BIS IN IDEM
Autuação ambiental múltipla gera insegurança jurídica no agronegócio

Por Ianara Cardoso de Lima

Ibama em ação
Foto: Agência Brasil

A fiscalização por parte dos órgãos ambientais é uma preocupação constante daqueles que desenvolvem atividades que se utilizam de recursos naturais – ou que são potencialmente poluidoras. Afinal, estes empreendimentos estão sujeitos a licenciamento ou autorização ambiental para o exercício regular de suas atividades.

Essa preocupação decorre, muitas vezes, da incerteza em relação a qual o órgão ambiental competente para fiscalizar determinada atividade. E se acentua quando a dúvida não é ‘‘qual’’, mas ‘‘quais’’ órgãos são competentes para fiscalizar e/ou autuar determinada atividade empresarial.

Essa dúvida é bastante comum, pois, em determinados casos, existe, sim, a possibilidade de mais de um órgão ambiental poder fiscalizar e/ou autuar um mesmo fato.

A Constituição Federal, no artigo 23, caput, incisos III, VI e VII, estabeleceu a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para proteger o meio ambiente e combater a poluição, bem como para preservar as florestas, a fauna e a flora (além de outros bens comuns)

De acordo com o parágrafo único do dispositivo constitucional, a competência comum deverá ser exercida em observância ao chamado ‘‘princípio da cooperação federativa’’. Esse dispositivo prevê, também, que é por meio da edição de leis complementares que se fixariam as normas para regular essa chamada ‘‘cooperação federativa’’, a fim de garantir o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar no território nacional.

Com a entrada em vigor da Constituição Federal em 1988, a Lei 6.938/1980, que estabelece a chamada ‘‘Política Nacional do Meio Ambiente’’ e regulamenta o ‘‘Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA’’, acabou sendo recepcionada.

Ou seja, apesar de ter sido editada antes da atual Constituição, continuou sendo válida. Tal sistema estrutura os órgãos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que são responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental.

No entanto, até o ano de 2011 não havia nenhuma Lei Complementar regulamentando o exercício das competências pelos vários órgãos que integram o SISNAMA (tais como o Ibama e o ICMBio, por exemplo).

Como consequência desse ‘‘vazio normativo’’, passou-se a ver autuações por mais um órgão ambiental sobre uma mesma atividade e, por vezes, aplicando sanções administrativas ambientais em relação a um mesmo fato.

Aplicar mais de uma pena para um mesmo fato é chamado, no juridiquês, como bis in idem e é uma prática vedada por todo o ordenamento jurídico. Apesar disso, a consequência desse ‘‘vazio normativo’’ em relação à competência fiscalizatória e sancionadora dos órgãos ambientais fez emergir questionável jurisprudência do STJ permitindo mais de uma autuação sobre o mesmo fato por órgãos ambientais vinculados a diferentes entes federativos.

Para justificar essa possibilidade do bis in idem, o STJ alegou não ser possível o afastamento da competência destes entes em razão do princípio chamado ‘‘preponderância do interesse’’.

Em 2011, finalmente, entrou em vigor a Lei Complementar 140, que fixou as competências materiais de cada ente federativo, inclusive com critérios objetivos para a determinação da competência para o licenciamento ambiental, fiscalização e sancionatória. De acordo com o artigo 17 da LC 140, passou a ser responsável para fiscalizar e punir o ente que for responsável, também, pelo licenciamento ambiental.

Apenas quatro meses após a LC 140 entrar em vigor, a Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialistas em Meio Ambiente (Abissama) ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.757, pedindo a declaração de inconstitucionalidade integral da lei ou, ao menos, a declaração de inconstitucionalidade de alguns artigos, entre os quais o artigo 17, responsável pela necessária delimitação de competência para fiscalizar e punir atos contrários à legislação ambiental.

Lamentavelmente, neste caso, a decisão do Supremo Tribunal Federal afastou-se da tão almejada segurança jurídica. A Corte entendeu que, nos casos em que há omissão ou falha da atuação do órgão licenciador (aquele competente pela LC 140), seja por insuficiência de sua atuação, seja pela inadequação da medida adotada, admite-se possível multiplicidade de autuações pelo mesmo fato.

Trocando em miúdos: se a autuação lavrada pelo órgão originariamente competente (por exemplo, a Cetesb) for considerada ‘‘insuficiente’’, eventualmente, outros órgãos com competência supletiva (como a Secretaria Municipal do Meio Ambiente) poderão lavrar outro auto de infração sobre o mesmo fato.

A pergunta que fica é: quando uma fiscalização que resultou em alguma autuação ambiental pode ser considerada “insuficiente”? Quais os critérios para isso? Infelizmente, a resposta não existe. Essa verificação está totalmente depositada no crivo discricionário dos órgãos fiscalizadores, o que, gera preocupante insegurança jurídica e dá margem para judicialização destas questões, já que conceito de ‘‘insuficiência da autuação’’ dá margem para muita discussão ante o seu grau de subjetividade.

Não haverá outra saída para aquele que for destinatário de mais de uma autuação ambiental sobre o mesmo fato senão a propositura de demandas judiciais com o objetivo de anular os autos de infração. Sofre o setor produtivo. Sofre a já saturada estrutura do Judiciário brasileiro.

Ianara Cardoso de Lima é sócia da área cível no escritório Diamantino Advogados Associados