GESTÃO PROFISSIONAL
Governança em empresas familiares: estruturas e instrumentos essenciais

Advogada Liège Fernandes Vargas, do escritório CPDMA

A governança corporativa em empresas familiares tem ganhado cada vez mais relevância no cenário empresarial brasileiro, no qual cerca de 90% das empresas possuem controle familiar. A ausência de um planejamento adequado para a sucessão do negócio e a dificuldade de manter a harmonia nas relações familiares, em muitos casos, culminam no fracasso da empresa após a terceira geração. Nesse contexto, a criação de mecanismos eficazes de governança e a implementação de estruturas formais são fundamentais para a continuidade e sustentabilidade dessas organizações.

As empresas familiares enfrentam o desafio de conciliar a gestão profissional do negócio com os valores e tradições familiares. A governança familiar, estruturada através da criação de conselhos, objetiva oferecer essa conciliação. O Conselho de Família, por exemplo, é um órgão (não societário) que possibilita a comunicação entre os membros familiares e auxilia na resolução de conflitos, na preservação dos valores da família e no planejamento da sucessão. Já o Conselho de Administração, órgão deliberativo previsto na Lei das Sociedades Anônimas, proporciona uma visão estratégica e imparcial sobre a gestão do negócio, sendo composto, muitas vezes, por membros externos que trazem uma abordagem mais técnica e profissional​.

Além dessas estruturas, a utilização de instrumentos jurídicos específicos é indispensável para assegurar a governança familiar. Nesse sentido, o Acordo de Sócios – também chamado de Acordo de Quotistas ou Acionistas, dependendo da natureza jurídica da sociedade – regula aspectos societários como a compra e venda de ações e o direito de voto, garantindo previsibilidade nas decisões empresariais futuras. Já o Protocolo Familiar, também conhecido como Estatuto Familiar, estabelece normas de convivência e responsabilidades entre os membros da família, envolvidos direta ou indiretamente no negócio, criando uma estrutura que minimiza conflitos internos e favorece a continuidade dos valores a serem passados ao longo das gerações.

Para implementação dessas estruturas de governança, podem ser utilizadas empresas no formato de holdings (as chamadas holdings familiares). Conceitualmente, a holding pode ser definida como uma pessoa jurídica que centraliza o controle organizacional e/ou patrimonial do grupo familiar, seja através de (i) uma holding pura, focada exclusivamente na gestão de participações em outras sociedades; (ii) uma holding mista, que agrega também outras atividades empresariais; ou, ainda, (iii) uma holding patrimonial, que tão somente administra o patrimônio familiar. Essas estruturas facilitam o planejamento sucessório e a administração do patrimônio, contribuindo para a perpetuação e preservação do negócio, podendo ainda acarretar a redução da carga tributária.

Analisando os desafios enfrentados por empresas familiares, um dos principais pontos de desgaste na relação familiar é a falta de interesse das gerações futuras em participar da gestão do negócio. Pesquisas recentes apontam que mais de 50% dos herdeiros não desejam se envolver diretamente na administração da empresa – pesquisa da consultoria KPMG mostra este quadro. Nesse cenário, é crucial que as famílias empresárias criem mecanismos de governança que permitam a continuidade do negócio, mesmo que a gestão direta passe a ser realizada por profissionais externos.

Ao mesmo tempo, é importante que os entes familiares que estão no controle e na gestão do negócio criem estruturas que fomentem as gerações mais novas a participarem e a entenderem as premissas familiares, oportunizando que estes tragam pontos de vista e mudanças do mundo contemporâneo que podem impactar diretamente na perpetuidade do negócio, principalmente aquelas de cunho tecnológico.

Dessa forma, ao combinar todos esses elementos, a governança corporativa familiar pode ser efetivamente implementada em diversas estruturas.

Ressalta-se, por fim, que as empresas familiares demonstram, muitas vezes, a dificuldade de separar o contexto empresarial da relação familiar, misturando os problemas de ambas as relações. Por tais razões, é recomendável que a implementação seja realizada também com auxílio de um consultor ou advogado; ou seja, um agente externo à relação familiar.

Clique aqui para ler o estudo da KPMG

Liège Fernandes Vargas é coordenadora da Área de Direito Societário do escritório Cesar Peres Dulac Müller Advogados (CPDMA)

ARRENDAMENTOS & PARCERIAS
Contratos agrários têm diferentes impactos diante das queimadas

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Por João Eduardo Diamantino

Responsável por 23,8% do PIB brasileiro, o agronegócio sofre as consequências de queimadas nunca vistas na História. A grande maioria das propriedades foi afetada pelos incêndios e faz as contas dos prejuízos. O cálculo de quanto cada produtor perdeu passa pela análise do tipo de contrato firmado, seja de arrendamento ou de parceria. Entender essa diferença é fundamental para se analisar as soluções possíveis.

As duas modalidades são reguladas pelo Decreto 59.566/1966, mais especificamente nos artigos 1º e 13. Tipicamente, os dois tipos de contrato contemplam cláusulas proibitivas e obrigatórias, que na ausência ou descumprimento de alguma delas podem torná-los nulos.

Em um contrato de arrendamento, existe o arrendador (proprietário da terra) e o arrendatário (produtor que irá utilizá-la). Este tipo nada mais é que um aluguel de imóvel rural. Ou seja, uma parte entra com a terra e a outra com a disposição de produzir. Por este uso, paga um valor pré-estabelecido – que deve ser fixo.

Já no contrato de parceria rural, como o nome sugere, existem parceiros. Isso quer dizer que haverá uma divisão um pouco mais complexa do que mero proprietário da terra e produtor. Neste caso, ambos dividem os resultados da produção – e não há um pagamento fixo. O maior benefício desta modalidade é o tributário, já que as alíquotas incidentes sobre o contrato são menores.

Esta diferença deve ser um ponto de especial atenção neste momento. Afinal, para além do tipo de contrato entabulado entre as partes, a sua efetiva execução tem repercussões fiscais.

Segundo as discussões que chegaram ao Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) nos últimos dez anos, a Receita Federal entende que uma tributação maior ou menor está proporcionalmente vinculada ao nível de riscos assumidos. Ou seja: um arrendamento, sem risco para o proprietário da terra, tem uma tributação maior em relação ao contrato de parceria, já que o risco envolvido se reflete em uma vantagem fiscal.

Na prática, partindo da premissa de que não há assunção de riscos no contrato de arrendamento, o proprietário da terra pode, em tese, exigir o cumprimento do pagamento previsto contratualmente. Mesmo que o produtor tenha tido sua lavoura queimada. Já no caso da parceria, o prejuízo é, também em tese, suportado pelas duas partes.

Importante lembrar que, seja qual for o contrato, os produtores geralmente comercializam suas produções com a expectativa da safra futura. Ou seja, vendem algo que ainda não foi produzido, com a promessa de entrega.

Nas duas situações, qualquer repactuação ou execução contratual tem que levar em conta os aspectos fiscais, já que a Receita Federal terá como base o tipo de acordo firmado entre as partes para calcular os tributos devidos. Isso é especialmente relevante em um cenário de menos subsídios e linhas de crédito.

Outra variável a ser considerada é a decretação de estado de emergência pelos municípios. Com isso, diversas operações podem ser paralisadas com a restrição do uso de máquinas.

Seja qual for o caso, nenhuma das partes deseja estar na atual situação e cada caso deve ser analisado com atenção, levando em conta as particularidades de cada contrato. Enquanto todos esperam uma reação de Brasília capaz de mitigar os danos e evitar novos incêndios, a única certeza, infelizmente, são os prejuízos.

João Eduardo Diamantino é tributarista e sócio do Diamantino Advogados Associados

CONFLITO DE COMPETÊNCIA
STJ atropela Lei de Falências em desconsideração da personalidade jurídica

Reprodução Web

Por Lara Fernanda de Oliveira Prado e Elvis Cavalcante Rosseti

Norberto Bobbio já alertava, no século passado, que, ao abandonar-se a rigidez necessária à aplicação das normas, abre-se a porta para interpretações arbitrárias e decisões conflitantes. Isso não apenas fragiliza a segurança jurídica, mas também ameaça o equilíbrio entre os poderes. Foi o que se viu em recente julgamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que tratou do conflito de competência entre o juízo trabalhista e o juízo falimentar para se definir qual deles deve ser responsável pelo processamento da desconsideração da personalidade jurídica de uma empresa falida.

O centro da discussão está no artigo 82-A, parágrafo único, da Lei 11.101/2005, que estabelece que, nos casos de falência, apenas o juízo falimentar pode decretar a desconsideração da personalidade jurídica para responsabilizar terceiros, como sócios ou administradores. Isso visa garantir igualdade entre credores e evitar que alguns recebam pagamentos antecipados ou em condições privilegiadas.

No caso em questão, a desconsideração foi proposta na Justiça do Trabalho e incluiu os sócios no polo passivo da execução. A ministra Nancy Andrighi, relatora do caso no STJ (Conflito de Competência 200.775-SP), defendeu que após a decretação da falência a competência para processar o incidente caberia exclusivamente ao juízo falimentar, responsável por centralizar todos os atos que afetam o patrimônio da empresa e assegurar a paridade entre os credores, preservando a ordem do concurso universal.

No entanto, esse entendimento foi superado, prevalecendo, no colegiado, a tese de que os atos de execução contra os sócios, por se referirem a pessoas distintas da empresa, não interfeririam no patrimônio da massa falida e, portanto, não configurariam conflito de competência. Também se argumentou que o artigo 82-A não seria capaz de estabelecer normas de competência, mas apenas de ditar o procedimento de desconsideração (que deve comprovar a existência de fraude ou confusão patrimonial).

Um dos aspectos mais críticos dessa decisão é a correta identificação do polo passivo da demanda. Isso porque, estando a massa falida no polo passivo do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o juízo competente deve ser o falimentar, independentemente de os atos executórios se dirigirem aos sócios ou à própria empresa. Além do disposto no artigo 82-A, o artigo 76 da Lei de Falências estabelece de forma clara essa competência processual.

A concentração das demandas no foro falimentar não só assegura a equidade entre os credores, como também permite a apuração de eventuais confusões patrimoniais e a investigação de possíveis ilícitos relacionados à falência. Dessa forma, a atribuição da desconsideração da personalidade jurídica a esse juízo se justifica tanto por questões de segurança jurídica quanto pela necessidade de prevenir fraudes e garantir uma adequada verificação dos fatos. Mesmo porque, constatada a fraude, a responsabilidade será direcionada aos sócios, visando à satisfação das dívidas em favor de todos os credores, e não apenas de alguns.

Lógica inversa

Outro complicador reside nos diferentes requisitos materiais para a desconsideração da personalidade jurídica entre a Justiça do Trabalho e a legislação falimentar. Enquanto a Justiça do Trabalho, em muitas ocasiões, dispensa a comprovação de abuso ou confusão patrimonial, a Lei de Falências exige esses elementos. Esse descompasso agrava o risco de decisões conflitantes, além de possibilitar a indevida extensão dos efeitos da falência aos sócios de responsabilidade limitada de forma ilimitada.

Nessa toada, os impactos se revelam tanto para o devedor quanto para os credores. O devedor, por um lado, pode ser exposto a uma responsabilização irrestrita no âmbito trabalhista; por outro, os credores podem ter seus direitos comprometidos no concurso universal, caso ocorra um tratamento desigual nas execuções.

Como se vê, a conclusão do STJ seguiu uma lógica inversa daquela almejada pelo legislador, amparado pelo processo democrático representativo.

Ainda remetendo a Bobbio, não custa lembrar que a verdadeira função do juiz deve ser a de extrair, de forma clara e objetiva, o que está implícito nas legislações vigentes, em vez de criar normas a partir de sua interpretação pessoal. Caso contrário, a prevalência de juízos subjetivos e a violação da separação dos poderes podem resultar em um arbítrio judicial que atenta contra os princípios fundamentais do Estado de Direito. Portanto, fica a indagação: até onde os tribunais superiores podem ir antes que suas intervenções se tornem um risco maior do que a própria incerteza que busca dissipar?

Lara Fernanda de Oliveira Prado e Elvis Cavalcante Rosseti são sócios da área cível no escritório Diamantino Advogados Associados

JURISPRUDÊNCIA
Títulos do agronegócio trazem diferentes impactos sobre o processo de recuperação judicial da empresa rural

Por Beatriz Naranjo e João Eduardo Diamantino

Foto: Imprensa/Mapa

O mercado vem assistindo ao longo de 2024 ao aumento acentuado no número de recuperações judiciais (RJs) de empresas do agronegócio. De acordo com a Serasa, foram 82 pedidos no primeiro trimestre deste ano, igualando recorde estabelecido em 2023. E a preocupação dos credores cresce na mesma proporção.

No mercado financeiro, a apreensão de investidores se soma à dúvida. Isso porque há diferentes mecanismos de investimento atrelados ao setor. São conhecidos títulos como Certificado de Depósito Agropecuário (CDA), Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA), Cédula de Produtor Rural (CPR), Letra de Crédito do Agronegócio (LCA) ou Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA).

Pois bem. Considerando o cenário atual do agronegócio, todos se questionam sobre a inclusão (ou não) desses créditos nos planos de recuperação judicial. Afinal, nenhum investidor quer ver seu valor aportado no meio de um processo judicial tão moroso quanto ao de uma RJ, que, em último caso, pode se transformar em uma falência.

Cada um desses tipos de créditos possui seus requisitos e particularidades. Enquanto o mercado estava pujante, não havia problemas. Agora que a maré virou, começam as preocupações.

O CDA é um título que representa a posse de produtos agropecuários armazenados, permitindo sua comercialização ou uso como garantia. Já o CDCA é um título de crédito vinculado a dívidas do setor, usado pelas empresas para captar recursos com base nos créditos a receber de seus devedores. Em comum, ambos se submetem a um eventual plano de recuperação judicial.

A primeira confusão se dá entre o Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA) e a Letra de Crédito do Agronegócio (LCA). Instituídas pela Lei 11.076/2004, os dois títulos são isentos de Imposto de Renda (IR) para pessoas físicas.

A principal diferença entre CRA e LCA é o emissor. No CRA, quem emite são as securitizadoras. Já a LCA são os bancos e instituições financeiras. Portanto, em tese, há muito mais riscos no CRA; afinal, o Banco do Brasil, principal financiador do setor, é mais sólido e seguro do que uma empresa de securitização. Outra diferença desses créditos está em seus objetivos. Enquanto o objetivo de um CRA é antecipar recebíveis vinculados a créditos do agronegócio, a LCA financia o setor agrícola por meio de empréstimos bancários.

No que diz respeito ao CRA e a LCA, estes poderão ser incluídos no plano de recuperação judicial e serão pagos ao mesmo tempo que os demais créditos incluídos no plano.

Aqui vale uma ressalva: caso o CRA e LCA tenham qualquer tipo de garantia fiduciária, eles não se submeterão ao plano de recuperação. Isso ocorre não por uma particularidade dos títulos, mas, sim, pelo disposto na Lei de Recuperação Judicial e Falência (Lei 11.101/2005), que, em seu artigo 49, § 3º, garante que se o credor possuir garantia fiduciária de bem móvel ou imóvel, o crédito não está sujeito a recuperação judicial.

Como crédito extraconcursal que não poderá ser incluído na RJ temos também os atos cooperativos, que nada mais são que as obrigações assumidas entre cooperativas agrícolas e seus cooperados, incluindo, por exemplo, contratos de abertura de crédito rotativo e renegociações de dívidas.

Já a CPR Física permite que o produtor rural antecipe a venda de sua produção antes mesmo da colheita. Nesta modalidade, pode ocorrer a antecipação parcial ou integral do pagamento pelo credor, ou o fornecimento de insumos para viabilizar a atividade em permuta do produto agrícola (barter).

Desde 2020, o artigo 11 da Lei 8.929/1994 passou a prever que a CPR Física não está sujeita aos efeitos da recuperação judicial, sendo, portanto, considerada como um crédito extraconcursal que não terá seu recebimento afetado. Ou seja, as obrigações assumidas pelos produtores rurais através da CPR Física possuem uma espécie de imunidade em relação ao processo de recuperação judicial.

Mas há algumas condições. Para que a CPR Física possa ser efetivamente excluída do processo de RJ, é necessário estarem presentes as seguintes condições: deve ter ocorrido a antecipação parcial ou integral do pagamento pelo credor ou o credor deve ter fornecido insumos para viabilizar a atividade em permuta do produto agrícola; o produtor rural ainda deve ter condições de produzir e entregar o produto rural, ‘‘salvo motivo de caso fortuito ou força maior que comprovadamente impeça o cumprimento parcial ou total da entrega do produto’’.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou seu entendimento (REsp 1.102.198/MT) em conformidade com o que dispõe a legislação. Ou seja, que o crédito lastreado em CPR Física não deve ser incluído em processo de RJ por possuir uma natureza extraconcursal. Da mesma forma, em decisão proferida em março deste ano, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (AI 5816996-66.2023.8.09.0019) determinou a exclusão do crédito decorrente de uma CPR Física em um caso de recuperação judicial de um produtor rural.

É importante observar que as decisões se deram em grau de recurso. Ou seja, o crédito da CPR Física havia sido incluído no processo de recuperação pelos juízos de primeiro grau, em desacordo com o que dispõe a legislação.

Se até mesmo o Judiciário se confunde, é razoável supor que os investidores e os produtores rurais também o façam. Em meio ao aumento das recuperações judiciais, torna-se essencial uma análise do tipo de crédito que se toma – ou do título que se adquire. Afinal, se os credores perderem a confiança na principal fonte de investimento rural do país, o agronegócio poderá enfrentar uma crise ainda mais grave.

Beatriz Palhas Naranjo e João Eduardo Diamantino são sócios do escritório Diamantino Advogados Associados

ESTIGMATIZAÇÃO DO AGRO
Terras de autores de incêndios criminosos devem ser confiscadas? NÃO

Por Eduardo Diamantino e João Eduardo Diamantino

Na ausência de uma proposta realmente eficaz para combater as queimadas que assolam o país, o Governo Federal apelou ao populismo: confiscar as terras dos autores dos incêndios. A ideia foi lançada pela ministra Marina Silva (Meio Ambiente e Mudança do Clima). Embora não tenha dado detalhes, ela afirmou que o objetivo é adotar com os incêndios o mesmo paradigma das terras onde há plantações de drogas ou trabalho escravo.

Nessas duas únicas hipóteses, a Constituição prevê, em seu artigo 243, a expropriação da área, sem qualquer indenização pelo Estado, em favor de programas de reforma agrária ou de moradia popular. Ou seja, a medida atinge as terras que abrigam tais crimes e, de forma conexa, a punição tem como alvo quem deles se beneficiou.

A proposição, portanto, mal disfarça uma estigmatização dos agricultores, principais vítimas dos incêndios. Afinal, se a penalidade é a eliminação do direito à propriedade, significa que apenas o proprietário da terra pode ser o destinatário dessa sanção. Enquadrar o incêndio no mesmo paradigma é pressupor, de maneira absurda, que o dono da terra é o autor da ação que destruiu sua lavoura, rebanho e maquinário.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deu ainda péssima contribuição ao dizer que ‘‘cheira oportunismo também de alguns setores tentando criar confusão neste país’’’. Quais setores são esses? A gravidade do problema não comporta insinuações ou teorias conspiratórias.

No mundo real, os produtores rurais contam os prejuízos causados pelo fogo e lutam com seus próprios recursos para combater os incêndios. De todos os presos suspeitos de causarem as queimadas, não consta que nenhum deles seja proprietário de terras.

Acrescentar uma terceira hipótese para a expropriação implica mexer no texto constitucional por meio de uma PEC (proposta de emenda à Constituição). Trata-se de uma tramitação lenta e complexa, que depende da aprovação de três quintos dos parlamentares do Congresso Nacional e vai na contramão da urgência que o problema atual demanda.

Caso queira evitar o desgaste político, restaria ao Governo Federal uma alternativa igualmente disparatada: aplicar, por analogia, a sanção do artigo 243 às queimadas. Um atalho que violaria o texto constitucional para equiparar, de forma demagógica, as queimadas ao trabalho escravo e ao tráfico de drogas.

A ofensa à lógica aumenta a confusão. O nexo entre crime e sua responsabilização está claro no texto constitucional. No caso da ideia ora em debate, não. De quais terras fala a ministra Marina Silva senão daquelas que padecem sob o fogo? E se, como tem sido observado, o autor da queimada não tem qualquer propriedade? Se incêndio já é crime, não basta aplicar o Código Penal? A falta de respostas revela o excesso de preconceito.

É importante lembrar que o uso controlado do fogo é permitido pela legislação em práticas agrícolas. Lançada com jeito de ameaça, a proposta causa espanto justamente por tratar os proprietários rurais como primeiros suspeitos. A se manter esse ânimo, ninguém se surpreenderia com fiscalizações abusivas e um incêndio perfeitamente legal ser classificado como criminoso.

Apelando mais uma vez à realidade, os incêndios podem ter origem em causas naturais ou na ação de criminosos que, vale lembrar, não têm qualquer compromisso com a produtividade do campo. Até aqui, o governo demonstrou não estar preparado para enfrentar o problema. Faria melhor abster-se de fomentar animosidades com quem produz e focar sua energia em propostas viáveis de prevenção e contingência.

Eduardo Diamantino e João Eduardo Diamantino são sócios do escritório Diamantino Advogados Associados