IMPOSTO HÍBRIDO
Governo apela ao ‘‘jeitinho’’ para instituir o Imposto sobre Grandes Fortunas

Por Gabriel Hercos

Como parte da segunda fase da Reforma Tributária, o Ministério da Fazenda apresentou o Projeto de Lei 1.087/2025, que cria o chamado ‘‘Imposto de Renda da Pessoa Física Mínimo’’ (IRPFM), voltado a contribuintes com rendimentos anuais superiores a R$ 600 mil. Na prática, trata-se de um ‘‘jeitinho’’ de instituir o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) sem o rito adequado previsto na Constituição Federal.

A proposta impõe uma alíquota mínima efetiva sobre uma base de cálculo artificialmente ampliada, que inclui até rendimentos hoje isentos, como, por exemplo, a tributação dos dividendos. A narrativa oficial do governo é que a mudança terá como objetivo zelar pela justiça fiscal e redistribuição de renda.

O desenho do projeto revela ‘‘cheiro’’ de IGF, ‘‘cor’’ de IGF, ‘‘consistência’’ de IGF e ‘‘aparência’’ de IGF. Não seria IGF?

O IGF é um tributo previsto na Constituição cuja finalidade é tributar o patrimônio acumulado por pessoas com elevada capacidade econômica. Diferentemente dos impostos sobre renda ou consumo, ele incide sobre a totalidade dos bens e direitos de um contribuinte, considerando seu valor líquido. Acontece que esse tributo nunca foi instituído na prática, por decisão do Congresso.

Preferências ideológicas à parte, a realidade jurídica é uma só: a tentativa de criar algo semelhante ao IGF por meio de lei ordinária, como no caso do IRPFM, viola a Constituição Federal. Certos tributos só podem ser instituídos por meio de Lei Complementar, e o IGF é um deles.

Leis complementares e leis ordinárias se distinguem em dois aspectos principais: um relacionado ao conteúdo e outro ao processo de aprovação. No campo material, a Constituição determina expressamente os temas que devem ser regulamentados por lei complementar – como no caso do IGF.

Já a lei ordinária é usada para disciplinar as demais matérias que não exigem um tratamento específico ou mais rígido indicado pela Constituição, funcionando como a regra geral dentro do processo legislativo.

Do ponto de vista formal, a diferença central está no número de votos necessários para aprovar cada tipo de norma. Uma lei complementar só é aprovada com o apoio da maioria absoluta dos membros da respectiva Casa Legislativa – o que significa mais da metade do total de parlamentares, independentemente do número de presentes. Já a lei ordinária exige maioria simples; ou seja, a maioria dos votos dos parlamentares presentes à sessão, respeitado o quórum mínimo.

O IRPFM se assemelha, na essência, a um tributo sobre o patrimônio. A base de cálculo é artificialmente ampliada. O projeto, assim, cria o IGF dentro do Imposto sobre a Renda de Pessoa Física.

O Executivo estima que a medida afetará 141 mil pessoas e beneficiará 14 milhões com isenção ou redução do Imposto de Renda (IR), até a faixa de R$ 5 mil. Ainda assim, a proposta esbarra em vício de origem, pois não há na Constituição flexibilização para se buscar justiça fiscal por descumprimentos de normas constitucionais.

O respeito às normas constitucionais é essencial em um estado democrático de direito. Se o objetivo é tributar os mais ricos, claramente o caso do IRPFM, o caminho correto é a instituição do IGF. Mas isso só pode ser feito por lei complementar. Não se pode aceitar o desrespeito ao texto constitucional, com o uso do IR como atalho para um imposto híbrido, que mistura renda e patrimônio.

Ainda que os fins possam ser bem-intencionados, como alega o Governo Federal, os meios escolhidos para alcançá-los destoam das regras constitucionais.

O respeito à Constituição Federal é condição indispensável para a legitimidade de qualquer política fiscal. Mas o que se vê, mais uma vez, é um governo apelando ao ‘‘jeitinho’’ para cobrir a gastança de uma política fiscal populista.

Gabriel Hercos é coordenador da área Tributária do escritório Diamantino Advogados Associados (DAA)