Por Jomar Martins (jomar@painelderiscos.com.br)
Sede do Cade, em Brasília
Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
A jurisprudência dos tribunais superiores admite a utilização, em processos administrativos e civis, de prova produzida no bojo de ação penal, desde que autorizada por juiz criminal e observados o contraditório e a ampla defesa – ainda que as partes do processo para o qual a prova será trasladada não tenham integrado o procedimento ou a ação criminal.
Orientando-se por este fundamento, a 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) negou apelação da Associação de Empresários Paranaense de Obras Públicas (Apeop), que tentou, em vão, derrubar as condenações impostas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), após processo administrativo demonstrar que atuou para formação de cartel em licitações de obras públicas no Paraná, fraudando o seu caráter competitivo.
‘‘Malgrado as lacunas existentes nas degravações, a prova testemunhal serve-lhe de complemento e confirma as suspeitas iniciais que levaram à instauração do processo administrativo, sendo perfeitamente possível constatar evidências de uma ação coordenada com o objetivo de influir no resultado de licitações públicas’’, escreveu no acórdão a relatora da apelação, desembargadora Maria de Fátima Freitas Labarrère.
Licitações públicas manipuladas
O litígio começou quando o Plenário do Tribunal Administrativo do Cade, por unanimidade, condenou a Apeop e seus dirigentes por infração à ordem econômica descrita no artigo 21, incisos II, III e VIII, cumulado com o artigo 20, incisos I a IV – ambos da Lei 8.884/94. Nesse julgamento, também restaram condenados administrativamente, por maioria, Gaissler Moreira Engenharia Civil Ltda, FEG Engenharia de Obras – ambas com sede em Curitiba – e o empresário Cláudio Bidoia, do ramo da construção civil.
Segundo aquele processo, os réus, sob a articulação da Apeop, agiram coordenadamente para a formação de cartel. O modus operandi consistia em manipular licitações destinadas à contratação de obras públicas, em proveito de seus integrantes, mediante prática denominada de bid rigging. A expressão pode ser traduzida como ‘‘lance desonesto’’ ou ‘‘manipulação de lances’’.
Conforme a apuração do Cade, a Apeop exercia papel fundamental na organização do conluio, já que possuía prévio conhecimento acerca das empreiteiras que participariam das licitações. Com isso, a entidade promovia reuniões com as empreiteiras e combinava antecipadamente o resultado dos certames. Nessas reuniões, ficava definido que empreiteira seria agraciada em cada licitação – se por meio de ‘‘sorteio’’ ou por meio de ‘‘fila’’. As licitantes vitoriosas pagavam determinada quantia, parcialmente repassada a servidores públicos envolvidos na fraude.
Em diversas oportunidades, as participantes do cartel compartilhavam informações sobre estratégias comerciais ou sobre os valores que seriam consignados nas propostas em licitações nas quais o conluio atuaria. Por infrações constatadas em duas licitações promovidas pela Coordenação da Região Metropolitana de Curitiba (Comec) – Concorrências 2/2004 e 5/2004 –, o Cade multou os réus em R$ 210 mil – valor posteriormente elevado para R$ 310,9 mil, em função multas e juros moratórios.
Finalmente, com fundamento no inciso II do artigo 24 da Lei 8.884/1994, os ‘‘representados’’ foram penalizados com a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais. E, com base na alínea ‘‘b’’ do inciso IV do mesmo artigo, o Cade emitiu recomendação para o Ministério da Fazenda não conceder parcelamento de tributos federais e ainda cancelar os incentivos fiscais ou subsídios públicos por ventura concedidos.
Ação anulatória
Inconformada com a multa e as penalidades, a Apeop protocolou ação anulatória na 3ª Vara Federal de Curitiba em face do Cade, argumentando que a decisão condenatória se baseou, unicamente, em degravações/transcrições desprovidas dos áudios originais e da necessária perícia – das quais não teve acesso. Ou seja, houve cerceamento do exercício do contraditório e da ampla defesa.
Disse que a inexistência de individualização das condutas lesivas, praticadas, em tese, pela entidade e seus associados e prepostos, igualmente prejudicou o exercício do direito de defesa.
Alegou, também, que as degravações são provas ilícitas, pois derivadas de materiais furtados por duas ex-funcionárias da Apeop. Apontou, por fim, que o policial responsável pela degravação é irmão de criação das duas – o que não ficaria provado no curso do processo. Desse modo, concluiu a defesa da entidade, as degravações/transcrições não se mostram imparciais.
Sentença improcedente
O juiz federal Marcus Holz julgou improcedente a ação anulatória, por não constatar ilegalidade no Processo Administrativo número 08012.009382/2010-90 e nas sanções aplicadas à parte autora, nem prejuízo à ampla defesa e ao exercício do contraditório.
Ao fundamentar a sua decisão, ele afirmou que as degravações trasladadas para o processo administrativo originaram-se de prova produzida no curso de ação penal. Trata-se da denominada prova emprestada.
‘‘O emprego de provas confeccionadas em outro processo amolda-se aos princípios da economia processual (dispensando-se a produção de prova já existente) e da busca da verdade possível (em especial diante de hipóteses em que a repetição da prova é impossível ou excessivamente onerosa). Independentemente da natureza apresentada no processo originário, a prova emprestada ingressa no outro processo sob a forma de prova documental – submetendo-se, assim, ao contraditório e à ampla defesa.’’
O julgador derrubou, também, o argumento de que a entrega ilícita das gravações, pelas ex-funcionárias, macularia as provas obtidas no curso das apurações, tornando-as ilegais. ‘‘Como se sabe, cada vez mais tem ganhado notoriedade, no cenário jurídico, a figura do whistleblower (traduzido livremente como assoprador de apito). O termo refere-se à pessoa que, fazendo parte de uma instituição pública ou privada, voluntariamente leva ao conhecimento da autoridade competente informações relevantes acerca de ilícito civil ou criminal, a exemplo de atos de corrupção, fraudes, desperdício de recursos públicos etc’’, explicou na sentença.
O titular da 3ª Vara Federal de Curitiba observou que, à época da instauração do processo administrativo, vigorava a Lei 8.884, de 1994, que transformou o Cade em autarquia e estabeleceu infrações contra a ordem econômica. O artigo 30 diz que a instauração de processo administrativo tendente à imposição de sanções administrativas, por parte da antiga Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça, necessita apenas de indícios de materialidade e autoria referentes à prática de infração à ordem econômica.
Segundo o julgador, a Apeop tinha pleno conhecimento das possíveis condutas e fatos apurados no processo administrativo. Assim, não se poderia falar de suposta ausência de individualização adequada das condutas investigadas.
No tocante à tese de que as penas cominadas à entidade seriam excessivas ou desproporcionais, registrou que, embora as infrações houvessem sido praticadas sob a égide da Lei 8.884/94, o Cade aplicou as previsões inseridas na Lei 12.529/11 (legislação superveniente que sucedeu a Lei 8.884/94), já que mais benéficas aos representados.
Além disso, destacou que os acórdãos proferidos pelo Cade gozam de presunção de legitimidade e veracidade. Assim, sua desconstituição está condicionada à apresentação, pela parte interessada, de prova plena e inequívoca da ilegalidade – o que não ocorreu nestes autos.
Neste cenário, arrematou, compete ao Poder Judiciário apreciar apenas a regularidade do processo administrativo, sem entrar no seu mérito, a não ser na hipótese de evidente abuso de poder, arbitrariedade ou ilegalidade perpetrada pela Administração Pública. ‘‘Afinal, os atos administrativos, em especial quando alinhados ao exercício do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, revestem-se de presunção de veracidade.’’
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5002130-45.2018.4.04.7000 (Curitiba)
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