Por Maria Letícia Mesquita
Diamantino Advogados Associados
Está em pauta nos debates nacionais o imbróglio sobre a demarcação de terras indígenas, prevista no artigo 231 da Constituição. Aprovado na Câmara dos Deputados com 324 votos a favor e 131 contra, o PL do Marco Temporal é o pontapé inicial para a manutenção da segurança jurídica e garantia de isonomia nos atos discricionários da Funai. Infelizmente, apesar de pautado em decisão exarada pelo próprio STF, ele abre caminho para mais um embate entre o Legislativo e o Judiciário.
No texto aprovado, entre outras previsões, estão as 19 condicionantes estabelecidas pela Suprema Corte no julgamento do caso da Reserva Raposa Serra do Sol e, em especial, a fixação do marco temporal da promulgação da Constituição de 1988 para demarcação de terras de povos indígenas.
O referido caso tem sido utilizado como norte jurisprudencial sobre o assunto desde o ano de 2013 e que, em vista da evidente relevância da matéria versada, foi objeto de Despacho presidencial de Michel Temer em 2017 que aprovou o Parecer 001/2017/GAB/CGU/AGU. Neste, ficou ratificado o dever da Administração Pública Federal em observar e dar efetividade às condicionantes fixadas na Decisão da PET 3.388/RR (Caso Reserva Raposa Serra do Sol).
Desde o último dia 8 de maio o Despacho encontra-se com efeitos suspensos por conta de liminar deferida à Comunidade Indígena Xokleng pelo ministro Edson Fachin, no transcurso do Recurso Extraordinário 1017365.
O PL agora tramita no Senado como PL 2903/23, de relatoria da senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS). Apesar da grande pressão da bancada ruralista, o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), negou o pedido de regime de urgência e afirmou que o texto irá correr de acordo com a agenda comum.
No Judiciário, a matéria é discutida através do RE 1017365, interposto pela Funai contra acórdão do TRF-4 que confirmou a sentença de primeira instância no que concerne à procedência da Ação de Reintegração de Posse ajuizada pela Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente (Fatma), em área administrativamente declarada como de tradicional ocupação dos índios Xokleng, localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás, em Santa Catarina.
Seu julgamento teve como início o voto do ministro relator Edson Fachin em 9 de setembro de 2021, que, em completo desacordo com o princípio da segurança jurídica, afastou as condicionantes estabelecidas na PET. 3388/RR sob o preceito de suposta desconsideração dos direitos indígenas como fundamentais. O voto também traz evidente prejuízo aos adquirentes de boa-fé, posto a não previsão de direito à compensação justa pela desapropriação de área total por parte da União.
Já o ministro Nunes Marques votou pelo não provimento do recurso, fundamentando-se no caso Reserva Raposa Serra do Sol.
O ministro Alexandre de Moraes rechaçou em seu voto a possibilidade de fixação do marco temporal sob a argumentação de que, prevalecendo a referida hipótese, a demarcação de terras de uma comunidade retirada à força do local antes da promulgação da Constituição seria impossível e evidente flagrante aos direitos indigenistas.
Em contrapartida ao voto do relator, vislumbrou aspectos positivos aos produtores rurais como a responsabilidade da União em indenizar terras adquiridas de boa-fé por seu valor total e possíveis casos de compensação com terras equivalentes em outras regiões aos povos originários.
O julgamento está suspenso pelo pedido de vista do ministro André Mendonça.
Advindo do Recurso Extraordinário foi reconhecida a Tese de Repercussão Geral 1031, que em 2021 atingia o julgamento de outros 82 processos, e será responsável pela definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena.
A concomitância de apreço da mesma matéria pelos poderes citados é a exemplificação perfeita de problemas frequentes na atualidade: o descumprimento do princípio de harmonia entre os três poderes e da previsibilidade.
O Legislativo, em pleno gozo de sua competência, está vertendo em texto legal o entendimento já exarado pela Suprema Corte, conferindo à jurisprudência o manto da imutabilidade, conforme preceitua o artigo 5°, inciso XXXVI, da Carta Magna.
Não se demonstra plausível que após dez anos, aparentemente arrependido de sua decisão, o STF resolva se tornar revisor de si mesmo. Utilizando-se da impossibilidade de vincular o Acórdão emanado em sede de Ação Popular (PET 3.388/RR), a Suprema Corte parece buscar maneira para eximir-se de um precedente por ela mesma criado.
A incerteza quanto às consequências que permeiam a dúvida sobre quem irá vencer a queda de braço vigente entre os poderes é grande, porém se espera que o direito de legislar seja respeitado e garantido ao poder que lhe é devido e, futuramente, o projeto de lei aprovado, resguardando o direito adquirido, ato jurídico perfeito e principalmente a coisa julgada.
Ainda, caso seja assegurada a preferência ao Legislativo para tratar sobre a matéria, conforme prevê a Constituição Federal, em caso de necessidade evidente, o texto da Lei poderá ser posteriormente analisado em caráter de Ação do Controle de Constitucionalidade, cenário ideal de cumprimento aos preceitos constitucionais, independência e cooperação dos Três Poderes.
Maria Letícia Mesquita é sócia da área Cível no escritório Diamantino Advogados Associados (DAA)
Publicado originalmente na Folha de São Paulo (Jota), em 18/7/2023