Por Eduardo Lima Porto
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Eduardo Lima Porto
O presente artigo tem por objetivo expressar a opinião particular do autor, na qualidade de investidor em ações e atuante no setor agrícola há vários anos, visando contribuir para a melhoria do ambiente de negócios e fomentar o debate, principalmente entre amigos, clientes da LucrodoAgro Consultoria e demais agentes do agronegócio em relação às operações no mercado de capitais. Os comentários estão baseados na análise de informações financeiras públicas disponibilizadas na internet, não constituindo qualquer conhecimento privilegiado.
O autor declara expressamente não ser proprietário de empresas de insumos agrícolas. Enfatiza a importância de os leitores conduzirem as suas próprias análises e considerarem as opiniões de especialistas independentes, antes da tomada de qualquer decisão de investimentos e/ou a realização de negócios de qualquer natureza.
Portanto, a opinião do autor não constitui recomendação de investimento, nem de desinvestimento.
I – Goodwill – A problemática da consistência contábil
Nos últimos anos, o mercado de insumos agrícolas registrou transações bilionárias, envolvendo fusões e aquisições de grandes companhias multinacionais.
Os casos mais emblemáticos foram a compra da Monsanto pela Bayer, a fusão entre DuPont e Dow Chemicals e a aquisição da Syngenta pela ChemChina. Em menor escala, ocorreram outras operações semelhantes ao redor do mundo.
Pelo que se sabe, quase todas as operações envolveram o pagamento de somas substanciais a título de ÁGIO sobre o valor justo das companhias adquiridas, cujo registro contábil é definido como goodwill e lançado como Ativo Intangível.
Por ser de natureza intangível ou incorpórea, a avaliação está sujeita a um elevado grau de subjetividade, o que, não raras vezes, possibilita a ocorrência de fraudes contábeis. Por exemplo, uma empresa pode inflar artificialmente o valor do goodwill a fim de melhorar o seu balanço patrimonial, acobertando tecnicamente eventuais aquisições superfaturadas.
As normas contábeis determinam que as empresas realizem periodicamente testes de impairment, a fim de avaliar se as expectativas de lucros futuros permanecem ou não coerentes com as premissas que justificaram o pagamento do ÁGIO. Se houver baixa no valor contábil do goodwill, haverá uma redução imediata no Patrimônio Líquido e afetará diversos indicadores financeiros, além de prejudicar a credibilidade junto a investidores e financiadores.
Cabe mencionar que as empresas citadas acima foram obrigadas a realizar baixas contábeis que atingiram bilhões de dólares, pois os lucros futuros se mostraram distantes do que havia sido inicialmente previsto, o que pode ter acontecido por diversos fatores, incluindo a desaceleração da demanda internacional, preços descendentes, pressões regulatórias e até mesmo por erros grosseiros na construção das projeções que teriam justificado o pagamento do ÁGIO.
Se as grandes multinacionais de agroquímicos forçosamente tiveram de ajustar o Ativo Intangível, a fim de refletir a realidade nua e crua de negócios que resultaram ruins, eventualmente afetados por uma miríade de riscos de difícil previsibilidade e controle, por que as varejistas de insumos agrícolas não estariam submetidas a uma situação semelhante?
II – AGROGALAXY (AGXY3) – Rápida análise do Goodwill e de outros itens
A Agrogalaxy (AGXY3) possui ações listadas na B3, o que permite analisar as suas informações financeiras de forma acessível e transparente. A empresa publicou os resultados do 3T23 recentemente, os quais serviram de base para a interpretação.
A posição consolidada em 30/09/23, totalizou um saldo do Ativo Não-Circulante de R$ 1.708.486.000,00, cuja composição dos principais itens é a seguinte:
=> Ativo Imobilizado (já descontada a depreciação) = R$ 212.349.000,00 (equivalente a 12,43% do Ativo Não-Circulante);
=> Ativo Intangível = R$ 1.078.742.000,00 (equivalente a 63,14% do Ativo Não-Circulante)
=> Relação Intangível / Imobilizado = 5,08x;
Do total registrado no Ativo Intangível, dois itens chamam poderosamente a atenção em função da sua proporção sobre o total do Ativo Não Circulante: (i) ÁGIO por expectativa de rentabilidade futura no valor de R$ 691.439.000,00 (64,09%); (ii) Carteira de Clientes no valor de R$ 352.127.000,00 (32,64%).
Considerando a gravidade do cenário atual da produção agrícola, submetida a severidade da seca no Centro-Oeste e o excesso de chuvas no Sul, somado à volatilidade dos preços, nos parece que o Ativo Intangível da AGROGALAXY está revestido de elevada subjetividade, o que demanda cautela.
Por outro lado, o saldo do Patrimônio Líquido apurado no período foi de R$ 1.048.566.000,00 (menor do que o Ativo Intangível).
Nesse sentido, cabe transcrever o trecho do livro Valuation – Como Precificar Ações, de autoria de Alexandre Póvoa (pág. 108), que esclarece:
“Muitas são as razões que levam à necessidade de reconhecimento das perdas em um ativo, oriundas tanto de dentro quanto de fora da empresa”.
O autor indica a existência de ‘‘fontes internas’’, pontuando que uma performance econômica pior do que a esperada pode vir a motivar a revisão contábil. No que diz respeito às ‘‘fontes externas’’, cita a elevação das taxas de juros, como um dos fatores causadores da redução de valor dos intangíveis.
A AGROGALAXY mencionou no relatório financeiro (3T23) que:
‘‘Em 30/09/23, a Companhia não identificou nenhum evento que indicasse a necessidade de efetuar um teste para verificação do valor recuperável (impairment) do intangível, apesar do resultado apurado do período, o que está aderente a sazonalidade das operações da Companhia’’.
A empresa vem adotando o mesmo posicionamento, pelo que foi verificado, desde 2020.
Entretanto, o último relatório (3T23) expressa um cenário mais preocupante:
– Significativo incremento do custo financeiro, na comparação com exercícios anteriores, para o financiamento das operações de curto prazo;
– Crescimento da inadimplência e da provisão para créditos de liquidação duvidosa;
– Violação do limite de endividamento determinado em cláusulas de covenants, o qual estabelece um máximo de 3,0x (relação Dívida Líquida/EBITDA), tendo atingido o índice de 4,2x;
– Margem líquida negativa;
– Prejuízo líquido de R$ 463 milhões;
– Dívidas que não estão garantidas por itens do Ativo Imobilizado, mas que se encontram respaldadas por ex-sócios;
– Retenção de aplicações financeiras (compromissadas), como parte das cláusulas de subordinação dos CRA’s, visando a cobertura de recebíveis eventualmente inadimplidos pelos clientes. O custo financeiro médio das emissões é elevado.
– Não há o registro do pagamento de DIVIDENDOS para os acionistas/investidores nos últimos exercícios, o que torna a expectativa de lucros futuros duvidosa.
A eventual não confirmação das expectativas de lucros futuros, combinada com uma descontinuidade potencial dos negócios da carteira de clientes, os quais não estão obrigados por meio de instrumentos contratuais a fazerem negócios com a companhia, significam, em nossa opinião, um RISCO REAL que pode ensejar a redução do valor recuperável (impairment) do Ativo Intangível, o que repercutiria negativamente sobre o saldo do Patrimônio Líquido e no cálculo de importantes indicadores de endividamento, como o Ativo Total/Exigível Total e o Patrimônio Líquido/Exigível Total.
A simples exclusão dos valores registrados no Ativo Intangível, para efeito de análise, expõe uma enorme fragilidade financeira.
Mesmo carregando uma pesada perda no valor das ações em 2023 (quase 50%), do anúncio de Fato Relevante dando conta de uma proposta de renegociação de dívidas de curto prazo no valor de R$ 839 milhões junto a três bancos, cuja aceitação e condições não estão plenamente confirmadas, além da renúncia de diretores com funções estratégicas ao longo do ano, a empresa comemorou um incremento da margem bruta e suas ações tiveram uma recuperação nos últimos dias, com indicações por parte de analistas financeiros de que o preço justo para o papel deveria situar-se em patamares que superam o dobro da cotação da atual.
Goodwill ou badwill, eis a questão.
Em breve, ampliaremos a análise sobre outras empresas do setor.
Eduardo Lima Porto é diretor da LucrodoAgro Consultoria Agroeconômica Ltda, com sede em Sinop-MT