Por Jomar Martins (jomar@painelderiscos.com.br)
Apresentar créditos falsos ao juízo da recuperação judicial, originários de lide trabalhista simulada, é crime previsto no artigo 175 da Lei de Recuperação Judicial e Extrajudicial (Lei 11.101/05). O delito se consuma no instante em que o agente pratica o ato fraudulento, independentemente da obtenção de vantagem, bastando o perigo de lesão ao bem jurídico protegido – qual seja, o interesse dos credores.
O fundamento é da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) ao confirmar sentença que condenou três empresários (um deles, ex-gerente) por habilitação de crédito trabalhista proveniente de lide simulada perante o juízo de recuperação judicial da Corsetti Alimentos, uma empresa centenária da Serra gaúcha.
A manobra ilegal foi descoberta graças à diligência de um diretor de Secretaria de Vara Trabalhista que, na prática, impediu que o ex-gerente, o reclamante, embolsasse R$ 3,4 milhões, prejudicando os demais credores da recuperação judicial. À época, a empresa devia mais R$ 30 milhões só ao fisco.
Possível bonificação milionária
O relator das apelações criminais, desembargador Julio Cesar Finger, resumiu bem o cerne do delito que envolveu o então gerente João Francisco Teixeira Mota e os dois sócios-administradores da Corsetti. ‘‘Trata-se de contrato de trabalho, com aditivo de bonificação, envolvendo empresa em notória dificuldade financeira, que teria firmado contrato de possível bonificação milionária com gerente da instituição, sem adotar maiores formalidades no registro do contrato. Soma-se a isso o fato de que a habilitação desse crédito ocorreu mesmo sem homologação no processo trabalhista’’, cravou Finger no acórdão, referendando a sentença na íntegra.
Os três denunciados ainda tentaram derrubar a condenação do TJ-RS, aviando recurso especial (REsp) e recurso extraordinário (RE), respectivamente ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF). Os recursos foram inadmitidos pela Segunda Vice-Presidência da Corte, que faz a admissibilidade. Em decisão monocrática proferida no dia 6 de abril de 2022, o segundo vice-presidente do TJ-RS, desembargador Antonio Vinicius Amaro da Silveira, negou seguimento, mantendo íntegro o acórdão da 4ª Câmara Criminal.
A denúncia do Ministério Público estadual
Segundo o Ministério Público estadual, Geraldo Augusto Corsetti e Giovani Medeiros, sócios e administradores da Produtos Alimentícios Corsetti Indústria e Comércio, junto com o ex-gerente e empresário João Francisco Teixeira Mota, se associaram para fraudar a recuperação judicial da empresa. Os réus foram incursos nas sanções do artigo 175 da Lei 11.101/05 –‘‘Apresentar, em falência, recuperação judicial ou recuperação extrajudicial, relação de créditos, habilitação de créditos ou reclamação falsas, ou juntar a elas título falso ou simulado: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa’’. A denúncia foi ajuizada em 12 de julho de 2016, na 4ª Vara Criminal da Comarca de Caxias do Sul.
Eles foram acusados de juntar, ao processo de recuperação judicial, protocolado no dia 17 de junho de 2012, uma habilitação de crédito trabalhista no valor de R$ 3,4 milhões, fundada em sentença trabalhista originária de lide simulada. O ‘‘beneficiado’’ pela manobra foi João Francisco Teixeira Mota, que havia ajuizado ação reclamatória contra a Corsetti, atribuindo à causa o valor de R$ 50 mil. Saíram prejudicados o fisco e outros credores da recuperanda.
Acusado nega conluio
Ouvido no primeiro grau, Mota negou o conluio. Afirmou que trabalhou na Corsetti por cinco anos, com salário mensal de apenas R$ 5 mil, conseguindo colocar as finanças da empresa em ordem. Informou que, no final de 2009, entrou um novo diretor, que assumiu toda a parte administrativa e quis lhe jogar para a fábrica – o que causou um desacerto e, por consequência, sua demissão em 2010.
Ele esclareceu que tinha um aditivo contratual de metas, prevendo remuneração extra sobre percentuais sobre vendas, de recuperação de clientes e de diminuição de prejuízo, e não sobre lucro, pois era uma empresa antiga, endividada. No entanto, assegurou que nunca recebeu este adicional. Por fim, disse que entrou imediatamente na Justiça do Trabalho para cobrar os direitos do aditivo contratual. E que ficou sabendo, três anos depois, que o seu crédito seria habilitado entre os credores da recuperação.
Segundo o MP-RS, a recuperanda, representada pelos dois sócios, não contestou a decisão do juízo trabalhista, favorável à Mota. Ou seja, não produziu prova testemunhal, não recorreu da sentença trabalhista nem se opôs aos cálculos de liquidação. O administrador judicial da recuperação, com base em informações prestadas pela recuperanda, também não apresentou objeção à pretensão de retificação do valor do crédito trabalhista. Assim, relacionou-o no quadro geral de credores, pedindo a expedição de alvará para o pagamento do valor atualizado – R$ 3,6 milhões.
Diligência do diretor da VT atrapalhou o plano
Tudo parecia correr bem, até que o então diretor da Secretaria da 5ª VT, Ricardo Fabris de Abreu, que atuava na área de execução trabalhista, achou estranho o crédito ter sido habilitado no processo de recuperação judicial sem a devida homologação no processo trabalhista – portanto, sem liquidez e certeza. Foi aí que resolveu pesquisar, de ofício, uma eventual ligação societária entre os envolvidos, notificando o juiz responsável pela recuperação judicial. Ele apurou que Mota, o maior credor da Corsetti, era sócio-administrador da Elfoods Indústria e Comércio de Alimentos Ltda. Esta empresa está estabelecida no mesmo endereço da Lovato S.A. e era maior credora quirografária da recuperanda. A Elfoods, por sua vez, tinha como sócia e responsável Vera Lúcia Carbonera Lovato, mãe de Eduardo Carbonera Lovato, responsável pela credora quirografária Lovato S.A., empresa que desde 2011 fabricava e comercializava os produtos da marca Corsetti. Vera também era sócia da empresa Moratta Imóveis Ltda, cujo sócio-administrador era Giovani Medeiros, diretor da empresa recuperanda. Fabris certificou tudo o que descobriu, registrando em parecer.
MPT-RS denuncia lide simulada
O Ministério Público do Trabalho em Caxias do Sul (MPT-RS), por sua vez, alertado por informações de que a lide era simulada, resolveu agir. Pediu a extinção do processo executivo e a condenação das partes (a empresa reclamada e o reclamante) em litigância de má-fé – o que foi acolhido pela 5ª Vara do Trabalho de Caxias do Sul e confirmado em grau de recurso pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4, RS).
Reclamados e reclamante ainda tentaram reverter a decisão do TRT-4, por meio da interposição de recurso de revista (RR), mas o Regional negou seguimento ao Tribunal Superior do Trabalho (TST). Segundo a decisão, ‘‘as partes incorreram em lide simulada, conduta antijurídica que macula o acesso das partes à justiça […]’’.
Sentença procedente
Após analisar detidamente documentos e relatos de depoimentos, o juiz João Paulo Bernstein julgou procedente a ação. Pelo acervo probatório, ele entendeu que houve indícios claros de ‘‘conluio doloso’’ entre João, Gilberto e Giovani, para simular lide com o objetivo de criar um crédito trabalhista privilegiado elevado, prejudicando os outros credores. Ou seja, restaram restarem plenamente comprovadas a materialidade e a autoria do delito narrado pelo MP, ‘‘que recai induvidosamente sobre os três acusados’’, frisou ao proferir a sentença.
Para o juiz, embora não fizesse mais parte da dos quadros da Corsetti ao tempo da habilitação do crédito na recuperação judicial, João tinha uma série de outras ligações empresariais em comum e estava conluiado com Gilberto e Giovani, que geriam a empresa. Tudo concatenado, segundo o julgador, ficou provado que o ‘‘suposto crédito trabalhista milionário’’ de João foi dolosamente incluído antes de estar liquidado e certo.
‘‘Logo, ao contrário do que alega a defesa de João, a inexistência e a falsidade do vergastado crédito trabalhista ficaram evidenciadas, não apenas pelo depoimento de Ricardo [testemunha], mas também pelas decisões judiciais trabalhistas de 1º e 2º graus que reconheceram simulação da lide, as quais têm, sim, valor probatório e não estão sendo aqui automaticamente consideradas, mas, sim, em cotejo com todo o acervo probatório existente nos autos’’, justificou.
Na fase de dosimetria das penas, Geraldo Augusto Corsetti, Giovani Medeiros e João Francisco Teixeira Mota foram condenados a dois anos e seis meses de reclusão, além do pagamento de 30 dias-multa, na razão unitária de 1/30 do salário mínimo. Em razão do montante das penas aplicadas e da primariedade dos réus, as penas privativas de liberdade foram substituídas por duas restritivas de direito: prestação de serviço comunitário (uma hora por dia de condenação) e pagamento de 10 salários mínimos em favor de entidade indicada pela Vara de Execuções Criminais.
Como efeito da condenação, nos termos do artigo 181, incisos I, II e III, da Lei nº 11.101/05, os condenados ficam impedidos de exercer qualquer atividade empresarial, bem como cargo ou função em conselho de administração, diretoria ou gerência das sociedades sujeitas àquela Lei, assim como de gerir empresa por mandato ou por gestão.
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Ação penal 010/2.16.0008355-0 (Caxias do Sul-RS)
Jomar Martins é editor da revista eletrônica PAINEL DE RISCOS