfermidades’’, acrescentou.

A decisão reforçou que a trabalhadora retornou ao trabalho na tarde do mesmo dia, assim que conseguiu alguém para ficar com a filha, conforme testemunhado pela representante da empresa. Para o magistrado, isso também demonstrou o comprometimento da trabalhadora, contrariando a alegação de desídia.

Perspectiva de Gênero

Instituído pelo CNJ em 2023, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero reconhece que critérios de produtividade e assiduidade frequentemente ignoram a carga extra de responsabilidades enfrentadas por mulheres, especialmente aquelas com filhos pequenos. O documento orienta que juízes e magistrados considerem esses fatores a fim de não perpetuar desigualdades.

Ao analisar o caso de Nova Mutum, o magistrado pontuou que os processos envolvendo mulheres, especialmente a maternidade, devem contar com um olhar especial dos julgadores, por se tratar de grupo socialmente vulnerável, historicamente excluído, para quem foi relegada atividades domésticas e cuidado dos filhos, o que ainda traz empecilhos para manutenção no emprego e de progressão na carreira.

Por fim, o magistrado destacou o dever de se cumprir os direitos previstos na Constituição e na legislação, que cada vez mais exige adaptações razoáveis à realidade dos empregados, em respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia. ‘‘Não pode a empresa, que tem uma função social constitucional a cumprir, simplesmente entender que a falta da autora decorreu de uma desorganização pessoal da sua vida e que a empresa nada tem a ver com essa suposta desorganização’’, frisou.

Com a reversão da justa causa, o supermercado foi condenado ao pagamento de aviso-prévio e multas como dos 40% do FGTS.  Por se tratar de decisão de primeira instância, cabe recurso ao Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região (TRT-23, Mato Grosso). Com informações de Aline Cubas, da Secretaria de Comunicação Social do TRT-23.

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ATSum 0001089-82.2024.5.23.0121 (Nova Mutum-MT)

HOSPITAIS E ESCOLAS
A legitimidade das associações e fundações para o pedido de recuperação judicial e a nova posição do STJ

Advogada Jamile Beck Eidt, do escritório Cesar Peres Dullac Müller Advogados (CPDMA)

Por Jamile Beck Eidt

No início do mês de outubro, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria de votos, proferiu decisão em quatro recursos especiais (REsp 2.026.250, REsp 2.036.410, REsp 2.038.048 e REsp 2.155.284) se posicionando pela ilegitimidade ativa das fundações sem fins lucrativos para o pedido de recuperação judicial.

A decisão, inédita até então, parece, em primeira análise, solucionar uma controvérsia latente nos principais tribunais do país. Contudo, os problemas seguem sem soluções adequadas para o soerguimento de relevantes agentes que não estejam enquadrados no tipo societário de empresa, tais como as instituições de ensino e as associações hospitalares.

Da relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a decisão cita que, em contrapartida aos benefícios trazidos pela atividade empresarial, a recuperação judicial seria uma forma de sacrifício da sociedade e, principalmente dos empregados e fornecedores, para com aquele empresário ou sociedade empresária, com o objetivo de manter os postos de trabalho e a geração de riquezas. Entretanto, refere que essa lógica não poderia ser aplicada às associações e fundações, pois, como estas prestam serviços de utilidade pública, a contrapartida da sociedade seria a concessão de benefícios fiscais através do estado.

Discorre, ainda, acerca da insegurança jurídica dos credores que contratam com essas associações e fundações, que, no momento da celebração contratual, não levam em conta a possibilidade dessas entidades requererem recuperação judicial. Conclui, dizendo que o artigo 1º da Lei 11.101/05 é claro ao dispor que apenas os empresários e as sociedades empresárias poderiam requerer a superação do estado de crise através do instituto da recuperação judicial e que a não inclusão deste tema na alteração legislativa de 2020 já seria uma decisão.

Pois bem. Muito embora a decisão possa ser utilizada como precedente para os demais casos que tratam sobre a matéria, não se pode olvidar que, ainda que em cognição sumária, em 2022, a 4ª Turma do STJ decidiu, por maioria de votos, autorizar o prosseguimento da recuperação judicial do Instituto Metodista de Educação – IMED (TP nº 3654 / RS), estando pendente de decisão, ainda, o recurso especial.

Naquela oportunidade, o ministro Luis Felipe Salomão proferiu um extenso voto destacando que, não obstante à ausência de distribuição de lucro das associações, muitas acabam se estruturando como verdadeiras empresas do ponto de vista econômico, exercendo atividade econômica organizada para produção e circulação de bens e serviços, empenhando-se na manutenção de atividades de extrema relevância econômica e social, desempenhando atividades relacionadas a direitos socias e fundamentais, como educação e saúde, dos quais muitas vezes o estado é omisso.

Além da referida decisão, o legislador se encarregou de legitimar os clubes de futebol, mesmo que constituídos sob a forma de associação civil, ao pedido de recuperação judicial, através da Lei 14.193/21 [artigo 13 combinado com os artigos. 25 e 1º, parágrafo 1º, inciso I, da referida Lei], nomeada Lei da Sociedades Anônimas do Futebol. Em outras palavras, há a possibilidade de associações pedirem recuperação judicial, desde que desempenhem atividade futebolística. Em contrapartida, se forem instituições de ensino ou associação hospitalar, não possuem essa mesma legitimidade por ausência de previsão legal.

Nesse mesmo sentido, dentre as alterações realizadas pela Lei 14.112 de 2020, foi incluída a parte final do parágrafo 13 do artigo 6º. Essa modificação autoriza as cooperativas médicas que operam planos de saúde a se beneficiarem do regime de recuperação judicial, equiparando-as às empresas. A questão foi analisada recentemente pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7442, na qual foi reconhecida a constitucionalidade dessa alteração.

Assim, dizer que a recente decisão do STJ teria posto um fim na controvérsia acerca da legitimidade das associações e fundações para o pedido de recuperação judicial seria temerário por alguns fatores: (i) pela existência de entendimentos opostos entre os próprios Ministros; (ii) pela existência de legislação legitimando entidades constituídas no mesmo formato; e (iii) pela existência de inúmeros recursos especiais sobre a matéria pendentes de julgamento, dentre os quais estão importantes hospitais filantrópicos e instituições de ensino, como Santa Casa do Rio Grande, Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Fernandópolis, Maternidade de Campinas, do Instituto Metodista de Educação – IMED, entre outros.

O que é inegável, seja qual for o posicionamento, é que esses agentes possuem grande relevância social e econômica, criam empregos, renda e contribuem para o crescimento e o desenvolvimento social do país e, assim como os empresários e sociedades empresárias, se sujeitam às constantes instabilidades econômico-financeiras geradas pela gestão da sua atividade ou pelo próprio mercado. E quais são as alternativas desses agentes para solucionarem uma eventual situação de crise?

O Código Civil traz, nos artigos1.102 a 1.112, a hipótese de liquidação, que significa pôr fim à atividade; ou seja, na lei, não há uma possibilidade de superação da crise por parte desses agentes. A solução é o encerramento das atividades, o que em muitos casos significa fechar as portas de hospitais filantrópicos que atendem milhares de pessoas e dezenas de municípios.

A outra estratégia encontrada por algumas instituições, a exemplo da Ulbra e da Instituição Educacional São Judas Tadeu, foi a transformação de associações civis para sociedades empresárias. Contudo, essa não parece ser uma opção para todos os casos, haja vista a necessidade de encontrar potenciais investidores, bem como por envolver a privatização de instituições que possuem aportes de recurso públicos, como os hospitais.

Por fim, a exemplo da Lei da SAF, desenvolvida especialmente para os clubes de futebol, a alternativa que, de fato, colocaria fim à controvérsia e trataria segurança jurídica para todos os envolvidos nas operações seria a promulgação de uma lei que contemplasse essas entidades e regulasse a possibilidade de elas fazerem uso da recuperação judicial, com condições e requisitos que se adequem ao mercado e as estruturas organizacionais das instituições, a fim de viabilizar a superação de crise de importantes agentes econômicos.

Jamile Beck Eidt integra a Equipe de Reestruturação de Empresas do escritório Cesar Peres Dullac Müller Advogados (CPDMA)