SEM PRESUNÇÃO DE DANO
Prova de prejuízo ao erário em ação de improbidade reforça legitimidade da Justiça

Diamantino Advogados Associados

Por Matheus Cannizza e Geovanna Nicolete

Quando se trata de ações de improbidade administrativa, a boa técnica jurídica deve ser capaz de separar o clamor popular que usualmente cerca esses processos e aplicar a legislação conforme as características do caso concreto. Foi o que fez o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao decidir que os danos ao erário também devem ser comprovados em casos anteriores à Lei 14.230/2021, que reformou a Lei de Improbidade Administrativa (LIA).

Sob a relatoria do ministro Gurgel de Faria (REsp 1.929.658/TO), a 1ª Turma do STJ inaugurou um relevante movimento de virada jurisprudencial. O ministro esclareceu que, até então, vigorava na Corte a presunção de dano causado por atos considerados lesivos ao erário. Essa presunção, no entanto, não encontrava amparo direto no texto legal, mas derivava da consolidação das decisões anteriores do próprio STJ.

Em seu voto, o ministro Paulo Sérgio Domingues destacou a necessidade de superação do entendimento consolidado, observando que, até o advento da nova lei, era admitida ‘‘a possibilidade de condenação com base no artigo 10 da LIA quando os fatos representassem potencial perda patrimonial’’. O ministro relator acrescentou que a revisão do entendimento jurisprudencial abrange todo o rol do artigo 10 da LIA, de modo que ‘‘o dano presumido, para qualquer figura típica do artigo 10 da LIA […], não pode mais dar suporte à condenação pela prática de ato ímprobo’’.

A posição da 1ª Turma, portanto, representa um marco importantíssimo na mudança de jurisprudência, com impacto sobre todos os casos que ainda não transitaram em julgado. Esse entendimento traz maior racionalidade a processos contra pessoas que, muitas vezes, são demandadas com base em ilações ou acusações genéricas, sem a necessária individualização dos atos tidos como ímprobos ou a demonstração clara dos supostos danos causados.

A exigência de comprovação de dano efetivo reforça a necessidade de um esforço investigativo mais rigoroso por parte do Ministério Público e de outros órgãos de controle, que deverão demonstrar de maneira inequívoca o prejuízo sofrido pelo erário. Essa abordagem evita condenações automáticas baseadas em conjecturas ou suposições, assegurando maior respeito ao devido processo legal e ao princípio da ampla defesa.

No âmbito da administração pública, a decisão sublinha a importância do cumprimento estrito dos princípios da legalidade e da eficiência. A contratação sem licitação, como no caso analisado pelo STJ, embora permitida em situações excepcionais, deve ser fundamentada em critérios objetivos e devidamente justificada, sob pena de nulidade e responsabilização dos gestores.

A recente decisão, portanto, representa um avanço significativo na aplicação da Lei de Improbidade Administrativa, ao exigir a comprovação de dano efetivo ao erário, inclusive em casos anteriores à reforma de 2021. Essa mudança promove maior segurança jurídica, impedindo condenações baseadas apenas em presunções, e fortalece o respeito ao devido processo legal.

Ao enfatizar a necessidade de provas concretas, o STJ contribui para uma atuação mais criteriosa por parte dos órgãos de controle e reforça a importância de uma gestão pública responsável e transparente. A jurisprudência, assim, avança no sentido de equilibrar o combate à corrupção com a proteção dos direitos individuais, fortalecendo a legitimidade de todo o sistema de Justiça.

Matheus Cannizza e Geovanna Nicolete integram a área de contencioso cível estratégico do escritório Diamantino Advogados Associados

IMPRECISÃO TÉCNICA
Ação para buscar patrimônio de sócio de empresa falida é incidental, não autônoma, diz STJ

Reprodução Web

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o pedido para que o patrimônio pessoal do sócio seja alcançado na falência tem natureza processual de incidente, e não de ação autônoma. Desse modo, o ato judicial de primeiro grau que soluciona a questão é uma decisão interlocutória, e o recurso cabível para impugná-lo é o agravo de instrumento.

Na origem, foi apresentado nos autos da ação de falência de uma construtora de Porto Alegre o pedido de extensão dos efeitos da quebra da personalidade jurídica para a pessoa física do sócio. O juízo, ao julgar o pedido improcedente, tratou a pretensão como ‘‘ação de responsabilidade’’ e chamou o seu próprio pronunciamento de ‘‘sentença’’.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) não conheceu da apelação interposta por entender que se tratava de um incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Assim, o recurso cabível contra a decisão seria o agravo de instrumento.

Para a corte gaúcha, o princípio da fungibilidade recursal (que permite à Justiça, em certos casos, receber um recurso errado como se fosse o correto) não seria aplicável no caso, porque teria havido erro grosseiro na interposição de apelação para impugnar uma decisão interlocutória.

Ação de responsabilização de sócio não se confunde com incidente de desconsideração

A relatora do recurso especial (REsp) no STJ, ministra Nancy Andrighi, afirmou que a ação de responsabilização de sócios é demanda autônoma que segue o disposto no artigo 82 da Lei 11.101/2005. Segundo ela, esse procedimento tem como objetivo ressarcir a sociedade falida em razão de prática dos próprios sócios ou administradores e é decidido por ato judicial que tem a natureza de sentença, sendo cabível o recurso de apelação.

A ministra enfatizou que a ação autônoma de responsabilização não deve ser confundida com o caso em análise, que trata, na verdade, de incidente de desconsideração da personalidade jurídica –, instituto incluído na Lei de Falências em 2019, por meio do artigo 82-A, com o objetivo de responsabilizar pessoalmente o sócio pelas dívidas da falida.

A relatora lembrou que, quando o instituto da desconsideração ainda não havia sido integrado ao texto legislativo, o STJ já entendia que o patrimônio dos sócios poderia ser atingido, de forma incidental, nas hipóteses de fraude, abusos, desvios, entre outras, e em tais casos não era necessário o ajuizamento de ação autônoma, bastando um requerimento nos autos da falência.

De acordo com a ministra, tanto nos casos de desconsideração da personalidade jurídica quanto nos incidentes admitidos anteriormente pela jurisprudência do STJ, o recurso cabível é o agravo de instrumento, porque se trata de decisões interlocutórias, conforme o artigo 1.015, inciso IV, do Código de Processo Civil (CPC).

Imprecisão técnica justifica aplicação do princípio da fungibilidade

Ao determinar o processamento do recurso interposto em segunda instância, a ministra reconheceu que o comportamento do juízo ensejou dúvida objetiva quanto à natureza do ato judicial impugnado.

Segundo explicou, a imprecisão técnica do ato judicial – por exemplo, ao dizer que se tratava de uma ‘‘sentença’’ – afasta a configuração de erro grosseiro da parte recorrente e possibilita a aplicação do princípio da fungibilidade recursal para permitir a análise do recurso pelo tribunal de origem. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

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REsp 2135344

MICHELUCCIO
TJSP reconhece direito de uso de marca por restaurante após utilização prolongada sem oposição

A inércia prolongada do titular de uma marca em reivindicar o seu direito de uso exclusivo em determinado nicho de mercado leva à presunção de que o concorrente pode continuar utilizando tal sinal distintivo, especialmente se estiver localizado noutra cidade.

Esta, em apertada síntese, é a decisão da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo rejeitou alegação de uso indevido de marca em ação movida por Paschoal Café e Massas Ltda. (Micheluccio Pizza Artezanalle), localizada no Brooklin Paulista, em São Paulo, contra o Restaurante e Pizzaria Monte Alegre Ltda. (Micheluccio Pizzas), localizado em Sorocaba (SP).

Consta nos autos que a apelante (ré) utiliza a marca em disputa desde 1994, quando celebrou contrato de franquia com o titular do registro. Embora o registro da franqueadora tenha sido extinto em 2013, a empresa continuou a utilizar a marca sem oposição.

A apelada (autora da ação), por sua vez, somente obteve o registro do nome em 2016, e, embora tivesse conhecimento do uso da marca pela ré desde 2017, manteve-se inerte por seis anos, até o ajuizamento da ação.
Em seu voto, o relator do recurso de apelação, desembargador Rui Cascaldi, destacou que, considerando as peculiaridades do caso, entre elas o uso prolongado e de boa-fé da marca pela apelante há 30 anos; a inércia da apelada; a distância geográfica entre os estabelecimentos; e a ausência de comprovação de prejuízos, deve-se admitir a convivência entre as marcas, afastando-se a condenação.
‘‘Não se verifica no caso concreto risco de confusão entre os consumidores ou prejuízo à apelada. Isso porque os estabelecimentos estão situados em cidades distantes (São Paulo e Sorocaba), com público-alvo local e distinto (…), circunstância que afasta a possibilidade de desvio de clientela ou diluição da marca, permitindo a convivência harmônica entre os sinais distintivos’’, afirmou.
Os desembargadores Alexandre Lazzarini e Carlos Alberto de Salles completaram a turma julgadora.

A votação foi unânime. Redação Painel de Riscos com informações da Comunicação Social do TJSP.

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1002070-66.2023.8.26.0260 (São Paulo)

RACISMO
Estoquista discriminado por usar cabelo rastafari vai ganhar R$ 20 mil de reparação moral em SP

Foto ilustrativa/ Studio Thanan Rastafari

Impedir, restringir ou tratar diferenciadamente um empregado que faz uso de tranças ou de qualquer outro formato de cabelo associado à cultura negra, sem qualquer justificativa razoável, por si só, configura discriminação. Logo, a conduta patronal, por abusiva, dá margem à reparação por danos morais e à rescisão indireta.

Nesse passo, a 71ª Vara do Trabalho de São Paulo julgou procedente ação reclamatória para reconheceu a rescisão indireta do contrato de um estoquista de rede de varejo Compra Certa Comercial Ltda., vítima de discriminação racial  por causa do penteado afro rastafari no ambiente de trabalho.

Considerando que a situação se tornou insustentável e atingiu a honra e a dignidade do reclamante, a empresa foi condenada ao pagamento de R$ 20 mil por danos morais, além do pagamento de verbas rescisórias.

De acordo com os autos, certo dia, ao chegar ao estabelecimento com tranças, o reclamante ouviu do gerente que não poderia trabalhar com aquele visual, sendo-lhe recomendado retirar ou cortar o cabelo.

A testemunha do autor, ouvida em audiência, disse que presenciou o ocorrido e acrescentou que o chefe tirou uma foto do empregado e, em seguida, mandou-o para casa. Na ocasião, a vítima registrou boletim de ocorrência, que foi juntado aos autos como prova.

Comportamento desrespeitoso

A testemunha da ré, outro gerente presente no dia dos fatos, alegou que o comentário feito foi que o penteado não era ‘‘corte social’’, padrão da loja. Relatou também que, na hora, até brincou com ‘‘o novo visual do reclamante’’.

Entretanto, quando questionado pelo juízo se o penteado feito pelo reclamante seria um ‘‘corte social’’ e por qual motivo houve a distinção, a testemunha da ré não soube responder satisfatoriamente.

Para o juiz Farley Roberto Rodrigues de Carvalho Ferreira, o comportamento dos gerentes foi desrespeitoso e ofensivo. ‘‘Tal conduta, além de discriminatória, excedeu os limites do poder diretivo do empregador, pois evidenciado que, caso o reclamante não procedesse à mudança de visual, a empresa não o aceitaria em virtude das tranças’’.

Na sentença, o magistrado pontuou que o caso ressalta a maneira estrutural como o racismo se apresenta, a se portar sob a clandestinidade do ‘‘padrão da empresa’’. Para o julgador, atitudes racistas, como as manifestadas pelos gerentes, devem ser banidas de qualquer relação social por atingirem a honra e a dignidade da pessoa humana. ‘‘Nesse ponto, a responsabilidade da ré deriva do artigo 932 e 933 do Código Civil, por autorização do artigo 8º, §1º, da CLT’’, complementou.

Da sentença, cabe recurso ordinário trabalhista (ROT) ao Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2, São Paulo). Redação Painel de Riscos com informações da Secretaria de Comunicação Social (Secom) do TRT-2.

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ATOrd 1000693-29.2024.5.02.0071 (São Paulo)

GESTÃO PROFISSIONAL
Governança em empresas familiares: estruturas e instrumentos essenciais

Advogada Liège Fernandes Vargas, do escritório CPDMA

A governança corporativa em empresas familiares tem ganhado cada vez mais relevância no cenário empresarial brasileiro, no qual cerca de 90% das empresas possuem controle familiar. A ausência de um planejamento adequado para a sucessão do negócio e a dificuldade de manter a harmonia nas relações familiares, em muitos casos, culminam no fracasso da empresa após a terceira geração. Nesse contexto, a criação de mecanismos eficazes de governança e a implementação de estruturas formais são fundamentais para a continuidade e sustentabilidade dessas organizações.

As empresas familiares enfrentam o desafio de conciliar a gestão profissional do negócio com os valores e tradições familiares. A governança familiar, estruturada através da criação de conselhos, objetiva oferecer essa conciliação. O Conselho de Família, por exemplo, é um órgão (não societário) que possibilita a comunicação entre os membros familiares e auxilia na resolução de conflitos, na preservação dos valores da família e no planejamento da sucessão. Já o Conselho de Administração, órgão deliberativo previsto na Lei das Sociedades Anônimas, proporciona uma visão estratégica e imparcial sobre a gestão do negócio, sendo composto, muitas vezes, por membros externos que trazem uma abordagem mais técnica e profissional​.

Além dessas estruturas, a utilização de instrumentos jurídicos específicos é indispensável para assegurar a governança familiar. Nesse sentido, o Acordo de Sócios – também chamado de Acordo de Quotistas ou Acionistas, dependendo da natureza jurídica da sociedade – regula aspectos societários como a compra e venda de ações e o direito de voto, garantindo previsibilidade nas decisões empresariais futuras. Já o Protocolo Familiar, também conhecido como Estatuto Familiar, estabelece normas de convivência e responsabilidades entre os membros da família, envolvidos direta ou indiretamente no negócio, criando uma estrutura que minimiza conflitos internos e favorece a continuidade dos valores a serem passados ao longo das gerações.

Para implementação dessas estruturas de governança, podem ser utilizadas empresas no formato de holdings (as chamadas holdings familiares). Conceitualmente, a holding pode ser definida como uma pessoa jurídica que centraliza o controle organizacional e/ou patrimonial do grupo familiar, seja através de (i) uma holding pura, focada exclusivamente na gestão de participações em outras sociedades; (ii) uma holding mista, que agrega também outras atividades empresariais; ou, ainda, (iii) uma holding patrimonial, que tão somente administra o patrimônio familiar. Essas estruturas facilitam o planejamento sucessório e a administração do patrimônio, contribuindo para a perpetuação e preservação do negócio, podendo ainda acarretar a redução da carga tributária.

Analisando os desafios enfrentados por empresas familiares, um dos principais pontos de desgaste na relação familiar é a falta de interesse das gerações futuras em participar da gestão do negócio. Pesquisas recentes apontam que mais de 50% dos herdeiros não desejam se envolver diretamente na administração da empresa – pesquisa da consultoria KPMG mostra este quadro. Nesse cenário, é crucial que as famílias empresárias criem mecanismos de governança que permitam a continuidade do negócio, mesmo que a gestão direta passe a ser realizada por profissionais externos.

Ao mesmo tempo, é importante que os entes familiares que estão no controle e na gestão do negócio criem estruturas que fomentem as gerações mais novas a participarem e a entenderem as premissas familiares, oportunizando que estes tragam pontos de vista e mudanças do mundo contemporâneo que podem impactar diretamente na perpetuidade do negócio, principalmente aquelas de cunho tecnológico.

Dessa forma, ao combinar todos esses elementos, a governança corporativa familiar pode ser efetivamente implementada em diversas estruturas.

Ressalta-se, por fim, que as empresas familiares demonstram, muitas vezes, a dificuldade de separar o contexto empresarial da relação familiar, misturando os problemas de ambas as relações. Por tais razões, é recomendável que a implementação seja realizada também com auxílio de um consultor ou advogado; ou seja, um agente externo à relação familiar.

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Liège Fernandes Vargas é coordenadora da Área de Direito Societário do escritório Cesar Peres Dulac Müller Advogados (CPDMA)