IN RE IPSA
Os entendimentos mais recentes do STJ sobre a configuração do dano presumido

Imprensa STJ

No Direito brasileiro, a regra é que os danos sejam comprovados pelo ofendido para que se justifique o arbitramento judicial de indenização. Entretanto, em hipóteses excepcionais, são admitidos os chamados danos in re ipsa, nos quais o prejuízo, por ser presumido, independe de prova.

A possibilidade da presunção de um dano – material ou moral – constitui uma vantagem para o ofendido e uma dificuldade para o ofensor, na medida em que há, como consequência, a superação da fase probatória no processo.

Ao longo do tempo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já estabeleceu uma série de situações em que há a configuração do dano in re ipsa, e continua analisando, cotidianamente, os mais diversos casos em que se pode ou não presumir a existência do dano.

Nesse sentido, serão julgados dois novos recursos repetitivos sobre o assunto. No Tema 1.096, a Primeira Seção vai definir ‘‘se a conduta de frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente configura ato de improbidade que causa dano presumido ao erário (in re ipsa)’’.

Já no Tema 1.156, a Segunda Seção vai estabelecer ‘‘se a demora na prestação de serviços bancários superior ao tempo previsto em legislação específica gera dano moral individual in re ipsa apto a ensejar indenização ao consumidor’’.

Dano moral pela contaminação de alimento com corpo estranho

Em 2021, no julgamento do REsp 1.899.304, a Segunda Seção unificou a jurisprudência das turmas de Direito Privado do STJ e considerou irrelevante a efetiva ingestão do alimento contaminado por corpo estranho – ou do próprio corpo estranho – para a caracterização do dano moral, pois a compra do produto insalubre é potencialmente lesiva ao consumidor.

Para a relatora do recurso especial (REsp), ministra Nancy Andrighi, ‘‘a distinção entre as hipóteses de ingestão ou não do alimento insalubre pelo consumidor, bem como da deglutição do próprio corpo estranho, para além da hipótese de efetivo comprometimento de sua saúde, é de inegável relevância no momento da quantificação da indenização, não surtindo efeitos, todavia, no que tange à caracterização, a priori, do dano moral’’.

Ministra Nancy Andrighi
Foto: Rafael Luz/STJ

No caso julgado, o consumidor pediu indenização contra uma beneficiadora de arroz e o supermercado que vendeu o produto, em razão da presença de fungos, insetos e ácaros na embalagem. Os ministros reformaram acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) para restabelecer a sentença que fixou o dano moral em R$ 5 mil.

Uso indevido de marca dispensa prova de dano material e moral

A jurisprudência do STJ também entende que é devida reparação por danos patrimoniais (a serem apurados em liquidação de sentença) e por danos extrapatrimoniais na hipótese de se constatar a violação de marca, independentemente de comprovação concreta do prejuízo material e do abalo moral resultante do uso ilícito.

Com esse entendimento, a Quarta Turma, no julgamento do REsp 1.507.920, manteve em R$ 15 mil a indenização por danos morais a que a empresa Sonharte Brasil foi condenada pelo uso indevido da marca de outra empresa do mesmo ramo, a Sonhart.

As instâncias de origem reconheceram que a Sonharte se valeu da expressão para a divulgação de seus serviços e produtos, a despeito de ser inequivocamente semelhante à marca da concorrente, e concluíram que houve violação do direito de propriedade intelectual da Sonhart.

Para a relatora, ministra Isabel Gallotti, houve concorrência desleal e aproveitamento parasitário, mediante a comercialização de produtos com o uso de nome ‘‘praticamente idêntico’’ ao registrado pela concorrente ‘‘no mesmo ramo de atividade econômica, de forma a induzir em erro o consumidor’’.

Indenização por violência contra a mulher no âmbito doméstico e familiar

Nos casos de violência contra a mulher em âmbito doméstico e familiar, é possível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da acusação ou da parte ofendida, ainda que não especificada a quantia, e independentemente de produção de provas.

A tese foi fixada pela Terceira Seção em julgamento de recurso repetitivo (Tema 983). Em um dos processos julgados como representativos da controvérsia, o colegiado restabeleceu a condenação de R$ 3 mil por danos morais imposta ao ex-companheiro da vítima. De acordo com os autos, ele lhe deu um tapa no rosto com força suficiente para jogá-la no chão e, logo depois, acelerou seu veículo e a atropelou.

Segundo o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, no âmbito da reparação por danos morais, a Lei Maria da Penha – complementada pela Lei 11.719/2008, que alterou o Código de Processo Penal (CPP) – permitiu que um único juízo, o criminal, decida sobre o valor de indenização, o qual, ‘‘relacionado à dor, ao sofrimento e à humilhação da vítima, de difícil mensuração, deriva da própria prática criminosa experimentada’’.

Para o ministro, não é razoável exigir instrução probatória sobre o dano psíquico, o grau de humilhação ou a diminuição da autoestima, ‘‘se a própria conduta criminosa empregada pelo agressor já está imbuída de desonra, descrédito e menosprezo à dignidade e ao valor da mulher como pessoa’’.

Ministro Rogério Schietti Cruz
Foto: Lucas Pricken

Na sua avaliação, a não exigência de produção de prova dos danos morais, nesses casos, também se justifica pela necessidade de melhor concretizar, com o suporte processual já existente, ‘‘o atendimento integral à mulher em situação de violência doméstica, de sorte a reduzir sua revitimização e as possibilidades de violência institucional, consubstanciadas em sucessivas oitivas e pleitos perante juízos diversos’’.

Recusa do plano de saúde a autorizar tratamento médico emergencial

As turmas de Direito Privado do STJ têm orientação firmada no sentido de que a recusa indevida de tratamento médico emergencial, pela operadora de plano de saúde, enseja reparação por danos morais, pois agrava a situação de aflição psicológica e de angústia do beneficiário, estando caracterizado o dano moral in re ipsa.

Esse entendimento levou a Terceira Turma, no julgamento do REsp 1.839.506, a reformar acórdão que negou a indenização a um paciente cujo tratamento ocular quimioterápico, prescrito por seu médico, não foi autorizado pelo plano de saúde, sob a justificativa de que ele não preencheria os requisitos estabelecidos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para a cobertura do exame e do tratamento postulados.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) entendeu que o dano moral não seria devido, embora tenha concluído que a recusa de tratamento foi injusta.

O relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, lembrou que a jurisprudência do STJ reconhece que, em algumas situações, há dúvida razoável na interpretação de cláusula contratual, de forma que a conduta da operadora, ao optar pela restrição da cobertura sem ofender os deveres anexos do contrato – como a boa-fé –, não pode ser reputada ilegítima ou injusta, violadora de direitos imateriais, o que afasta qualquer pretensão de compensação por danos morais.

No entanto, ele verificou que esse não era o caso dos autos, pois não havia discussão em torno da interpretação de cláusula contratual. Assim, configurado o abuso da operadora na recusa da cobertura, o colegiado concluiu que era devida a indenização por danos morais.

Agressão à criança não exige prova de dano moral

Em 2017, no REsp 1.642.318, a Terceira Turma estabeleceu que o reconhecimento do dano moral sofrido por criança vítima de agressão não exige o reexame de provas do processo – o que seria inviável na discussão de recurso especial –, sendo suficiente a demonstração de que o fato ocorreu.

Os ministros rejeitaram o recurso especial de uma mulher condenada a pagar R$ 4 mil por danos morais em razão de agressões verbais e físicas contra uma criança de 10 anos que havia brigado com sua filha na escola.

Para a relatora, ministra Nancy Andrighi, ‘‘a sensibilidade ético-social do homem comum, na hipótese, permite concluir que os sentimentos de inferioridade, dor e submissão sofridos por quem é agredido injustamente, verbal ou fisicamente, são elementos caracterizadores da espécie do dano moral in re ipsa’’.

A ministra destacou que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) assegura o direito à inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral (artigo 17), bem como a legislação brasileira garante a primazia do interesse das crianças e dos adolescentes, com a proteção integral dos seus direitos.

‘‘Logo, a injustiça da conduta da agressão, verbal ou física, de um adulto contra uma criança ou adolescente, independe de prova e caracteriza atentado à dignidade dos menores’’, acrescentou a relatora.

Comercialização de dados pessoais em banco de dados

Para a Terceira Turma, a disponibilização ou a comercialização de informações pessoais do consumidor em banco de dados, sem o seu conhecimento, configura hipótese de dano moral in re ipsa. No julgamento do REsp 1.758.799, os ministros mantiveram em R$ 8 mil a indenização devida a um consumidor que teve seus dados divulgados por uma empresa de soluções em proteção ao crédito e prevenção à fraude.

A relatora, ministra Nancy Andrighi, lembrou que as informações sobre o perfil do consumidor, mesmo as de cunho pessoal, ganharam valor econômico no mercado de consumo e, por isso, o banco de dados constitui serviço de grande utilidade, seja para o fornecedor, seja para o consumidor, mas, ao mesmo tempo, atividade potencialmente ofensiva a direitos da personalidade deste.

Ela afirmou que a gestão do banco de dados impõe a estrita observância das respectivas normas de regência – Código de Defesa do Consumidor (CDC) e Lei 12.414/2011. Segundo a ministra, a legislação impõe o dever de informação, que tem como uma de suas vertentes o dever de comunicar por escrito ao consumidor a abertura de cadastro com seus dados pessoais e de consumo, quando não solicitada por ele, conforme determina o parágrafo 2º do artigo 43 do CDC.

‘‘O consumidor tem o direito de tomar conhecimento de que informações a seu respeito estão sendo arquivadas/comercializadas por terceiro, sem a sua autorização, porque desse direito decorrem outros dois que lhe são assegurados pelo ordenamento jurídico: o direito de acesso aos dados armazenados e o direito à retificação das informações incorretas’’, disse.

De acordo com a ministra, a inobservância dos deveres associados ao tratamento dos dados do consumidor – entre os quais se inclui o dever de informar – faz nascer para este a pretensão de indenização pelos danos causados e de fazer cessar, imediatamente, a ofensa aos direitos da personalidade.

REsp 1899304

REsp 1507920

REsp 1675874

REsp 1839506

REsp 1642318

REsp 1758799

HUMILHAÇÃO PÚBLICA
Súper vai pagar dano moral por injúria racial praticada por fiscal de caixa contra colega

Ascom TRT-PR

Há responsabilidade objetiva da empregadora pela reparação do dano moral decorrente de ato de injúria racial praticada por empregado contra empregado no local de trabalho. Assim, o dever de reparar o dano prescinde de culpa da empregadora, tampouco de ter sido comunicada de tal ato, nos termos do artigo 932, inciso III, do Código Civil (CC).

Firme nesses fundamentos, a 3ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (TRT-9, Paraná) manteve a condenação do supermercado Condor Super Center, de Curitiba, que terá de arcar com indenização a uma trabalhadora que sofreu insultos racistas de outra colega de trabalho, no horário do expediente.

A funcionária, que é negra e foi alvo de xingamentos e gestos ofensivos, vai receber uma reparação no valor de R$ 5 mil. Da decisão, ainda cabe recurso.

Agressões verbais

A reclamante trabalhou no estabelecimento de junho de 2020 a abril de 2021 e exercia a função de caixa. A trabalhadora declarou que, em mais de uma ocasião, durante o horário de trabalho, a fiscal de caixa a agrediu verbalmente com palavras racistas. Em outro momento, a agressora, ao passar perto da reclamante, fez gestos indicando estar com ânsia de vômito. Uma testemunha confirmou as alegações e destacou que os atos se deram na presença de outros colegas e de clientes.

A ação foi ajuizada em julho de 2021, e a sentença acolheu o pedido da reclamante, responsabilizando a empregadora pelo pagamento do dano moral.

Recurso ao TRT-PR

Desembargador Eduardo Baracat
Foto: Acervo Pessoal

A empresa recorreu da decisão, alegando que o conflito foi um caso isolado. Além disso, a vítima das agressões verbais não relatou os fatos aos superiores hierárquicos.

O recurso foi julgado pela 3ª Turma do TRT-PR. O colegiado explicou que, embora o ato ilícito tenha sido praticado por empregada da parte reclamada, esta responde objetivamente pelos atos de seus empregados, nos termos do artigo 932, inciso III, do Código Civil.

Por meio do depoimento da testemunha, “ficou devidamente demonstrada a ofensa à autora praticada pela colega de trabalho. Com efeito, é dever do empregador garantir um ambiente de trabalho saudável e respeitoso, o que não ocorreu no caso dos autos”, destacou o relator do acórdão, o desembargador Eduardo Milléo Baracat.

Ofensa à intimidade e à honra

O dano moral se mostra inquestionável, destacou o magistrado, diante da ofensa à intimidade, à vida privada e à honra da autora, “tuteladas pelo art. 5º, X, da Constituição. Trata-se de dano in re ipsa, ou seja, que dispensa a comprovação”, complementou o relator.

Da mesma forma, o nexo causal encontra-se presente, “pois o dano à intimidade sofrida pela autora é efeito direto e imediato do ato ilícito da empregada do reclamado, pela qual é responsável objetivamente. Presentes, desse modo, os elementos da responsabilidade civil (Código Civil, art. 927), incumbe ao reclamado o dever de indenizar a reclamante”, salientou o relator.

Clique aqui para ler a sentença

Clique aqui para ler o acórdão

0000610-20.2021.5.09.0013 (Curitiba)

JURISPRUDÊNCIA DO STJ
Efeitos da revelia no processo civil: as alegações do autor, o silêncio do réu e a análise do juiz

Imprensa STJ

Disciplinada, em especial, nos artigos 344 a 346 do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), a revelia se caracteriza como a situação processual em que o réu, devidamente citado, deixa de contestar as alegações apresentadas na petição inicial.

Conforme ensina o ministro Paulo de Tarso Sanseverino (REsp 1.625.033), a revelia não representa redução ou supressão dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, visto que ‘‘o demandado, ineludivelmente ciente da ação contra ele movida, terá a faculdade de apresentar defesa e, se não o fizer, ou em o fazendo intempestivamente, arcará com os ônus daí decorrentes’’.

Entre esses ônus, destacam-se a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor da ação (artigo 344) e a fruição, a partir da data de publicação do ato decisório no órgão oficial, dos prazos contra o revel que não tenha patrono nos autos (artigo 346).

Entretanto, quanto ao disciplinado no primeiro artigo, merece destaque o fato de que o próprio CPC/2015 definiu as hipóteses em que a revelia não produzirá o referido efeito (artigo 345). Além disso, o diploma legal dispõe que o revel poderá intervir no processo em qualquer fase, recebendo-o no estado em que se encontrar.

Diante da complexidade do instituto – também previsto no CPC/1973 – e das dúvidas advindas de sua aplicação, o STJ, com frequência, recebe recursos que questionam vários aspectos da revelia – em especial no que diz respeito a seus efeitos. A natureza da presunção das alegações do autor da ação, a revelia em ações possessórias e a atuação do curador especial em favor de réu revel foram alguns dos temas já analisados pelos colegiados de direito privado do tribunal.

Presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor é relativa

Ministro Raul Araújo
Foto: José Alberto/Imprensa STJ

A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor em razão da revelia do réu é relativa. Para o pedido ser julgado procedente, o juiz deve analisar as alegações do autor e as provas produzidas.

Tal entendimento já existia no tribunal antes da entrada em vigor do atual CPC, como se vê no voto proferido pela ministra Nancy Andrighi, em 2011, no julgamento do REsp 1.128.646, o qual versava sobre a possibilidade de o julgador rever o valor indenizatório fixado a título de danos morais, uma vez reconhecida a revelia do réu.

Na ocasião, a magistrada afirmou que o julgador deve ‘‘atentar para a prova de existência dos fatos da causa, razão pela qual, a despeito da ocorrência de revelia, pode, até mesmo, negar provimento ao pedido’’. Também votou assim, em 2014, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, no REsp 1.335.994.

Já sob a vigência do CPC/2015, votou no mesmo sentido o ministro Raul Araújo. Ao relatar o REsp 1.588.993, o ministro lembrou que, de fato, a revelia tem como decorrência a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor, mas esse efeito é relativo, ‘‘podendo ceder diante da análise que o magistrado faz de outros elementos e provas dos autos, de modo que a decretação da revelia não tem como consectário lógico e necessário a procedência do pedido’’. Em posição igual esteve a ministra Nancy Andrighi, em novembro de 2021, no AgInt no AREsp 1.915.565.

Revel na fase de conhecimento precisa ser intimado no cumprimento de sentença

Ministro Paulo de Tarso Sanseverino
Foto: Rafael Luz/Imprensa STJ

Ao julgar o REsp 1.760.914, a Terceira Turma do STJ, sob a relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, definiu que é necessária a intimação pessoal dos devedores no momento do cumprimento de sentença decorrente de processo no qual os réus, embora citados pessoalmente, não apresentaram defesa e, por isso, foram declarados revéis.

Com a decisão, o colegiado readequou seu entendimento sobre o tema. Na ocasião, o relator explicou que, após a edição da Lei 11.232/2005, a qual simplificou o processo de execução de sentença, o STJ estabeleceu a desnecessidade da intimação pessoal da parte revel para o cumprimento da sentença.

Entretanto, com a entrada em vigor do CPC/2015, ficou expressamente previsto que o réu sem procurador nos autos, incluindo-se aí o revel, mesmo quando citado pessoalmente na fase cognitiva, deve ser intimado por carta.

‘‘Pouco espaço deixou a nova lei processual para outra interpretação, pois ressalvara, apenas, a hipótese em que o revel fora citado fictamente, exigindo, ainda assim, em relação a este, nova intimação para o cumprimento da sentença, em que pese na via do edital’’, destacou o relator.

A revelia na ação possessória retira o direito de indenização por benfeitorias

A Terceira Turma, desta vez com relatoria da ministra Nancy Andrighi (REsp 1.836.846), decidiu que, havendo revelia do réu nas ações possessórias, o juiz não pode determinar a indenização das benfeitorias no imóvel, sob pena de se caracterizar julgamento extra petita (fora do pedido), ante a ausência de pedido indenizatório formulado na contestação, ou mesmo em momento posterior.

O colegiado julgou recurso interposto por uma companhia de habitação popular contra acórdão do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), o qual, no curso de ação de resolução de contrato de compra e venda de imóvel com reintegração de posse, manteve a sentença que reconheceu para a ré revel o direito de receber pelas benfeitorias.

Ao proferir seu voto, a relatora destacou que o deferimento do pleito de indenização por benfeitorias pressupõe a necessidade de comprovação da sua existência e da discriminação de forma correta. ‘‘A fase de liquidação de sentença não é momento processual adequado para o reconhecimento da existência de benfeitorias a serem indenizadas, tendo o objetivo – apenas – de especificar o quantum debeatur (apuração do valor da indenização)’’.

Ação de divórcio com pedido de exclusão do sobrenome adotado pelo cônjuge

A revelia de ex-cônjuge na ação de divórcio em que se pleiteia, também, a exclusão do sobrenome por ele adotado não pode ser interpretada como anuência à retomada do nome usado antes do casamento.

Esse foi o entendimento da Terceira Turma ao julgar recurso (em segredo de justiça) no qual um ex-marido requereu a retirada de seu sobrenome do nome da ex-esposa, sob a alegação de que a revelia por parte dela equivaleria à sua concordância quanto à exclusão. Segundo o recorrente, a regra seria a retomada do nome de solteira, de modo que a exceção – a manutenção do sobrenome – dependeria de manifestação expressa, o que não ocorreu no caso.

A relatora, ministra Nancy Andrighi, destacou que, conforme previsão legal expressa (artigo 320, inciso II, do CPC/1973, e artigo 345, inciso II, do CPC/2015), não se presume a veracidade em virtude da revelia quando o litígio versa sobre direitos indisponíveis, como é o caso do direito ao nome – indiscutivelmente, um direito de personalidade.

Ela ponderou que, ao contrário do que disse o ex-marido, o retorno ao nome de solteira é que exigiria manifestação expressa nesse sentido, sobretudo em virtude do uso contínuo do patronímico pela ex-cônjuge por quase 35 anos. Além disso, lembrou que o efeito da presunção de veracidade decorrente da revelia apenas atinge as questões de fato, as quais não foram apresentadas na petição inicial.

‘‘O direito ao nome, assim compreendido como o prenome e o patronímico, é um dos elementos estruturantes dos direitos da personalidade e da dignidade da pessoa humana, uma vez que diz respeito à própria identidade pessoal do indivíduo, não apenas em relação a si mesmo, mas também no ambiente familiar e perante a sociedade em que vive’’, afirmou a magistrada.

Não há presunção de veracidade no valor indenizatório indicado pelo autor

Ao julgar o REsp 1.520.659, a Quarta Turma, sob a relatoria do ministro Raul Araújo, definiu que, reconhecida a revelia, a presunção de veracidade quanto aos danos narrados na petição inicial não alcança a definição do valor indenizatório indicado pelo autor da ação.

O entendimento teve origem em ação de indenização por danos morais e materiais ajuizada por um grupo de pessoas contra uma empresa, por suposto descumprimento de acordo firmado para a desocupação de área destinada à construção de um complexo naval. Ao analisar o caso, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) fixou a indenização por dano material conforme o pedido da ação, momento processual em que a empresa ré foi declarada revel.

Em seu voto, Raul Araújo reforçou o caráter relativo da presunção de veracidade na revelia e avaliou que, em casos como o analisado, não se pode confundir a existência dos danos materiais com a sua correta quantificação pelos próprios autores.

‘‘O quantum é decorrência do dano material, e seu valor deve corresponder ao prejuízo efetivamente sofrido pela parte lesada, a ser ressarcido pelo causador, não permitindo o enriquecimento sem causa’’, declarou o relator.

Revel pode apresentar argumentos jurídicos em sua apelação

A devolutividade do recurso de apelação não está adstrita à revisão dos fatos e das provas do processo, mas alcança também, especialmente, as consequências jurídicas que lhes atribuiu a instância anterior. Sendo assim, não apenas as matérias de ordem pública podem ser alegadas pelo réu revel em sua apelação, mas qualquer argumento jurídico que possa alterar o resultado do julgamento (AgInt no REsp 1.848.104).

Esse foi o entendimento da Quarta Turma do STJ ao anular acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), em que a corte, analisando embargos opostos por uma empresa, decidiu que ela só poderia suscitar questões de ordem pública na apelação, por ter sido declarada revel na primeira instância.

O voto que prevaleceu no julgamento da Quarta Turma foi o do ministro Antonio Carlos Ferreira. Segundo ele, não se pode entender a presunção de veracidade na revelia como um limite ao exercício da dialética, pelo réu revel, visando à defesa técnica de seus interesses. ‘‘A presunção de veracidade sobre os fatos não subtrai do revel a possibilidade de discutir suas consequências jurídicas’’, afirmou o ministro.

Legitimidade do curador especial em favor de réu revel

O ministro Antonio Carlos também foi relator do REsp 1.088.068 (julgado com base no CPC/1973), em que a Quarta Turma definiu, por unanimidade, que o  curador especial tem legitimidade para propor reconvenção em favor de réu revel citado por edital. Na ocasião, o ministro afirmou que tal poder se encontra inserido no ‘‘amplo conceito de defesa’’.

O caso analisado tratou, na origem, de ação de reintegração – posteriormente, convertida em ação de rescisão contratual – proposta por uma empresa de arrendamento mercantil contra um cliente, em virtude de atraso em parcela de carro financiado.

Devido à não localização do réu, nomeou-se curador especial, que apresentou reconvenção, pedindo a devolução das parcelas já quitadas, caso fosse determinada a restituição do bem. Tanto a primeira quanto a segunda instância entenderam pela ilegitimidade do curador para reconvir.

Em seu voto, o relator ressaltou que a doutrina e a jurisprudência são uniformes no sentido de que o curador nomeado tem como função precípua defender o réu revel citado por edital, sendo que a expressão ‘‘defesa’’, pela regra do artigo 9º, inciso II, do CPC/1973 (artigo 72 do CPC/2015) não sofreu nenhuma limitação legal em sua amplitude.

‘‘Entendo que a atuação do curador especial deve possuir amplo alcance no âmbito do processo em que for nomeado e em demandas incidentais a esse, estritamente vinculadas à discussão travada no feito principal. Tal orientação, a meu ver, é a que melhor se coaduna com o direito ao contraditório e à ampla defesa’’, disse o magistrado.

Já sob a vigência do CPC/2015, a Quarta Turma manteve esse entendimento ao julgar, em 2019, o AgInt no REsp 1.212.824, de relatoria da ministra Isabel Gallotti.

‘‘De acordo com os princípios do devido processo legal e da ampla defesa, bem como em atenção ao princípio da economia processual, deve ser garantido ao réu representado por curadoria especial o direito de ajuizar reconvenção. Ao curador, cabe o exercício da tutela dos direitos do réu, na medida em que é responsável pela representação em tudo que diga respeito ao processo e à lide que esse veicula’’, afirmou a ministra na ocasião.

Em 2022, a tese foi aplicada monocraticamente pela ministra Isabel Gallotti no AREsp 1.879.930 e pelo ministro Marco Buzzi no REsp 2.014.793.

PEJOTIZAÇÃO
TRT-SC reconhece vínculo de emprego em relação fake de franquia

Secom TRT-SC

A Justiça do Trabalho de Santa Catarina, nos dois graus de jurisdição, declarou nulo o contrato de franquia entre uma administradora de condomínios e um administrador em São José (SC). Por unanimidade de votos, a 4ª Câmara do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (TRT-12, SC) considerou que a franqueadora conduzia o empreendimento e reconheceu a existência de relação de emprego entre as partes.

Na petição em que solicitou o reconhecimento do vínculo, o administrador relatou que começou a trabalhar para a empresa em 2016, alcançando o posto de coordenador de uma agência em 2017. Ele disse que poucos meses depois foi obrigado a abrir sua própria empresa e atuar como franqueado para prosseguir trabalhando, na mesma função e local, sem pagar pelo licenciamento da franquia.

Ao contestar o pedido do autor da ação reclamatória, a empresa afirmou que em 2017 reformulou a organização das agências e convidou o trabalhador a atuar como franqueado. Segundo a defesa do empreendimento, desde então, o empregado passou a atuar como prestador de serviços, com autonomia e sem subordinação.

Vínculo de emprego

Após examinar documentos e ouvir o depoimento de testemunhas, a juíza Mariana Antunes da Cruz Laus, da 3ª Vara do Trabalho de São José, acolheu parcialmente o pedido do administrador. Ela declarou a nulidade do contrato de franquia, reconhecendo o vínculo de emprego. A franqueadora foi condenada a pagar um total de R$ 20 mil em verbas rescisórias, como aviso-prévio, 13º salário e férias.

Desembargador Gracio Petrone foi o relator   Foto: Simone Dalcin/Secom TRT-SC

Ao fundamentar a decisão, a magistrada observou que o sistema de franquia empresarial, normatizado pela Lei de Franquias (Lei nº 13.966 de 2019), pressupõe que o franqueador busca a expansão de seu negócio e que o franqueado também é um empreendedor – o que não aconteceu no caso dos autos.

‘‘A forma como a franquia do autor foi constituída mostra que ele,  na verdade, não era, de fato, empreendedor e que, tampouco, a ré estava expandindo o seu negócio’’, afirmou a juíza, destacando que a franqueadora era responsável pelos pagamentos e a admissão dos empregados da franqueada.

Para a magistrada, as próprias cláusulas constantes do contrato de franquia impediam a gestão financeira da franqueada. ‘‘A constituição de pessoa jurídica pelo autor foi clara imposição das rés e, ainda, o negócio permaneceu integralmente sob a sua gestão, seja na condução do negócio, seja na administração da receita, seja na relação com os empregados’’, concluiu.

Recurso ordinário no TRT-SC

No julgamento do recurso ordinário, a decisão de primeiro grau foi mantida de forma unânime pela 4ª Câmara do TRT-SC. Para o desembargador-relator Gracio Petrone, o conjunto de documentos e depoimentos apresentados indicou que o negócio era, na verdade, conduzido pela franqueadora.

‘‘Infere-se que havia uma ingerência estranha à natureza da franquia na administração e gestão da franqueada, inclusive quanto a questões de natureza trabalhista’’, observou.

‘‘Não se ignora a influência do franqueador no negócio, típica da modalidade contratual. Entretanto, treinar a empresa franqueada para utilizar métodos do negócio e da organização empresarial não se confunde com administrar ativamente, com acesso e movimentação da conta bancária’’, expressou no acórdão. Não houve recurso da decisão. (Fábio Borges/Secom TRT-SC)

Clique aqui para ler a sentença

Clique aqui para ler o acórdão

0000282-80.2021.5.12.0054 (São José-SC)

RICOCHETE
Dispensa motivada por amizade com desafetos do empregador é discriminatória

Secom TST

 A Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1), do Tribunal Superior do Trabalho (TST), considerou discriminatória a dispensa de um executivo da Indaiá Brasil Águas Minerais Ltda. em razão da amizade com ex-empregados considerados desafetos de um dos sócios da empresa. Para o colegiado, a discriminação se deu de forma indireta (em ricochete), ultrapassando o poder diretivo do empregador.

‘‘Feios e gordos’’

Na ação reclamatória, o empregado, engenheiro eletricista, disse que trabalhara na empresa por cerca de 20 anos até chegar ao cargo de superintendente. Em outubro de 2012, durante suas férias, um de seus subordinados, por telefone, informou que a empresa estava buscando nomes para substituí-lo. O motivo seria o fato de ele ter postado fotos de viagem com dois ex-empregados de quem um dos diretores não gostava, alegadamente por serem ‘‘feios e gordos’’, e não admitia que seus funcionários se relacionassem com eles.

Ao retornar das férias, ele disse que foi impedido de ingressar na empresa. Seus objetos pessoais foram recolhidos e entregues em sua residência em caixas de papelão. Ainda de acordo com seu relato, outros três empregados que participaram da viagem também foram dispensados.

Faculdade do empregador

A empresa, em sua defesa, sustentou que o ato da dispensa é uma faculdade conferida a todo empregador para encerrar um contrato de trabalho. Segundo a Indaiá, a demissão fora uma decisão financeira, e não motivada por amizades mantidas fora do ambiente de trabalho.

Intolerância pela amizade

O juízo de primeiro grau fixou a indenização em R$ 150 mil, valor mantido pelo Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região (TRT-7, Ceará), por entender que o caso se trata de intolerância pela amizade de empregados com os ex-empregados, cuja inimizade do sócio da empresa resultou da condição física dessas pessoas. Segundo o TRT cearense, não se pode acreditar que quatro funcionários do primeiro escalão tenham sido dispensados ‘‘sem qualquer motivo’’, ao mesmo tempo e logo após a viagem de férias.

Sem amparo legal

Ao julgar recurso de revista (RR) da empresa, a Quarta Turma afastou a condenação, por entender que não se poderia presumir, a partir da decisão do TRT, que o empregado fora vítima de ato discriminatório, pois estaria se criando uma discriminação de forma reflexa, sem amparo em lei.

De acordo com o colegiado, não havia referência a sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade do empregado como motivo da dispensa, o que afastaria o enquadramento do caso na Lei 9.029/1995, que veda práticas discriminatórias nas relações de trabalho.

Contra essa decisão, o supervisor interpôs embargos à SDI-1.

Caso peculiar

Ministro Aloysio Corrêa da Veiga
Foto: Secom TST

O relator dos embargos, ministro Aloysio Corrêa da Veiga, disse que se trata de um caso peculiar, porque a dispensa ocorrera não por ato discriminatório contra o próprio empregado, mas por ele manter amizade com desafetos de um de seus diretores. A seu ver, essa espécie de ‘‘discriminação por ricochete’’ requer uma reflexão sobre os limites do poder diretivo do empregador e a amplitude da função social do contrato de trabalho e da inibição do exercício abusivo desse direito.

Poder potestativo

Segundo o ministro, o poder potestativo do empregador de dispensar empregados tem previsão no artigo 2º da CLT. Entretanto, esse está vinculado ao exercício de todas as atividades administrativas da empresa, como organizar regras de trabalho, fiscalizar e mesmo aplicar punições. ‘‘Esse poder decorre da necessidade de controlar a prestação dos serviços para o fim de conferir a produção e a qualidade do produto final do trabalho’’, explicou.

Dignidade ferida

No caso dos autos, contudo, a conduta empresarial de demitir o empregado em razão de suas relações pessoais atinge a dignidade e causa sofrimento.

‘‘Não há como admitir que ofensa relacionada com a qualidade física de amigos pessoais seja argumento para demissão de um empregado, quando o poder diretivo tem limite na qualidade do trabalho e no cumprimento das regras empresariais – que, no caso, não foram fundamento da dispensa’’, assinalou.

Vedação legal

O relator observou, ainda, que o artigo 1º da Lei 9.029/1995 veda a discriminação ‘‘por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros’’. Trata-se, segundo ele, de um rol exemplificativo. ‘‘Cabe entender que a discriminação pode ocorrer de várias formas, incumbindo apenas decifrar se a intenção do empregador está vinculada ou não ao trabalho, já que nem sempre as razões efetivas são enunciadas de forma tão explícita’’, ressaltou.

Para o ministro, a dispensa infundada, com fundamento na amizade do empregado com pessoa desafeta do empregador, ‘‘e, mais ainda, quando a razão da inimizade decorre de aversão descabida a características físicas dessas pessoas’’, sustenta o entendimento de efetiva discriminação, que deve ser repudiada.

Com o reconhecimento da dispensa discriminatória, foi restabelecida a decisão do TRT, e o processo retornará à Quarta Turma para o exame dos demais temas do recurso.

Clique aqui para ler o acórdão

E-ED-RR-2016-68.2014.5.07.0016-CE