PROTEÇÃO PREVIDENCIÁRIA
Juiz não é prisioneiro de laudo pericial ‘‘lacônico’’ e ‘‘inservível’’, decide TRF-4

Por Jomar Martins (jomar@painelderiscos.com.br)

Reprodução internet

Ao decidir sobre a concessão de um benefício previdenciário, o juiz não precisa ficar restrito às conclusões do laudo da perícia médica judicial, pois lhe é facultada ampla e livre avaliação da prova. Assim, deve interpretá-lo, sempre, sob a ótica redutora de vulnerabilidades sociais que permeia o nosso ordenamento jurídico.

Com a prevalência deste fundamento, a maioria da 11ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), com sede em Florianópolis, derrubou sentença que negou a concessão de benefício por incapacidade a um segurado do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) em Quilombo (SC).

Atividade braçal resultou em patologia ortopédica

O segurado é agricultor, tem 60 anos, baixa escolaridade, sempre exerceu a atividade braçal e conseguiu juntar documentos, do sistema público de saúde, mostrando que é portador de patologia ortopédica crônica, degenerativa e incapacitante. Sem condições físicas de trabalhar, ele bateu às portas do INSS para tentar o auxílio-doença ou, mesmo, a aposentadoria por invalidez.

No primeiro grau, o juízo da Vara Única da Comarca de Quilombo – que julga ações previdenciárias pela competência delegada – negou o pedido, tomando como base para decidir o sucinto laudo do perito judicial – que não ‘‘deu peso’’ à documentação trazida pelo autor. Afinal, no dizer do perito, ‘‘o autor não comprovou ser portador de patologia ortopédica incapacitante’’. Em outras palavras, se mostrou apto ao trabalho.

‘‘Diante das constatações do perito judicial e da documentação carreada aos autos, portanto, inegável a inexistência de preenchimento dos requisitos que ensejam a concessão de auxílio-doença previdenciário e, por esta razão, o autor não faz jus ao benefício’’, sintetizou, na sentença, a juíza Jaqueline Fátima Rover.

Voto divergente mudou a sorte da ação no TRF-4

Inconformado com a sentença, o autor apelou ao TRF-4, corte especializada em revisar decisões de Direito Previdenciário. O relator da apelação, entretanto, seguiu na linha do juízo de origem, não reconhecendo a incapacidade laboral.

‘‘Embora não esteja adstrito à perícia, a conclusão do laudo pericial somente poderá ser afastada pelo julgador com amparo em robusto contexto probatório, uma vez que o perito do juízo possui o conhecimento técnico necessário à solução da controvérsia e se encontra em posição equidistante das partes, mostrando-se imparcial e com mais credibilidade’’, cravou, no voto, o então juiz federal convocado Marcos Roberto Araújo dos Santos – hoje desembargador.

Desa. Eliana Paggiarin foi o voto vencedor
Foto: Imprensa TRE-SC

O relator, entretanto, ficou vencido neste julgamento. O voto vencedor no colegiado, que definiu a questão a favor do segurado, partiu da desembargadora Eliana Paggiarin Marinho, por entender que a prova pericial não se reveste de valor absoluto. Assim, ela conseguiu formar maioria para conceder ao autor o benefício por incapacidade temporária desde julho de 2019.

Perito não disse por que o autor tinha capacidade laboral

Na percepção da desembargadora, que esmiuçou o laudo, o perito limitou-se a afirmar capacidade laboral sem ao menos explicar os motivos de tal conclusão. Afinal, no laudo conclusivo da perícia, não há referência ao histórico laboral, à anamnese (coleta de dados do paciente) nem aos achados do exame físico.

Para a julgadora, trata-se de ‘‘laudo lacônico’’, que não traduz as condições físicas do autor no momento do exame técnico, sendo ‘‘inservível’’ para verificação de capacidade para o desempenho da atividade de agricultor que, sabidamente, demanda esforços físicos de moderados a severos.

‘‘Na hipótese, ainda que o laudo pericial realizado tenha concluído pela aptidão laboral da parte autora, a confirmação da existência da moléstia incapacitante referida na exordial, corroborada pela documentação clínica juntada aos autos, demonstra a efetiva incapacidade para o exercício da atividade profissional habitual, o que enseja a concessão do benefício de auxílio por incapacidade temporária.’’

O benefício só cessa com a recuperação do agricultor

Conforme a desembargadora, a data de cessação do benefício deve seguir, em regra, o prazo de recuperação estimado pelo perito do juízo. E ser fixada de forma a resguardar o direito do segurado de formular eventual pedido de prorrogação perante o INSS, como prevê o artigo 60, parágrafos 8º e 9º, da Lei 8.213/1991.

‘‘No caso, não há prazo de recuperação sugerido. Desta forma, o benefício deve ser mantido até 60 dias após o efetivo restabelecimento, a fim de possibilitar pedido de prorrogação pelo segurado, na hipótese de manutenção do quadro incapacitante’’, fulminou no voto divergente.

Clique aqui para ler o acórdão do TRF-4

Clique aqui para ler a sentença da Justiça estadual de SC

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TERRAS INDÍGENAS
Queda de braço entre os poderes no debate do marco temporal

Por Maria Letícia Mesquita

Diamantino Advogados Associados

Está em pauta nos debates nacionais o imbróglio sobre a demarcação de terras indígenas, prevista no artigo 231 da Constituição. Aprovado na Câmara dos Deputados com 324 votos a favor e 131 contra, o PL do Marco Temporal é o pontapé inicial para a manutenção da segurança jurídica e garantia de isonomia nos atos discricionários da Funai. Infelizmente, apesar de pautado em decisão exarada pelo próprio STF, ele abre caminho para mais um embate entre o Legislativo e o Judiciário.

No texto aprovado, entre outras previsões, estão as 19 condicionantes estabelecidas pela Suprema Corte no julgamento do caso da Reserva Raposa Serra do Sol e, em especial, a fixação do marco temporal da promulgação da Constituição de 1988 para demarcação de terras de povos indígenas.

O referido caso tem sido utilizado como norte jurisprudencial sobre o assunto desde o ano de 2013 e que, em vista da evidente relevância da matéria versada, foi objeto de Despacho presidencial de Michel Temer em 2017 que aprovou o Parecer 001/2017/GAB/CGU/AGU. Neste, ficou ratificado o dever da Administração Pública Federal em observar e dar efetividade às condicionantes fixadas na Decisão da PET 3.388/RR (Caso Reserva Raposa Serra do Sol).

Desde o último dia 8 de maio o Despacho encontra-se com efeitos suspensos por conta de liminar deferida à Comunidade Indígena Xokleng pelo ministro Edson Fachin, no transcurso do Recurso Extraordinário 1017365.

O PL agora tramita no Senado como PL 2903/23, de relatoria da senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS). Apesar da grande pressão da bancada ruralista, o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), negou o pedido de regime de urgência e afirmou que o texto irá correr de acordo com a agenda comum.

No Judiciário, a matéria é discutida através do RE 1017365, interposto pela Funai contra acórdão do TRF-4 que confirmou a sentença de primeira instância no que concerne à procedência da Ação de Reintegração de Posse ajuizada pela Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente (Fatma), em área administrativamente declarada como de tradicional ocupação dos índios Xokleng, localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás, em Santa Catarina.

Seu julgamento teve como início o voto do ministro relator Edson Fachin em 9 de setembro de 2021, que, em completo desacordo com o princípio da segurança jurídica, afastou as condicionantes estabelecidas na PET. 3388/RR sob o preceito de suposta desconsideração dos direitos indígenas como fundamentais. O voto também traz evidente prejuízo aos adquirentes de boa-fé, posto a não previsão de direito à compensação justa pela desapropriação de área total por parte da União.

Já o ministro Nunes Marques votou pelo não provimento do recurso, fundamentando-se no caso Reserva Raposa Serra do Sol.

O ministro Alexandre de Moraes rechaçou em seu voto a possibilidade de fixação do marco temporal sob a argumentação de que, prevalecendo a referida hipótese, a demarcação de terras de uma comunidade retirada à força do local antes da promulgação da Constituição seria impossível e evidente flagrante aos direitos indigenistas.

Em contrapartida ao voto do relator, vislumbrou aspectos positivos aos produtores rurais como a responsabilidade da União em indenizar terras adquiridas de boa-fé por seu valor total e possíveis casos de compensação com terras equivalentes em outras regiões aos povos originários.

O julgamento está suspenso pelo pedido de vista do ministro André Mendonça.

Advindo do Recurso Extraordinário foi reconhecida a Tese de Repercussão Geral 1031, que em 2021 atingia o julgamento de outros 82 processos, e será responsável pela definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena.

A concomitância de apreço da mesma matéria pelos poderes citados é a exemplificação perfeita de problemas frequentes na atualidade: o descumprimento do princípio de harmonia entre os três poderes e da previsibilidade.

O Legislativo, em pleno gozo de sua competência, está vertendo em texto legal o entendimento já exarado pela Suprema Corte, conferindo à jurisprudência o manto da imutabilidade, conforme preceitua o artigo 5°, inciso XXXVI, da Carta Magna.

Não se demonstra plausível que após dez anos, aparentemente arrependido de sua decisão, o STF resolva se tornar revisor de si mesmo. Utilizando-se da impossibilidade de vincular o Acórdão emanado em sede de Ação Popular (PET 3.388/RR), a Suprema Corte parece buscar maneira para eximir-se de um precedente por ela mesma criado.

A incerteza quanto às consequências que permeiam a dúvida sobre quem irá vencer a queda de braço vigente entre os poderes é grande, porém se espera que o direito de legislar seja respeitado e garantido ao poder que lhe é devido e, futuramente, o projeto de lei aprovado, resguardando o direito adquirido, ato jurídico perfeito e principalmente a coisa julgada.

Ainda, caso seja assegurada a preferência ao Legislativo para tratar sobre a matéria, conforme prevê a Constituição Federal, em caso de necessidade evidente, o texto da Lei poderá ser posteriormente analisado em caráter de Ação do Controle de Constitucionalidade, cenário ideal de cumprimento aos preceitos constitucionais, independência e cooperação dos Três Poderes.

Maria Letícia Mesquita é sócia da área Cível no escritório Diamantino Advogados Associados (DAA)

Publicado originalmente na Folha de São Paulo (Jota), em 18/7/2023