PATRIMÔNIO DIGITAL
Mãe consegue na Justiça o direito de herdar os dados do celular da filha falecida

Por Jomar Martins (jomar@painelderiscos.com.br)

Banco de Imagens/Imprensa TJSP

“O patrimônio digital pode integrar o espólio de bens na sucessão legítima do titular falecido, admitindo-se, ainda, sua disposição na forma testamentária ou por codicilo [manifestação de última vontade]”, diz o Enunciado 687 do Conselho da Justiça Federal (CJF), aprovado em maio de 2022 durante a IX Jornada de Direito Civil.

Em face do entendimento, a 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) acolheu apelação de uma mãe que teve negado o acesso ao conteúdo do smartphone de sua filha, falecida abruptamente, tanto pela Apple como pelo juízo de primeiro grau, quando passou a judicializar o pedido.

Com a reforma da sentença, a fabricante foi obrigada a transferir o ID da titular do aparelho à autora da ação, para viabilizar o desbloqueio de todo o conteúdo digital.

Para o relator da apelação, desembargador Carlos Alberto de Salles, embora inexista regulamentação específica, o patrimônio digital de pessoa falecida – considerado o seu conteúdo afetivo e econômico – pode integrar o espólio e, assim, ser objeto de sucessão.

‘‘Não se verifica justificativa para obstar o direito da única herdeira de ter acesso às memórias da filha falecida, não se vislumbrando, no contexto dos autos, violação a eventual direito da personalidade da de cujus [falecida], notadamente pela ausência de disposição específica contrária ao acesso de seus dados digitais pela família. Acrescente-se, ainda, que não houve resistência da apelada ao pedido de transferência de acesso à conta da falecida, desde que houvesse prévia decisão judicial a esse respeito”, cravou no acórdão.

Ação de obrigação de fazer

Maria Aparecida Rocha ajuizou ação de obrigação de fazer para compelir a Apple Computer Brasil S/A a desbloquear o smartphone de sua filha Natália, falecida abruptamente em abril de 2021, a fim de poder acessar vídeos, fotos, conversas e mensagens. Afinal, por ser a única herdeira, entende ter direito aos bens deixados pela filha – o que abrange o acervo digital.

Após a citação do juízo da 6ª Vara Cível da Comarca de Barueri (SP), a empresa apresentou contestação. Em síntese, sustentou que apenas o usuário pode desbloquear do aparelho. Em adendo disse que, embora seja impossível acessar o celular sem a senha, existem outras opções para obter dados pessoais que porventura tenham sido salvos na nuvem. Seria necessário, entretanto, informar à Apple o ID de Natália.

Sentença de improcedência

A juíza Maria Elizabeth de Oliveira Bortoloto julgou improcedente a ação, entendendo que a liberação de acesso ao material fere direitos fundamentais garantidos na Constituição da República, principalmente os direitos de personalidade elencados no artigo 5º, inciso X.

‘‘Em que pese a incalculável dor da perda de uma filha, não pode tal sentimento se sobrepor aos direitos fundamentais à intimidade e à privacidade de quem se foi e, consequentemente, já não mais pode expressar a sua vontade. Eis, em suma, a precípua razão pela qual o presente pedido não há de prosperar’’, resumiu na sentença.

Para a julgadora, se, em vida, a falecida não se manifestou sobre o acesso às suas informações, torna-se descabida a concessão desse direito aos herdeiros, salvo se houvesse indício de crime – o que não ocorre no caso dos autos.

‘‘Não é exagero dizer, a bem da verdade, que o aparelho objeto do presente litígio representa, tal qual um diário, o âmago do indivíduo, sendo esse fato motivo suficiente para que incida a tutela jurisdicional, de modo a proteger o direito à intimidade contra a intervenção de outrem’’, concluiu, enterrando a pretensão da parte autora.

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1017379-58.2022.8.26.0068 (Barueri-SP)

 

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