DISCRIMINAÇÃO
Mãe demitida após licença médica para cuidar do filho será indenizada em R$ 12 mil

Reprodução Blog Korrig Anne

Causa presunção de constrangimento, dor e humilhação demitir trabalhadora que falta ao serviço apenas para atender o filho de colo numa situação de emergência médica. Por se tratar de mãe, a conduta patronal configura dispensa discriminatória, proibida pela jurisprudência trabalhista.

Por isso, a juíza do Trabalho Natália Luiza Alves Martins, em exercício na 3ª Vara do Trabalho de Brasília, condenou uma locadora de veículos a pagar R$ 12 mil, a título de danos morais, a uma trabalhadora demitida sem justa causa no dia em que retornou ao trabalho depois da licença médica de nove dias para cuidar da saúde do filho.

Para a magistrada, as provas dos autos levam a concluir que o empregador demitiu a trabalhadora em razão dos afastamentos que se fizeram necessários por ser mãe e mulher, confirmando a tese de discriminação de gênero.

Filho de colo, doente e sem plano de saúde

Contratada como analista administrativa em 2022, a reclamante narra que o contrato contava com plano de saúde, e que decidiu incluir o filho, pagando a cota-parte correspondente, com desconto no contracheque. Ela conta que quando precisou de atendimento médico de urgência para o filho, em um hospital, o atendimento foi negado ao argumento de que o plano estava inativo por falta de pagamento.

Em face da negativa de atendimento, a trabalhadora acabou tendo que recorrer à rede pública de saúde, por falta de condições de arcar com o valor da consulta. No curso da crise, o filho teve uma piora e precisou ser internado na UTI. Novamente, o plano negou o atendimento.

Apresentação de atestado médico e demissão

Após conseguir liminar na Justiça Comum para garantir o atendimento, a trabalhadora apresentou à empresa um atestado para se ausentar por nove dias. No mesmo dia em que retornou ao trabalho, ela diz que foi demitida sem justa causa.

Segundo ela, colegas teriam dito que o empregador afirmou que não contrataria mais mulheres, apenas homens, já que estes não faltam por causa de problemas com filhos. Afirmando que a dispensa teria se dado de forma discriminatória, acionou a Justiça trabalhista, pedindo para ser indenizada por danos morais e materiais.

Exercício do poder diretivo, contesta empregador

Em defesa, a empresa disse que a demissão imotivada faz parte do poder diretivo do empregador e que não houve qualquer discriminação.

Ao analisar os autos, a juíza Natália Martins revelou, inicialmente, que documento juntado aos autos mostra que houve atraso no pagamento do plano da trabalhadora, mesmo que o valor tenha sido descontado em folha, o que demonstra o motivo pelo qual o atendimento médico foi negado.

Estigmas e preconceitos

Quanto à alegação da empresa de que não existiu qualquer discriminação, a magistrada explicou que a dispensa discriminatória é o desligamento do empregado baseado em aspectos que não se relacionam com o seu desempenho profissional, e sim em estigmas e preconceitos.

Para a juíza, mesmo que não haja prova contundente da dispensa discriminatória, a demissão consumada no exato dia do retorno ao trabalho fala por si só. A ausência de motivação para a dispensa se apresenta como forte indício de que houve, no caso, discriminação.

A juíza ainda lembrou que, enquanto a demissão sem justa causa faz parte do poder diretivo do empregador, a relação de emprego tem proteção constitucional contra a despedida arbitrária.

Perspectiva de gênero

Ao tomar por base o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, instrumento elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com o objetivo de implementar, no Judiciário, políticas nacionais para enfrentamento à violência contra mulheres, a juíza Natália Martins frisou que, no caso concreto, é possível enxergar o gênero da trabalhadora como fator determinante para a demissão.

‘‘Apesar de não haver provas específicas da suposta fala discriminatória alegada na inicial, a dispensa no dia do retorno é prova mais do que suficiente de que o empregador a demitiu em razão dos afastamentos que se fizeram necessários por ser mãe e mulher, corroborando a tese de discriminação de gênero, o que demonstra abuso de poder potestativo.’’

Convenções internacionais

A magistrada observa que, além da previsão constitucional de igualdade de gêneros, o Brasil é signatário de convenções internacionais que proíbem a discriminação de gênero, entre elas a Convenção 111, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Convenção de Belém.

A empresa também deverá indenizar a trabalhadora por danos materiais, em R$ 194,37, valor referente a parcela do plano de saúde descontado em seu contracheque.

Da sentença, cabe recurso ordinário trabalhista ao Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (DF/TO). Redação Painel de Riscos com informações de Mauro Burlamaqui, da Assessoria de Imprensa do TRT-10.

Clique aqui para ler a íntegra da sentença

0000296-09.2023.5.10.0003 (Brasília)

TÉCNICA PUBLICITÁRIA
Anunciar ar-condicionado ‘‘silencioso’’ não causa dano moral, decide STJ

Reprodução Arthec.Com.Br

Afirmar, em campanha publicitária, que determinado aparelho de ar-condicionado é silencioso não gera danos morais coletivos. Com essa conclusão, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou improcedente ação civil pública (ACP) ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF) contra um fabricante.

O MPF sustentou que a campanha violou direitos difusos do consumidor, o qual teria sido induzido em erro ao acreditar que o aparelho de ar-condicionado não faria nenhum barulho – o que não seria verdade.

O juízo de primeiro grau e o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) concluíram que os consumidores teriam sido iludidos ao ser atribuída uma característica inexistente ao aparelho anunciado.

No recurso especial (REsp) apresentado ao STJ, o fabricante argumentou que a campanha publicitária foi divulgada antes da vigência do Código de Defesa do Consumidor (CDC), razão pela qual não poderia haver a aplicação retroativa de suas regras nem de seus conceitos jurídicos, como o de propaganda enganosa.

O fabricante destacou, ainda, que os aparelhos funcionavam regularmente, sem qualquer comprovação de que grande número de consumidores tenha se frustrado com a compra.

Puffing: técnica publicitária de mero exagero comparativo é admitida

Ministro Raul Araújo foi o relator
Foto: Sérgio Amaral/STJ

O ministro Raul Araújo considerou ‘‘bastante questionável’’ o entendimento das instâncias de origem, responsáveis por analisar as provas periciais, ao classificarem a propaganda como enganosa, pois os fatos ocorreram antes do CDC.

Segundo o ministro, mesmo após a vigência do CDC, que regula o assunto de forma expressa, a doutrina classifica esse tipo de propaganda como puffing – técnica publicitária que utiliza o exagero para enaltecer certa característica do produto.

‘‘Dizer ser o aparelho silencioso, nas condições tecnológicas da época, em que os condicionadores de ar de gerações anteriores produziam mais ruído, era mero exagero publicitário comparativo’’, observou Raul Araújo.

Danos morais coletivos restringem-se a casos de grave ofensa à moralidade

O ministro-relator comentou que a condenação em danos morais coletivos só é justificável em casos graves e intoleráveis, que representem lesão a valores fundamentais da sociedade.

O ministro explicou, com amparo na doutrina e na jurisprudência do STJ, que a propaganda de condicionadores de ar tem razoável conteúdo comparativo e se dirige a um público consumidor capaz de compreender o exagero na apresentação de alguma característica.

‘‘Em tal contexto, não se pode entrever a ocorrência de danos morais coletivos, que ficam adstritos às hipóteses em que configurada grave ofensa à moralidade pública, sob pena de sua banalização, tornando-se, somente, mais um custo para as sociedades empresárias, a ser repassado aos consumidores’’, concluiu Raul Araújo ao dar provimento ao recurso especial. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

REsp 1370677

REINTEGRAÇÃO DE POSSE
TRF-4 autoriza União a retomar sede do Amigos da Terra, mas nega indenização pelo esbulho possessório

Por Jomar Martins (jomar@painelderiscos.com.br)

Divulgação NAT Brasil

Findo o prazo estabelecido no contrato de cessão de uso gratuito do imóvel, o Poder Público pode, a qualquer tempo, exigir a sua retomada. Assim, após expressa notificação do ocupante, para desocupação da área, resta caracterizado o esbulho possessório.

O entendimento é da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) que, por unanimidade, manteve íntegra a sentença que julgou parcialmente procedente o pedido da União para retomar o imóvel-sede do Núcleo Amigos da Terra (NAT Brasil) em Porto Alegre, uma entidade sem fins lucrativos que ‘‘luta’’ pelo desenvolvimento ambiental.

Para o relator da apelação, juiz federal convocado Marcelo Cardozo da Silva, não procedem as alegações de que a ausência de processo administrativo prévio por parte da União, com oportunização do exercício de ampla defesa e contraditório, implicou abuso de poder.

Despejo sem direito a nada, diz a Lei

‘‘Os bens públicos federais contam com regime jurídico especial próprio, tratado no Decreto-Lei 9.760/1946, que estabelece no art. 71 que, inexistindo autorização expressa do Poder Público Federal para a ocupação de área pública, o ocupante poderá ser sumariamente despejado e perderá, sem direito a qualquer indenização, tudo quanto haja incorporado ao solo’’, cravou no acórdão.

O juiz-relator lembrou, por outro lado, que a União instaurou procedimento administrativo – com expressa notificação do demandado – para a desocupação do imóvel. Logo, não se poderia falar de irregularidade formal ou cerceamento de qualquer direito do ocupante.

Pedido de retomada do imóvel

A instituição ambientalista ocupava o imóvel – localizado à Rua Olavo Bilac, 192, bairro Azenha, na Capital gaúcha – desde 2005, mediante contrato de cessão gratuita por oito anos – portanto, já estava sob posse precária desde 2013.

A União diz que só ajuizou a ação de reintegração/manutenção de posse após negativa de desocupação amigável do imóvel no prazo de 90 dias – a notificação foi emitida em 20 de novembro de 2019. Além disso, pediu a condenação do réu à indenização por esbulho possessório, nos termos do artigo 10, parágrafo único, da Lei 9.636/98.

Os termos do parágrafo único: ‘‘Até a efetiva desocupação, será devida à União indenização pela posse ou ocupação ilícita, correspondente a 10% (dez por cento) do valor atualizado do domínio pleno do terreno, por ano ou fração de ano em que a União tenha ficado privada da posse ou ocupação do imóvel, sem prejuízo das demais sanções cabíveis’’.

Indenização por esbulho é locupletamento ilícito

Notificado pela 10ª Vara Federal de Porto Alegre, o Núcleo apresentou contestação. De relevante, disse que foi pego de surpresa com a notificação para desocupação do imóvel em 90 dias, já que desenvolve as suas atividades – de alta relevância social – nos termos que motivaram a cessão de uso gratuito.

Destacou que o imóvel foi totalmente restaurado, o que deixou para trás um cenário de ruínas, onde havia acumulação de lixo, proliferação de ratos e ainda servia de palco para a violência. Por fim, classificou de absurda a cobrança de indenização pela posse, requerida pela União, pois beira o ‘‘locupletamento ilícito’’.

Devolução fora do prazo é esbulho

Ao analisar o mérito da ação, a juíza federal Ana Paula De Bortoli entendeu que a ausência de devolução do imóvel no prazo caracterizou esbulho possessório. Com isso, a parte ré deixa de possuir justo título, e sua posse não mais se configura justa nem de boa-fé, nos termos do contrato de cessão. Logo, justifica-se a medida judicial de reintegração de posse pleiteada pela União.

Por outro lado, a julgadora considerou sem cabimento o pedido de condenação por esbulho possessório, considerando que o imóvel – que pertencia a duas irmãs, que não tinham herdeiros – estava em péssimo estado de conservação, com risco de desabamento, até ser restaurado pelo Núcleo. Ela levou em conta, também, o rol de ações em prol de uma sociedade ecologicamente sustentável e socialmente mais justa.

‘‘Assim, embora reconheça o direito da União em retomar a posse do imóvel, considero que o pedido de indenização pelo esbulho seria injusta punição ao Núcleo réu, que investiu na conservação do imóvel, na valorização da vizinhança com suas relevantes atividades, ainda mais considerando o descaso com que a União sempre tratou o imóvel’’, escreveu na sentença de parcial procedência.

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5033874-78.2020.4.04.7100 (Porto Alegre)

 

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NATUREZA DO CARGO
Fiscal de súper não recebe mais por acumular tarefas de segurança, decide TRT-MG

Divulgação Rede BH

Para que o trabalhador possa auferir o plus salarial por acúmulo de função, não basta provar a prestação simultânea de serviços distintos. Antes, é necessário demonstrar que tais atividades, além de desempenhadas de forma rotineira, não são compatíveis com a função para a qual foi contratado.

Assim, a Nona Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT-3, Minas Gerais) confirmou sentença que negou adicional de acúmulo de funções a uma fiscal de loja do Supermercado BH Comércio de Alimentos, por ter exercido, cumulativamente, a função de segurança durante a vigência do contrato de trabalho.

Fiscal e segurança

Na reclamatória trabalhista, a profissional alegou que, além de realizar as atividades para as quais foi contratada, decorrentes da função de fiscal de loja, ‘‘era obrigada a exercer tarefas de segurança’’.

‘‘Tinha que abordar as pessoas furtando produtos dentro da unidade, além de acompanhar os eventuais suspeitos até a delegacia, aguardando lá a liberação policial’’, explicou a ex-empregada, pleiteando as diferenças salariais por acúmulo de funções.

O supermercado contestou, na defesa, as alegações da trabalhadora. Narrou que todas as tarefas exercidas eram inerentes às funções do cargo.

Atribuições da fiscal de loja

A juíza Nara Duarte Barroso Chaves, em atuação na 27ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, explicou que o acúmulo de funções ocorre quando o empregado, além das atividades habituais, passa a assumir responsabilidades parciais ou integrais de outro cargo existente nos quadros da empresa. E isso leva a um desequilíbrio entre os serviços exigidos do empregado e a contraprestação salarial inicialmente pactuada, causando, como reflexo, o enriquecimento sem causa do empregador.

No entanto, segundo a julgadora, a testemunha da reclamante, em depoimento, informou que a autora da ação sempre executou as mesmas funções desde o início do contrato de trabalho.

A magistrada frisou que as atribuições do fiscal de loja estão ligadas basicamente à observância do fluxo de empregados e clientes, prevenção de perdas, bem como a de inibição e fiscalização de furtos no estabelecimento. Para a juíza, tais atividades são condizentes com a função desempenhada.

Identidade de função

‘‘Portanto, o exercício de algumas tarefas, em algumas ocasiões, não compromete a identidade da função, tampouco tem o condão de caracterizar o exercício cumulativo das duas funções’’, destacou na sentença.

Segundo a magistrada, incide na hipótese o disposto no parágrafo único do artigo 456 da CLT. Pela norma, diante da falta de cláusula expressa, considera-se que o empregado se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com a condição pessoal; ou seja, ‘‘está o empregado obrigado às funções relativas ao cargo, bem como àquelas que, razoavelmente, sejam consideradas compatíveis com a condição pessoal’’.

Diante do exposto, a juíza Nara Duarte entendeu que não foi configurado o dito acúmulo de funções, razão pela julgou improcedente o pedido da trabalhadora, bem como o de dano moral decorrente deste pedido.

Atualmente, o processo aguarda decisão de admissibilidade do recurso de revista ao Tribunal Superior do Trabalho (TST). Redação Painel de Riscos com informações da Assessoria de Imprensa do TRT-3 

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ATOrd 0010488-12.2022.5.03.0106 (Belo Horizonte)

GOODWILL
Ágio e empresas-veículo: lacuna legal permanece mesmo com nova decisão do STJ

Por Patrícia Campos Soares

Advogada Patrícia Campos Soares
Reprodução: Linkedin

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu decisão inédita e favorável aos contribuintes nos autos do REsp 2.026.473/SC, permitindo o aproveitamento fiscal do ágio por rentabilidade futura (goodwill) em operações com ágio interno e empresas-veículo; isto é, sociedades usualmente constituídas por um curto período para receber um aporte financeiro e adquirir um investimento, muitas vezes sendo utilizada como sociedade intermediária da operação.

Inobstante o novo precedente, a lacuna legal referente ao uso de empresas-veículo permanece mesmo com o advento da Lei nº 12.973/2014, que trouxe diversas alterações relevantes na legislação tributária, inclusive no que diz respeito aos dispositivos aplicáveis à amortização fiscal do goodwill [1], razão pela qual as discussões sobre a matéria parecem estar longe de se encerrar.

Isso porque as normas anteriores que tratavam do tema não traziam qualquer impeditivo ao aproveitamento fiscal do goodwill nesses casos e, não obstante a Lei nº 12.973/2014 tenha vedado expressamente a dedutibilidade do ágio interno, esta permaneceu silente quanto ao aproveitamento do ágio em operações com interposição de empresas-veículo.

Diante dessa lacuna legal, o Fisco lavrava — e continuará lavrando — inúmeros autos de infração sob o argumento de que as empresas-veículo são constituídas com o único objetivo de reduzir tributos mediante o aproveitamento fiscal do ágio; ou seja, não haveria fundamento econômico que desse respaldo à operação para validar a amortização do goodwill.

Quando essas discussões chegavam ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, as decisões proferidas pelo órgão variavam dependendo do caso concreto, sendo mantidas as autuações nas hipóteses de o Carf entender que não havia ‘‘propósito negocial’’ na operação; isto é, qualquer objetivo na constituição da empresa-veículo além da dedutibilidade do ágio.

Nos últimos cinco anos, diversos precedentes relevantes sobre o assunto foram publicados pelo Carf.  Veja-se alguns exemplos.

Em 19/10/2023, foi proferido o Acórdão nº 1201-006.216 [2], que, por maioria dos votos, julgou procedente o recurso voluntário do contribuinte sob o entendimento de que a legislação então vigente permitiria a aquisição de participações societárias por interposição de empresas-veículo, desde que observados outros requisitos, como a confusão patrimonial, o efetivo desembolso de valores, entre outros — o que teria ocorrido no caso analisado.

De acordo com a referida decisão, ‘‘a opção pela realização de investimentos societários mediante a interposição de empresa veículo necessária ou útil à estratégia de negócios do contribuinte não representa, por si só, infração à lei, com ou sem os reflexos tributários decorrentes da amortização do ágio’’ [g.n.].

Os conselheiros entenderam, ainda, que ‘‘buscar o ágio não é ilícito, salvo nos casos de demonstração de simulação ou outro tipo de patologia intencional que justifique a desconstituição do ato em si’’. [3] [4].

Vale dizer que, na situação analisada, todas as exigências legais para a amortização fiscal do ágio foram observadas pelo contribuinte, razão pela qual a mera utilização de empresa-veículo não teria o condão de afastar a dedutibilidade do goodwill, conforme entendimento do Carf.

Outro exemplo de decisão do Carf sobre a matéria — porém, neste caso, desfavorável ao contribuinte — foi a proferida no Processo nº 11065.722801/2016-67 [5].

Nesta hipótese, as reais adquirentes do investimento se situavam no exterior e adquiriram a participação societária almejada por meio de empresa-veículo que, de acordo com a fiscalização, não possuía quaisquer operações ou mesmo um CNPJ preexistentes, tendo a empresa servido de intermediária tão somente para receber o aporte de recursos advindos de investidores no exterior e adquirir uma eletrônica no Brasil.

O Fisco entendeu se tratar de uma operação simulada em que a empresa-veículo foi constituída com o único objetivo de aproveitar o ágio da operação, sendo que as efetivas adquirentes eram sociedades estrangeiras. O Carf, por sua vez, manteve a autuação do Fisco por entender que não havia propósito negocial na operação [6].

Em que pese haver, de fato, um risco nessa espécie de reorganização societária, parece ser mais apropriado o entendimento de que a utilização de empresa-veículo em uma operação legítima e com fundamento econômico não pode, por si só, ser um impedimento à amortização fiscal do ágio, seja porque não havia — e continua não havendo — quaisquer impedimentos legais nesse sentido, seja porque o ágio integra o custo de aquisição do investimento e o contribuinte deve ter o direito de deduzi-lo, sob pena de violação ao princípio da renda líquida, segundo o qual as regras de tributação do IRPJ e da CSLL devem observar o efetivo acréscimo patrimonial dos contribuintes após as eventuais deduções aplicáveis [7] [8].

Nesse diapasão, são acertadas as decisões no sentido de descaracterizar a autuação do Fisco nos casos em que os requisitos para o aproveitamento fiscal do ágio estão presentes, tais como o efetivo desembolso de valores, o fundamento econômico e a confusão patrimonial, independentemente do emprego de empresa-veículo.

Mesmo porque, do contrário do que costuma alegar o Fisco, existem sim razões comerciais para sua utilização que vão muito além da mera economia tributária — o que, como já explicado, sequer é um ato ilícito, não sendo o planejamento tributário vedado na legislação pátria, mas, sim, as operações que acarretem simulação, fraude ou outra espécie de prejuízo ao erário [9].

Um exemplo de uso de empresa-veículo que possui ‘‘propósito negocial’’ e pode ser benéfico às partes envolvidas na operação é o caso de cisão parcial com posterior aquisição da empresa cindida pelo investidor [10]. Veja-se.

Um investidor pretende adquirir um percentual de participação societária de uma determinada sociedade, mas não possui interesse em ter outros sócios em seu negócio. Os sócios da empresa-alvo, de outro lado, têm a intenção de vender uma parte de sua sociedade e não pretendem compartilhar seu negócio com um terceiro.

Os sócios alienantes, então, realizam uma cisão parcial de sua sociedade, enquanto o investidor cria uma empresa-veículo para adquirir integralmente a empresa cindida, passando a ser o único titular desta na proporção que pretendia em relação à sociedade originária. Após a compra, o adquirente poderá efetuar uma incorporação reversa, extinguindo a empresa-veículo e mantendo a sociedade operacional ativa.

Reorganizações societárias como a do exemplo citado já foram analisadas pelo Carf [11] e, da análise das decisões do órgão, é possível verificar que o risco de manutenção da autuação não está atrelado ao uso de empresas-veículo em si, mas, sim, da ausência de um objetivo em tal estrutura além da redução da carga tributária, apesar de não haver qualquer impedimento legal ao contribuinte de economizar tributos, conforme mencionado.

Como explicado, a oscilação da jurisprudência do Carf tem se repetido há tempos e, embora não tenha havido decisões relacionadas a fatos geradores posteriores ao advento da Lei nº 12.973/2014, considerando que esta não trouxe inovações quanto ao uso da empresa-veículo para fins de amortização fiscal do ágio, a tendência é a de que a jurisprudência administrativa seja mantida; isto é, permitindo o uso de empresas-veículo quando observado algum propósito negocial na operação.

Há, porém, um agravante ao contribuinte que poderá influenciar nas futuras decisões do órgão sobre o tema, qual seja, a retomada do voto de qualidade decorrente da Lei nº 14.689/2023, passando o voto de desempate ser a favor do Governo nas votações do Carf.

No entanto, em que pese a possibilidade de uma mudança de entendimento no Carf sobre a matéria, com a volta do voto de qualidade, há uma luz no fim do túnel que se acende na seara judicial com a recente decisão proferida pelo STJ nos autos do REsp nº 2026473/SC, em 05/09/2023.

Isso porque o STJ validou o entendimento de muitas decisões proferidas pelo Carf e defendido pelos contribuintes de que a mera utilização de empresas-veículo, por si só e diante da ausência de dispositivo legal em contrário, não significa um impedimento ao aproveitamento fiscal do ágio.

De acordo com o Tribunal Superior, ‘‘embora seja justificável a preocupação quanto às organizações societárias exclusivamente artificiais, não é dado à Fazenda, alegando buscar extrair o ‘propósito negocial’ das operações, impedir a dedutibilidade, por si só, do ágio nas hipóteses em que o instituto é decorrente da relação entre ‘partes dependentes’ (ágio interno), ou quando o negócio jurídico é materializado via ‘empresa-veículo’; ou seja, não é cabível presumir, de maneira absoluta, que esses tipos de organizações são desprovidos de fundamento material/econômico’’ [g.n.].

Vale destacar que é a primeira vez que um tribunal superior se posiciona sobre o tema, sendo, portanto, um precedente inédito e bastante favorável aos contribuintes.

Ademais, embora a decisão também trate de fatos geradores ocorridos antes da Lei nº 12.973/2014, como explicado, a nova norma não trouxe quaisquer impedimentos à amortização fiscal do ágio em operações com a interposição de empresas-veículo, de maneira que a decisão poderá servir de precedente para fatos geradores ocorridos após a publicação da referida lei.

De fato, a nova decisão do STJ brilha nos olhos dos contribuintes, mas, quando se lida com o Fisco, é preciso sempre se lembrar que nem tudo que reluz é ouro…

Por fim, independente da jurisprudência judicial ou administrativa sobre a matéria, prevalece a lacuna legal que dá ensejo a essa espécie de discussão. Considerando o teor da maioria das decisões proferidas pelo Carf e, agora, pelo STJ, o contribuinte que optar por utilizar empresas-veículos em suas estruturas societárias deve continuar buscando fundamento econômico e razões comerciais que deem à operação algum respaldo para aproveitar fiscalmente o goodwill sem riscos de questionamento pelo Fisco.

[1] Vide art. 20 do Decreto-lei nº 1.598/77 e Lei nº 9.532/1997.
[2] CARF. Recurso Voluntário. Acórdão nº 1201-006.216. Processo nº 10830.722174/2013-31. Data de Sessão: 19/10/2023.
[3] No mesmo sentido: CARF. Recurso Voluntário. Acórdão nº 1302-006.875. Processo nº 16682.720277/2019-89. Data de Sessão: 15/08/2023.
[4] Vide art. 149, VII, do Código Tributário Nacional.
[5] CARF. Recurso Voluntário. Acórdão nº 1401-003.185. Processo nº 11065.722801/2016-67. Data de Sessão: 19/03/2019.
[6] No mesmo sentido: CARF. Recurso Especial do Procurador. Acórdão nº 9101-003.740. Processo nº 10480.735112/2012-25. Data de Sessão: 12/09/2018.
[7] POLIZELLI, Victor Borges. Direito Tributário – Princípio da Realização no Imposto sobre a Renda. Estudos em Homenagem a Ricardo Mariz de Oliveira. Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT). São Paulo, 2019. P. 42.
[8] ÁVILA, Humberto. “Dedutibilidade de Despesas com o Pagamento de Indenização Decorrente de Ilícitos Praticados por Ex-Funcionários” em Tributação do Ilícito. Cord. Pedro Augustin Adamy e Arthur Ferreira Neto. São Paulo. Editora Malheiros. 2018.
[9] O planejamento tributário e a teoria do proposito negocial. In: SCHOUERI, Luis Eduardo; BIANCO, João Francisco (coord.). Estudos de direito tributário em homenagem ao Professor Gerd Willi Rothmann. São Paulo: Quartier Latin, 2016. p 770.
[10] Considerando a aquisição de controle, nos moldes do CPC nº 15.
[11] CARF. Recurso Especial do Contribuinte. Acórdão nº 9101-006.381. Processo nº 10600.720035/2013-86. Data de Sessão: 06/12/2022.

Patrícia Campos Soares é sócia da área tributária no escritório Diamantino Advogados Associados