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A responsabilidade pelos danos causados ao meio ambiente normalmente está associada àqueles que realizam alguma ação direta contra a natureza – como o indivíduo que ateia fogo na floresta, joga lixo nos rios ou constrói em áreas de proteção permanente (APPs).
No entanto, o sistema jurídico brasileiro – reconhecido internacionalmente por sua avançada legislação ambiental – traz uma abordagem mais profunda sobre o tema, ampliando as hipóteses de responsabilização para incluir também aqueles que, mesmo que indiretamente, contribuem para a degradação do ecossistema.
É nesse contexto que surge o conceito de poluidor indireto, que pode ser definido como quem, sem participar diretamente do ato de dano, de alguma forma favorece ou facilita a ocorrência do prejuízo ao meio ambiente. Assim, a responsabilidade ambiental no Brasil é mais extensa e preventiva, buscando proteger nossos bens naturais de forma efetiva e consciente.
Essa definição do poluidor indireto está prevista em dispositivos legais como o artigo 3º, inciso IV, da Lei 6.938/1981, segundo o qual pode ser considerado poluidor qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, responsável, direta ou indiretamente, por atividades que causam degradação ambiental.
Com a proximidade do Dia Mundial do Meio Ambiente – data celebrada em 5 de junho –, a reflexão sobre a responsabilidade do poluidor indireto e a importância de outras ações de preservação do planeta se tornam ainda mais necessárias.
No Superior Tribunal de Justiça (STJ), o tema vem sendo abordado em sua jurisprudência em decisões que reforçam, entre outros aspectos, a responsabilidade do poder público, especialmente em casos de omissão na fiscalização ambiental.
Responsabilização por omissão na preservação do meio ambiente
Um bom exemplo é o posicionamento adotado pela Segunda Turma, em abril de 2021, no AREsp 1.678.232. O colegiado manteve a condenação do Município e do Estado de São Paulo, além de outros réus, em uma ação civil pública (ACP) que apurava a responsabilidade sobre invasões e loteamentos clandestinos em áreas de risco e áreas públicas.
No entendimento da turma, o ente federado tem o dever de fiscalizar e preservar o meio ambiente e combater a poluição – conforme previsto no artigo 23, inciso VI, da Constituição Federal e no artigo 3º da Lei 6.938/1981 –, podendo sua omissão ser interpretada como causa indireta do dano, o que propicia sua responsabilidade objetiva.
O relator do processo, ministro Herman Benjamin, mencionou que o caso em análise também exige a interpretação conjunta dos artigos 13 da Lei 6.766/1979 e 225 da Constituição Federal, dos quais, para ele, é possível retirar a obrigação ‘‘de o Estado interferir, repressiva ou preventivamente, quando o loteamento for edificado em áreas tidas como de interesse especial, tais como as de proteção aos mananciais’’.
Ente público responde de forma objetiva e solidária, mas execução é subsidiária
No mesmo ano, o STJ aprovou a Súmula 652, a qual estabeleceu que a responsabilidade civil da Administração Pública por danos ao meio ambiente, decorrente de sua omissão no dever de fiscalização, é de caráter solidário, mas de execução subsidiária.
O entendimento, entretanto, já vinha sendo aplicado reiteradamente em julgados do tribunal, como no caso do REsp 1.376.199, também de relatoria do ministro Herman Benjamin, na Segunda Turma.
De acordo com o colegiado, a responsabilidade ambiental do ente público que se omite do dever-poder de controle e fiscalização é objetiva, solidária e ilimitada, mas a sua execução é de natureza subsidiária. Dessa forma, o ente só pode ser chamado quando o degradador original, direto ou material (devedor principal), não quitar a dívida, seja por total ou parcial exaurimento patrimonial ou insolvência, seja por impossibilidade ou incapacidade de cumprimento da prestação imposta pela Justiça, assegurado, sempre, o direito de regresso.
‘‘Apesar de se ter por certo a inexequibilidade de vigilância ubíqua, é mister responsabilizar, em certas situações, o Estado por omissão, de forma objetiva e solidária, mas com execução subsidiária (impedimento à sua convocação per saltum), notadamente quando não exercida, a tempo, a prerrogativa de demolição administrativa ou de outros atos típicos da autoexecutoriedade ínsita ao poder de polícia’’, afirmou o ministro Herman Benjamin.
O caso analisado teve como origem uma ACP na qual o Ministério Público buscava responsabilizar o Estado de São Paulo e uma imobiliária pela construção indevida de um imóvel em área de manancial, na faixa non aedificandi – isto é, onde geralmente não é possível construir por questões de segurança. Ao julgar recurso especial, a Segunda Turma condenou solidariamente a Fazenda Pública estadual e a empresa. A execução contra o Estado, contudo, foi subsidiária.
Solidariedade é a regra na responsabilidade civil por dano ambiental
Esse tipo de responsabilização atribuída aos entes públicos pela jurisprudência do STJ não se confunde, contudo, com outras situações de responsabilidade solidária entre os poluidores.
Essa diferenciação ficou clara no julgamento do REsp 1.631.143, no qual proprietários rurais de área próxima a um igarapé alegaram que um grupo de frigoríficos foi responsável pela degradação ambiental do local em razão do despejo inadequado de resíduos.
Ao STJ, uma das empresas do grupo alegou que os ribeirinhos, como particulares, não poderiam ser autores da ação de reparação por danos materiais, por suposta violação da Lei 7.347/1985. O frigorífico também declarou que a responsabilidade solidária das empresas não poderia ser presumida, sendo necessário a individualização das condutas.
O ministro João Otávio de Noronha, relator do caso na Quarta Turma, comentou que os autores do processo não buscaram a reparação ambiental de forma específica, mas o ressarcimento dos prejuízos pessoais que sofreram em virtude das atividades poluentes, não havendo invasão da atuação dos legitimados para propor ACP.
‘‘Na responsabilidade civil por dano ambiental, há solidariedade entre os poluidores. Tal decorre da Lei 6.938/1981, cujo artigo 14, parágrafo 1º, dispõe sobre o dever de indenizar ou reparar danos independentemente de culpa, sendo o poluidor – pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado – responsável, direta ou indiretamente, pela atividade causadora da degradação ambiental’’, afirmou o ministro João Otávio Noronha ao julgar o REsp 1.631.143.
Conforme destacou o relator, os danos ambientais têm efeitos diretos – afetando, nesse caso, o meio ambiente saudável, bem jurídico autônomo e unitário – e indiretos – ou seja, os prejuízos que atingem bens jurídicos particulares, os quais são prejudicados por ricochete.
Poluidor indireto e ressignificação do conceito de nexo causal
O conceito de poluidor indireto foi aplicado pela Segunda Turma em maio de 2022, ao analisar possível omissão do Município de Joinville (SC) em relação a uma obra de desvio do curso de um rio que não recebeu licenciamento ambiental e não teve fiscalização adequada, o que teria facilitado a ocorrência de danos ambientais (AREsp 1.945.714).
No caso, a discussão avançou nas instâncias ordinárias a partir da tese de que a omissão fiscalizatória não teria sido claramente demonstrada. No entanto, o ministro Og Fernandes, relator, explicou que as causas de Direito Ambiental exigem a ressignificação de alguns conceitos tradicionais do Direito, como o nexo causal.
‘‘Ele deve estar presente, indubitavelmente, mas quando há diversos poluidores/transgressores das normas, e não se pode precisar com o grau de certeza ortodoxo a contribuição de cada um deles para a degradação constatada, qualquer ato comissivo ou omissivo que seja relevante para a existência do dano (o que inclui sua não reparação) enseja a responsabilização do agente’’, disse o ministro.
Para o relator, o processo trouxe inúmeras condutas omissivas imputadas ao Município – como deixar de prevenir o dano com o licenciamento ambiental às obras públicas, não fiscalizar as obras executadas por particulares e não agir para recuperar os danos já verificados.
Dessa forma, prosseguiu o ministro, o nexo causal a ser investigado no processo ‘‘não é entre a conduta administrativa e os danos, mas entre a conduta administrativa e tais obrigações, sendo irrelevante que terceiros tenham também contribuído para os resultados prejudiciais ao meio ambiente’’.
Comprador de área degradada também responde pelo dano ambiental
Em outubro do ano seguinte, o STJ fixou um de seus entendimentos mais relevantes em direito ambiental ao julgar o Tema 1.204 dos recursos repetitivos. A Primeira Seção definiu que as obrigações ambientais têm natureza propter rem, de modo que elas podem ser exigidas do proprietário ou possuidor atual, de qualquer dos anteriores ou de ambos, ‘‘ficando isento de responsabilidade o alienante cujo direito real tenha cessado antes da causação do dano, desde que para ele não tenha concorrido, direta ou indiretamente’’.
De acordo com a relatora, ministra Assusete Magalhães (aposentada), esse entendimento já estava consolidado na Súmula 623, que se baseou na jurisprudência do STJ, segundo a qual a obrigação de reparação dos danos ambientais está atrelada ao próprio bem degradado, uma vez que a Lei 8.171/1991 se aplica a todos os proprietários rurais, ainda que não sejam eles os responsáveis por desmatamentos anteriores.
A ministra esclareceu que o atual proprietário que permanece inerte diante da degradação ambiental, mesmo que ela seja preexistente, também comete ato ilícito. As APPs e as de reserva legal (RL) – continuou – são ‘‘imposições genéricas, decorrentes diretamente da lei’’, além de representarem ‘‘pressupostos intrínsecos ou limites internos do direito de propriedade e posse’’.
Ainda sobre o caráter propter rem das obrigações ambientais, Assusete Magalhães citou precedente do ministro Herman Benjamin, no REsp 948.921, que reforçou a noção de que aquele que adquire o imóvel o recebe não apenas com os atributos positivos e as benfeitorias, mas também com os ônus ambientais que incidem sobre a propriedade.
‘‘Quem se beneficia da degradação ambiental alheia, a agrava ou lhe dá continuidade não é menos degradador. Por isso, o legislador se encarrega de responsabilizar o novo proprietário pela cura do malfeito do seu antecessor’’, manifestou se o ministro Herman Benjamin ao julgar o REsp 948.921.
Engenheiro agrônomo tem controle funcional da conduta ilícita poluente
Ao analisar o RHC 118.591, em fevereiro de 2020, a Quinta Turma estabeleceu que o engenheiro agrônomo, mesmo não sendo o autor dos atos materiais de poluição, pode ser responsabilizado por atividade causadora de danos ao meio ambiente.
De acordo com a denúncia oferecida pelo Ministério Público do Paraná (MPPR), o profissional teria prescrito agrotóxicos para uma propriedade agrícola sem o adequado acompanhamento quanto à real necessidade do uso desses produtos, descumprindo exigências legais. Ao STJ, a defesa alegou que ele apenas prescreveu os agrotóxicos, sem qualquer participação na aplicação dos produtos, razão pela qual não poderia constar no polo passivo de ação penal.
O ministro Ribeiro Dantas, relator do caso, apontou que o engenheiro, ao prescrever o receituário agrônomo, ‘‘tinha o controle funcional da conduta ilícita poluente (teoria do domínio do fato) e, assim, apesar de não ter sido o autor material do ato de poluição, pode ser apontado como o responsável pela atividade causadora da degradação ambiental’’.
Além de citar o conceito de poluidor indireto descrito na Lei 6.938/1991, o relator usou como base de seu voto o artigo 2º da Resolução 344, do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia e o artigo 14 da Lei 7.802/1989 – posteriormente revogada pela Lei 14.785/2023 (Nova Lei dos Agrotóxicos), que atualizou as disposições sobre o tema.
‘‘O engenheiro agrônomo, dotado da expertise da atividade agrícola e possuidor da confiança do agricultor, ao prescrever receituário agronômico em desacordo com as normais legais do uso de agrotóxico, possui controle funcional da conduta ilícita poluente (teoria do domínio do fato). Assim, mesmo não sendo o autor dos atos materiais de poluição, é, sem dúvida, responsável e, por isso, imputável, pela atividade causadora de danos ao meio ambiente’’, disse o ministro Ribeiro Dantas no RHC 118.591
Poluidor indireto foi tema de enunciados de jornada jurídica
O poluidor indireto foi discutido recentemente nos enunciados aprovados na I Jornada Jurídica de Prevenção e Gerenciamento de Crises Ambientais, realizada em novembro de 2024, no Conselho da Justiça Federal (CJF), em Brasília. Os enunciados servem de referência para estratégias de prevenção aos conflitos decorrentes de crises climáticas e para a adoção de compliance ambiental pelos entes públicos ou privados para restauração de danos.
Um dos enunciados aprovados fixou que ‘‘o poluidor indireto responde de forma solidária pela reparação e pela restauração do dano ambiental cumulativamente’’.
Em outro enunciado, foi definido que ‘‘o conceito de ‘empreendedor’ da Lei 12.334/2010 (artigo 2º, IV) deve ser interpretado à luz do conceito amplo de poluidor, contemplando tanto o poluidor direto quanto o poluidor indireto, tal como estabelecido pela legislação ambiental (artigo 3º, inciso IV, da Lei 6.938/1981) e alcançando, a depender do caso concreto, os agentes (públicos e privados, pessoas físicas e jurídicas) identificados na cadeia causal multifatorial (fática e normativa) da atividade poluidora’’. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
AREsp 1678232
REsp 1376199
REsp 1631143
AREsp 1945714
REsp 1962089
REsp 948921
RHC 118591