AVENTURA JURÍDICA
Empresa que usou o Judiciário para fazer pente-fino nos seus débitos se livra de pagar sucumbência milionária
Por Jomar Martins (jomar@painelderiscos.com.br)
Quando o valor estipulado para uma ação revisional de dívida tributária supera a casa dos R$ 100 milhões, sem nenhum embasamento jurídico ou contábil, cabe ao Poder Judiciário redimensioná-lo, para não arbitrar honorários excessivos em favor da parte vencedora nem prejudicar ainda mais a parte vencida, em atenção ao princípio da razoabilidade.
Foi o que fez a 1ª Turma do Tribunal Regional Federal 4ª Região (TRF-4), em sede de embargos declaratórios, ao arbitrar os honorários de sucumbência devidos à Fazenda Nacional nos percentuais mínimos estipulados no parágrafo 3º do artigo 85 do Código de Processo Civil (CPC), pondo fim à ação temerária intentada por uma indústria de Caxias do Sul (RS). Assim, ao invés de arcar com a sucumbência sobre os R$ 100 milhões, pagará apenas sobre R$ 100 mil.
O relator dos embargos declaratórios, desembargador Leandro Paulsen, criticou os patrocinadores desta ação, que chegou a ser extinta no primeiro grau da Justiça Federal por inépcia da petição inicial.
Pedidos genéricos
A ação (procedimento comum) foi ajuizada por Metalcorte Fundição Ltda, de Caxias do Sul, em face da Fazenda Nacional (União), pleiteando, em síntese, a nulidade de débitos fiscais, bem como a suspensão das execuções fiscais em trâmite enquanto os débitos estiverem em discussão. A empresa autora pediu, também, a condenação da União em danos morais, em função dos prejuízos suportados pelas possíveis/prováveis cobranças indevidas.
O juiz Fernando Tonding Etges, da 3ª Vara Federal de Caxias do Sul, observou que a petição inicial é recheada de pedidos genéricos; ou seja, não traz ‘‘pedidos determinados’’, como exige o artigo 324 do CPC. O parágrafo primeiro deste dispositivo diz que só é lícito formular pedido genérico nas seguintes situações, a saber: nas ações universais, se o autor não puder individuar os bens demandados; quando não for possível determinar, desde logo, as consequências do ato ou do fato; ou quando a determinação do objeto ou do valor da condenação depender de ato que deva ser praticado pelo réu.
No rol dos pedidos, é vasto o campo das indagações, segundo o julgador. Ele destacou as seguintes: qual débito a empresa pretende desconstituir e readequar?; quais débitos decaíram ou estão prescritos?; quais a empresa reputa ter pago em duplicidade ou que não teriam sido amortizados?; quais parcelamentos a empresa considera que houve anatocismo [cobrança de juros sobre juros devidos, em uma situação de inadimplência, conduta vetada pela lei]; e quais as razões a levam, em cada um dos diversos parcelamentos, a assim entender?; ademais, qual multa cobrada foi confiscatória?; sobre qual débito ela incidiu?
Suposições, meras suposições
Para o juiz, a parte autora, simplesmente, esquiva-se de apontar potenciais ilegalidades cometidas pela União, elevando todos os pontos levantados ao campo das suposições.
No que toca à alegação de cobrança em duplicidade, exemplificou, um trecho da petição inicial deixa claro que a autora – ipsis literis – ‘‘não possui a base da consolidação dos parcelamentos informados acima, não tem condições, até o presente momento, de averiguar se foram recolhidos ou migrados para um novo parcelamento, os mesmos fatos geradores’’.
Processo judicial não é instrumento investigativo
Em outras palavras, segundo Etges, a empresa desconhece se houve ou não pagamentos em duplicidade, buscando apenas que se apure, no processo, se eles existem ou não. ‘‘Ocorre que o processo judicial não figura como mero instrumento investigativo, mas sim o campo adequado para solução de conflitos, os quais a autora não logra dizer se estão ou não presentes’’, ensinou.
Em síntese, o juiz se convenceu de que a empresa pretende usar o processo judicial para realizar um pente-fino em seus débitos tributários, esquecendo-se que a finalidade da ação judicial é equacionar conflitos. Em verdade, não tem cabimento o contribuinte buscar o Poder Judiciário para que este ‘‘investigue’’ eventuais ilegalidades cometidas pela União. Antes, cabe à parte autora indicar, com precisão, que débitos estão em desacordo com a sua pretensão.
Processo extinto sem resolução de mérito
‘‘Também não há falar em falta de documentos para o manejo da ação, pois o ordenamento jurídico oferta instrumentos processuais para tanto, cabendo destacar o procedimento da tutela cautelar requerida em caráter antecedente (art. 305 e seguintes do CPC). Se os documentos são essenciais para a autora, é óbvio que não há como deduzir pedido final sem eles, cenário que, em verdade, acaba ensejando a situação presente, de pedidos genéricos escorados em suposições’’, definiu.
Neste cenário, o juiz Fernando Tonding Etges extinguiu o processo, sem resolução de mérito, com base nos artigos 485, inciso I (o juiz não resolverá o mérito quando indeferir a petição inicial); e 330, inciso I e parágrafo 1º, inciso II (a petição inicial será indeferida quando for inepta e o pedido indeterminado) – ambos do CPC.
Busca por nulidades
Inconformada com a extinção do processo, a autora interpôs recurso de apelação no TRF-4. O relator do recurso na 1ª Turma, desembargador Leandro Paulsen, no entanto, confirmou o teor da sentença, entendendo como correto o indeferimento da peça inicial.
Para o relator, a ação foi ajuizada com o propósito de averiguar todos os débitos existentes no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) da apelante perante a Receita Federal do Brasil (RFB) e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). A autora queria, na verdade, que um perito analisasse todos os créditos tributários constituídos desde 2007, em busca de eventuais nulidades – já que não foi capaz de especificá-los na petição inicial.
‘‘Adequada a decisão do juízo a quo [de primeiro grau], ao apontar que o objetivo da autora é usar o processo judicial para realizar um ‘pente-fino’ em seus débitos tributários, o que não é o objetivo do Poder Judiciário. Inepta a petição inicial, seu indeferimento é medida que se impõe’’, definiu no acórdão que negou a apelação.
Embargos de declaração
A União (Fazenda Nacional), vitoriosa no processo, entrou com embargos declaratórios para sanar uma omissão no acórdão de julgamento da apelação: o colegiado deixou de apreciar o pedido de arbitramento de honorários advocatícios a seu favor. Afinal, apresentou contrarrazões à apelação da parte autor, passando a integrar a relação processual.
O desembargador Leandro Paulsen, relator dos embargos, lembrou que a situação posta nos autos é muito peculiar, em função da clara inadequação entre o valor atribuído à causa e o conteúdo da petição inicial, já que o valor econômico atribuído à ação atingiu R$ 108,7 milhões. Assim, estipular a verba honorária em percentuais incidentes sobre tal montante resultaria em quantias elevadíssimas. Tal circunstância, por si só, não configuraria qualquer óbice legal. Todavia, dado o conteúdo da ação, a razoabilidade restaria completamente violada.
‘‘Miscelânea despregada da realidade’’
Na percepção do relator, a petição inicial apresentada em juízo é uma ‘‘verdadeira miscelânea despregada da realidade’’. É que a peça não tem qualquer construção jurídica sólida, fundamentando-se em hipóteses e elucubrações acerca de possíveis, eventuais e supostas ilegalidades perpetradas pela União nas migrações de parcelamento concretizadas pela contribuinte. ‘‘A fragilidade da peça inicial, inclusive, culminou na declaração de sua inépcia pelo Juízo a quo e somente quando manejado recurso de apelação em face da sentença é que houve angularização da lide’’, complementou.
Para Paulsen, a ‘‘aventura jurídica’’ proposta pelos advogados ainda pode gerar um novo rombo milionário nos cofres da Metalcorte Fundição a título de pagamento de honorários sucumbenciais, calculados com base no fictício valor da causa lançado na peça inicial. Assim, nos moldes do parágrafo 3º do artigo 292 do CPC, cabe ao Poder Judiciário corrigir o valor atribuído à causa quando este, manifestamente, não corresponder ao conteúdo patrimonial da lide.
Conduta temerária dos advogados
No arremate da fundamentação, o desembargador Leandro Paulsen apurou que o verdadeiro conteúdo patrimonial extraído da petição inicial é zero, tendo em vista que ‘‘não há uma única linha de base jurídica’’ para o que foi afirmado ao longo da peça.
‘‘Não obstante a temerária conduta dos profissionais, ainda assim havia uma subjacente pretensão de revisar a dívida tributária da parte autora. Paralelamente, restou movimentada a máquina do Poder Judiciário e houve atuação dos Procuradores da Fazenda Nacional em grau recursal, cujo labor deve ser condignamente remunerado’’, registrou no acórdão.
Considerando tudo o que foi exposto, a 1ª Turma decidiu, por unanimidade e de ofício, readequar o valor da causa ao patamar de R$ 100 mil e prover embargos de declaração, fixando os honorários advocatícios, em favor da União, nos percentuais mínimos previstos no parágrafo 3º do artigo 85 do CPC.
Clique aqui para ler o acórdão de embargos declaratórios
Clique aqui para ler o acórdão de apelação
Clique aqui para ler a sentença
003234-42.2018.4.04.7107 (Caxias do Sul-RS)
Jomar Martins é editor da revista eletrônica PAINEL DE RISCOS
AJUDE A EXPANDIR NOSSO PROJETO.
DOE ATRAVÉS DA CHAVE PIX E-MAIL: jomar@painelderiscos.com.br