IMÓVEIS RURAIS
Carf precisa dar segurança jurídica a quem preserva o meio ambiente

Divulgação/Ministério da Cidadania

Por Guilherme Saraiva Grava e Vivian de Araújo Silva

Os proprietários de imóveis rurais estão acostumados à burocracia envolvida, ano após ano, na declaração do Imposto Territorial Rural (ITR). Um dos maiores desafios desse processo é a comprovação das áreas de interesse ambiental por meio do Ato Declaratório Ambiental (ADA), um cadastro junto ao Ibama. Esse documento é essencial para excluir essas áreas da base de cálculo do imposto, aliviando a carga tributária dos proprietários que seguem as normas ambientais.

Os contribuintes sempre questionaram a obrigatoriedade do ADA como único meio de comprovação das áreas protegidas. O entendimento predominante entre tributaristas era de que, embora relevante, o ADA poderia ser substituído por outros documentos, como laudos técnicos ou registros em cartório.

Afinal, para muitos, não fazia sentido impor mais uma obrigação ao proprietário que já mantinha atualizado o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e preservava as áreas protegidas de sua propriedade. Mesmo com decisões favoráveis do Superior Tribunal de Justiça (STJ), divergências no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) sobre a obrigatoriedade do ADA persistiam.

Por isso, foi amplamente celebrada a alteração trazida pela Lei 14.932/2024, que tornou facultativa a apresentação do ADA a partir do exercício de 2024, reduzindo a burocracia e simplificando a declaração do ITR.

Contudo, surgiu uma dúvida importante: o que aconteceria com as pendências de exercícios anteriores? A nova legislação seria aplicada retroativamente para cancelar autuações antigas, ou a obrigatoriedade do ADA continuaria a valer para esses períodos?

A resposta veio, em parte, com três recentes decisões da Câmara Superior do Carf. O colegiado concluiu que a Lei 14.932/2024 não alterou a exigência do ADA para períodos anteriores a 2024. Desde 2000, o documento era obrigatório e assim permanece para esses exercícios.

Entretanto, essa decisão foi limitada às áreas de florestas nativas (AFN), uma das muitas categorias de áreas de interesse ambiental que podiam ser comprovadas pelo ADA. Ao restringir a obrigatoriedade do documento apenas às AFN, o Carf tentou evitar conflito com a jurisprudência do STJ, que já havia decidido que o ADA não era essencial para a comprovação de áreas de preservação permanente (APP) e áreas de reservas legais (ARL).

No entanto, essa distinção não está prevista na legislação, sendo uma interpretação criada pelo Carf que aumenta a insegurança jurídica para os contribuintes.

Na prática, uma lei que deveria simplificar a vida do produtor rural acabou se transformando em uma armadilha para muitos. Aqueles que sempre preservaram o meio ambiente e agiram em conformidade com as normas ainda enfrentam passivos fiscais difíceis de resolver.

Esse cenário destaca a necessidade de uma revisão mais ampla e definitiva sobre o tema. É essencial que a legislação tributária não apenas reconheça, mas também valorize os esforços dos proprietários rurais na preservação ambiental, eliminando exigências redundantes e trazendo maior segurança jurídica para todos. Somente assim será possível transformar o que hoje é um obstáculo burocrático em um verdadeiro incentivo à sustentabilidade.

Guilherme Saraiva Grava é advogado e sócio da área tributária no escritório Diamantino Advogados Associados

Vivian de Araújo Silva é estagiária da área tributária no escritório Diamantino Advogados Associados

RECURSOS REPETITIVOS
STJ deve pacificar incidência de IRPJ e CSLL sobre compensação fiscal

Diamantino Advogados Associados

Por Vitor Fantaguci Benvenuti

O momento de incidência de IRPJ e CSLL sobre compensação de tributos é uma das questões que mais geram controvérsia entre os contribuintes e a Receita Federal. Não por acaso, o ministro Rogerio Schietti Cruz, presidente da Comissão Gestora de Precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ), propôs o julgamento do tema sob rito dos recursos repetitivos, o que exige especial atenção, uma vez que a decisão final será, obrigatoriamente, aplicada por todos os juízes e tribunais do país.

Para entender o imbróglio, é preciso lembrar que muitas empresas no Brasil recolhem o IRPJ e a CSLL sob o regime do Lucro Real, o que permite a redução da base de cálculo tributável através de despesas dedutíveis que sejam necessárias à atividade empresarial (art. 47 da Lei 4.507/1964 e art. 311 do Decreto 9.580/2018).

Dentre essas deduções, a legislação prevê a possibilidade de deduzir da base de cálculo do IRPJ os impostos e contribuições recolhidos pelas empresas (art. 41 da Lei 4.507/1964 e art. 352 do Decreto 9.580/2018), o que também se aplica à CSLL (art. 57 da Lei 8.981/1995).

Em um exemplo bastante simplificado, se a empresa possui uma base de cálculo de IRPJ/CSLL de R$ 150 mil e apura R$ 50 mil devidos ao fisco a título de PIS/Cofins, poderá deduzir o valor destas contribuições da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, reduzindo-a para R$ 100 mil.

Porém, muitas vezes, o pagamento realizado a título de PIS/Cofins é questionado posteriormente pelos contribuintes, através de Mandado de Segurança. Foi o caso, por exemplo, do debate sobre a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, na qual os contribuintes saíram vitoriosos.

Nessas situações, a sentença do Mandado de Segurança reconhece que cobranças futuras são indevidas e declara o direito à compensação administrativa de valores indevidamente recolhidos pelo contribuinte nos últimos cinco anos – sem, contudo, quantificar o valor do crédito, por não ser cabível dilação probatória em Mandado de Segurança.

Ou seja, o contribuinte passa a deter um direito creditório ‘‘ilíquido’’ perante o fisco e, para aproveitá-lo, deve realizar a prévia habilitação junto à Receita Federal (atualmente regulamentada pela IN RFB 2.055/2021).

Ao analisar o pedido de habilitação, a Receita verifica apenas questões formais, como, por exemplo, se realmente há uma decisão transitada em julgado em que se reconheceu o direito à compensação ou se o contribuinte foi autor da ação judicial (art. 103 da IN RFB 2.055/2021).

Neste momento inicial, não há uma análise da existência ou confirmação do valor do crédito. Por isso, a própria IN 2.055/2021 afirma que ‘‘o deferimento do pedido de habilitação do crédito não implica reconhecimento do direito creditório’’ (art. 104).

Uma vez deferido o pedido de habilitação, o contribuinte pode iniciar a transmissão de declarações de compensação (DCOMP), nas quais utilizará o crédito decorrente da ação judicial, para extinção de débitos que tenha perante o fisco federal.

A partir da entrega de cada declaração de compensação, o fisco possui o prazo de cinco anos para homologar a compensação (por entender que o valor do crédito está correto e é suficiente para extinguir os débitos) ou glosar a compensação e proceder à cobrança do débito indevidamente compensado, caso entenda que o crédito declarado não está correto ou não existe.

No entanto, como esse crédito decorre de um indébito tributário de PIS/Cofins que havia sido deduzido da base de cálculo do IRPJ e da CSLL no passado, o ‘‘principal’’ dos tributos restituídos deverá sofrer a incidência do IRPJ e da CSLL quando da sua restituição, por se tratar de uma ‘‘recomposição’’ do acréscimo patrimonial da pessoa jurídica, que não foi tributado anteriormente.

Este é o entendimento da Receita Federal, formalizado no art. 1º do Ato Declaratório Interpretativo 25/2003 e avalizado pelo STJ (REsp 1.516.593).

Embora não existam grandes discussões sobre a necessidade de oferecimento do ‘‘principal’’ do crédito à tributação do IRPJ e da CSLL, há controvérsia entre fisco e contribuintes quanto ao momento em que deve haver essa cobrança.

Para o fisco, a totalidade do crédito deve ser oferecida à tributação no momento da entrega da primeira DCOMP. Alternativamente, caso haja a escrituração contábil de tais valores em momento anterior à entrega da primeira declaração, é no momento dessa escrituração que tais valores devem ser tributados (Solução de Consulta COSIT 308/2023).

Em um exemplo hipotético, se o contribuinte habilitou um crédito de R$ 100 mil e utilizou apenas R$ 2 mil na entrega primeira DCOMP, a Receita entende que os R$ 100 mil já devem ser imediatamente tributados.

Os contribuintes, por outro lado, defendem que a tributação deve ocorrer somente com a efetiva homologação de cada compensação, e apenas sobre a parcela do crédito efetivamente utilizado em cada declaração de compensação, pois é neste momento em que se aperfeiçoa a recuperação do indébito mediante compensação. E, assim, se perfectibiliza a disponibilidade jurídica ou econômica sobre os valores, configurando-se a hipótese de incidência do IRPJ e da CSLL.

De modo geral, a jurisprudência vem acolhendo a tese dos contribuintes, especialmente no âmbito do TRF-3, havendo acórdãos favoráveis da 3ª Turma (Processos 5000708-42.2020.4.03.6111, 5025246-57.2019.4.03.6100 e 5027290-49.2019.4.03.6100), 4ª Turma (Processos 5000448-68.2020.4.03.6109 e 5003061-59.2019.4.03.6121) e 6ª Turma (Processo 5001019-39.2020.4.03.6109), às quais compete julgar matérias de Direito Tributário.

Porém, ao longo de 2024, a 2ª Turma do STJ proferiu dois acórdãos desfavoráveis aos contribuintes (REsp 2.071.754/SC e REsp 2.117.608/SP), entendendo que a tributação é devida no momento do deferimento do pedido de habilitação de créditos. A nosso ver, essa interpretação é contraditória e deverá ser revista, pois é mais gravosa aos contribuintes do que o entendimento da própria Receita Federal na Solução de Consulta COSIT 308/2023.

A proposta de julgamento sob o rito dos repetitivos pelo ministro Schietti se deu na análise dos Recursos Especiais 2.153.492/SP, 2.153.547/SP e 2.153.817/SP. Segundo registro, é preciso ‘‘definir o momento em que é verificada a disponibilidade jurídica de renda em repetição de indébito tributário ou em reconhecimento do direito à compensação julgado procedente e já transitado em julgado, para a caracterização do fato gerador do IRPJ e da CSLL, na hipótese em que os créditos são ilíquidos’’.

A afetação dos processos ao regime dos recursos repetitivos é questão de tempo. A 1ª Turma do STJ, por sua vez, ainda não se debruçou de forma aprofundada sobre a questão, o que aumenta o suspense sobre qual será o rumo da controvérsia no STJ. A expectativa é acompanhada da necessidade de atenção por parte das empresas, especialmente considerando os impactos financeiros.

Resta aguardar a decisão definitiva para que se estabeleça um parâmetro uniforme, equilibrando a posição do fisco e os direitos dos contribuintes.

Vitor Fantaguci Benvenuti é advogado da área tributária no escritório Diamantino Advogados Associados

MERCADO IMOBILIÁRIO
STF reduz burocracia em alienação fiduciária

Divulgação Blog Estácio

Por Lívia Bíscaro Carvalho e Débora de Almeida Silva

O Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou, recentemente, a alienação fiduciária de bens imóveis por meio de contrato, dispensando, assim, a necessidade de escritura pública. A decisão dá plena eficácia ao artigo 38 da Lei 9.514/1997, que trata do tema.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio do Provimento 172, havia restringido a constituição da garantia por meio de instrumento particular apenas às entidades do Sistema Financeiro e Cooperativas de Crédito. O Provimento 175 limitou a validade da alienação fiduciária por meio de contratos desde que tenham sido lavrados até 11 de junho de 2024.

A Lei 9.514/1997 trouxe o procedimento de intimação do devedor e da consolidação da propriedade em nome do fiduciário em caso de inadimplemento da dívida, a fim de estabelecer mais segurança no ramo de financiamento habitacional, bastando o contato do credor junto ao cartório de registro de imóveis competente. Além disso, oferece mais celeridade na obtenção do crédito e evita a morosidade do Poder Judiciário.

Com a decisão do STF, a medida foi estendida para pessoas físicas e jurídicas, não mais se limitando às operações de instituições do Sistema Financeiro Imobiliário ou Habitacional. E mais: foi ampliada para todo tipo de obrigação que não apenas aquisição de imóveis.

O ministro Gilmar Mendes, relator, também afirmou que o artigo 38 da Lei não faz qualquer distinção entre a alienação via escritura pública ou instrumento particular. ‘‘Deixou clara a possibilidade de qualquer agente (pessoa física ou jurídica, integrante ou não dos sistemas elencados pelo CNJ) optar por qualquer uma delas.’’

Desse modo, os cartórios de imóveis não podem negar registro a contratos com alienação fiduciária firmados por particulares, desde que os requisitos legais estejam atendidos. A recusa não se justifica sob o ponto de vista econômico diante do valor cobrado para lavratura de escrituras públicas, nem mesmo pela perspectiva do artigo 38 da Lei 9.514/1997.

A decisão foi proferida em sede de mandado de segurança, mas pode servir de paradigma para outros casos envolvendo o tema, inclusive com determinação de comunicação à Corregedoria de todos os Tribunais de Justiça.

A decisão do STF representa, portanto, um marco para a modernização e desburocratização do sistema de financiamento imobiliário no Brasil. Ao reforçar a validade dos contratos particulares com efeito de escritura pública, a Corte promove maior dinamismo nas operações imobiliárias, conjugada com a segurança jurídica garantida pela Lei 9.514/1997.  

Lívia Bíscaro Carvalho é coordenadora da área cível do Diamantino Advogados Associados

Débora de Almeida Silva é estagiária da área cível do Diamantino Advogados Associados

BOOM PROCESSUAL
Reflexões sobre a judicialização dos desastres climáticos no Rio Grande do Sul em 2024

Juiz federal Oscar Valente Cardoso
Foto: Acervo Pessoal

Em 2024, o Estado do Rio Grande do Sul enfrentou um dos maiores desastres climáticos de sua história, marcado por fortes chuvas e alagamentos de rios, que causaram destruição generalizada, perda de vidas e desabrigo para milhares de pessoas. Além das consequências físicas e sociais imediatas, o desastre gerou uma série de reflexos jurídicos que se manifestaram em diversos tipos de processos judiciais, tanto coletivos quanto individuais.

Este artigo pretende analisar os diferentes aspectos da judicialização decorrente desse evento, a fim de oferecer uma visão abrangente das implicações processuais e dos desafios enfrentados pelo sistema judiciário brasileiro.

O objetivo principal deste estudo é fornecer uma compreensão detalhada sobre como desastres climáticos podem influenciar a dinâmica da prática forense, a partir de um aumento significativo (em um curto período de tempo) na quantidade e na complexidade dos litígios. Para tanto, serão abordados casos específicos e contextos gerais, a fim de compreender e enfrentar a situação.

A relevância deste tema é evidente, considerando que a frequência, a variedade e a intensidade dos desastres climáticos têm aumentado (especialmente no Brasil), tornando imprescindível a preparação adequada dos sistemas jurídicos e judiciário para lidar com as consequências legais dessas crises.

O artigo é estruturado da seguinte forma: inicialmente, apresenta-se uma contextualização detalhada dos desastres climáticos e seus efeitos jurídicos. Na segunda parte, são relembrados fatos históricos ocorridos no país e no exterior, enquanto o terceiro item é dedicado à judicialização coletiva e estrutural. A quarta parte do artigo foca na judicialização individual de direitos, enquanto o quinto tópico analisa a atuação do Judiciário na judicialização decorrente dos desastres climáticos.

Ao final, espera-se que este artigo contribua para a promoção de um sistema de justiça mais resiliente e capaz de responder adequadamente às necessidades da sociedade em períodos de crise.

Foto: Governo Federal

Desastres climáticos e seus efeitos jurídicos

Os desastres climáticos, definidos como eventos extremos causados por fatores naturais (como tempestades, inundações, secas e deslizamentos de terra), têm se tornado cada vez mais frequentes e intensos, por razões variadas. Esses eventos causam não apenas destruição física e perdas humanas significativas, mas também geram uma série de implicações jurídicas complexas e multifacetadas.[1] O sistema jurídico é desafiado a responder a uma variedade de demandas emergentes, desde questões de responsabilidade civil e contratos até direitos trabalhistas e previdenciários.

No Brasil, a vulnerabilidade a desastres climáticos é elevada, e o caso do Rio Grande do Sul, em maio de 2024, serve como um exemplo paradigmático dos múltiplos efeitos jurídicos que esses eventos podem desencadear. As chuvas intensas e os alagamentos resultantes provocaram uma crise humanitária e social, que exigiu respostas rápidas e eficientes da Administração Pública, inclusive do sistema judiciário.

A judicialização desses eventos torna-se inevitável e abrange uma ampla variedade de processos coletivos e individuais, especialmente sobre a reparação de danos e a garantia de direitos.

Os desastres climáticos podem gerar uma ampla variedade de efeitos jurídicos, que podem ser classificados em diretos e indiretos, afetam diversas áreas do Direito e causam diversos desafios ao sistema judiciário. A compreensão desses efeitos é o primeiro passo para desenvolver estratégias que possam mitigar os seus impactos e assegurar a efetividade da prestação jurisdicional para as suas vítimas.

Os efeitos jurídicos diretos são aqueles que decorrem imediatamente das consequências físicas e econômicas dos desastres climáticos. Entre os principais efeitos diretos, destacam-se os seguintes:

(a) Responsabilidade civil e reparação de danos: os desastres climáticos frequentemente resultam em danos a propriedades privadas e públicas e danos de natureza extrapatrimonial.[2] Em consequência, as vítimas podem buscar a reparação desses danos por meio de demandas de responsabilidade civil contra as pessoas legalmente responsáveis, com fundamento principal em falhas na prevenção ou na resposta ao desastre. Recorda-se que, nas demandas contra pessoas jurídicas de direito público, em regra os agentes públicos não podem ser diretamente responsabilizados pelas vítimas (mas apenas, eventualmente, em ação regressiva proposta pela Administração Pública), com fundamento na teoria da dupla garantia, consolidada no Tema nº 940 da Repercussão Geral do STF: ‘‘A teor do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa’’.

(b) Ações de seguro: as vítimas de desastres climáticos também propõem ações contra seguradoras, a fim de garantir a cobertura de seguros de propriedades imobiliárias, veículos e outros bens danificados. Tais ações podem envolver disputas sobre cláusulas contratuais, valores de indenização e questões relativas à cobertura securitária.

(c) Contratos bancários: a revisão de contratos bancários pode ocorrer quando os devedores enfrentam dificuldades econômicas resultantes do desastre. Renegociação de dívidas, suspensão de pagamentos e outras medidas são frequentemente judicializadas para proteger os interesses das partes envolvidas.

(d) Direitos trabalhistas: os desastres climáticos podem causar a interrupção de atividades econômicas e a perda de empregos, o que leva a conflitos trabalhistas. Questões relacionadas à rescisão contratual, ao pagamento de verbas rescisórias e a condições de trabalho são temas frequentes nesses litígios.

(e) Benefícios previdenciários e assistenciais: desastres podem levar a uma demanda crescente por benefícios previdenciários e assistenciais, especialmente em virtude do aumento do desemprego e das maiores dificuldades de reinserção no mercado de trabalho.

Os efeitos jurídicos indiretos são aqueles que surgem como consequência das medidas de resposta e recuperação adotadas após o desastre. Eles incluem, especialmente:

(a) Planejamento urbano e ambiental: a necessidade de reconstrução e prevenção de futuros desastres leva a revisões de políticas urbanísticas e ambientais. Mudanças em zoneamentos, normas de construção e medidas de proteção ambiental podem ser contestadas judicialmente por afetarem direitos de propriedade e interesses econômicos.[3]

(b) Políticas públicas e medidas administrativas: as ações da Administração Pública para mitigar os efeitos dos desastres, como a realocação de pessoas, a implementação de programas de reconstrução, a concessão de subsídios e benefícios, entre outras medidas, podem ser alvo de impugnações judiciais, não apenas acerca da sua legalidade, mas também nas hipóteses individuais de indeferimento.

(c) Direitos sociais: a proteção dos direitos sociais é fundamental em situações de desastres. O acesso a serviços básicos, habitação, saúde e educação pode ser comprometido, o que leva a ações judiciais para garantir a efetividade desses direitos.

(d) Conflitos contratuais e comerciais: as interrupções econômicas causadas por desastres podem resultar em litígios comerciais, derivados do descumprimento de contratos, inadimplência e disputas sobre o cumprimento de obrigações contratuais. Essas controvérsias podem envolver desde pequenas empresas até grandes corporações, com relação a fornecedores, prestadores de serviços e outros negócios jurídicos.

(e) Impacto na justiça criminal: os desastres climáticos também podem ter um impacto indireto na justiça criminal, a partir do agravamento de problemas sociais como o aumento da criminalidade em áreas afetadas, questões de segurança pública e a necessidade de adaptação das instituições policiais e judiciárias para responder às novas demandas.

A compreensão dos efeitos jurídicos diretos e indiretos dos desastres climáticos permite ao Judiciário antecipar e buscar responder de maneira mais eficaz às demandas emergentes, em um sistema mais resiliente e capaz de enfrentar os desafios impostos pelas crises climáticas.

Antecedentes históricos

A fim de compreender os impactos jurídicos decorrentes dos desastres climáticos e como o sistema judiciário pode responder a esses eventos, é importante analisar os casos históricos anteriores, nacionais e internacionais. Esses exemplos levaram a respostas legais, a políticas públicas e a práticas que podem ser adotadas ou adaptadas para contextos específicos, como o caso do Rio Grande do Sul em 2024.

No Brasil, em 2011, fortes chuvas que atingiram a região serrana do Rio de Janeiro causaram deslizamentos de terra que resultaram em centenas de mortes e destruição significativa, especialmente no Município de Petrópolis/RJ. O evento levou a uma série de ações coletivas contra o estado e o município (entre outros corréus), baseadas na negligência na adoção de medidas preventivas e nas falhas na resposta ao desastre. Tais processos levaram, principalmente, à responsabilidade governamental na gestão de riscos e na implementação de políticas de mitigação de desastres, mas não impediram que o fato se repetisse na mesma cidade no ano de 2022.[4]

Em 2015, o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, Minas Gerais, gerou um dos maiores desastres ambientais do Brasil. A tragédia levou a uma grande quantidade de ações judiciais, individuais e coletivas, com pedidos de reparação pelos danos causados.[5] Os processos envolveram questões de responsabilidade civil, compensações financeiras, reparação ambiental e saúde pública. Esse caso evidenciou a necessidade de políticas de prevenção ambiental mais rigorosas e a importância de mecanismos legais eficientes para lidar com os efeitos de desastres de grande escala.

No ano de 2019, o rompimento da barragem Córrego do Feijão, em Brumadinho/MG, resultou em centenas de mortes e danos ambientais severos. A barragem liberou milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, o que devastou comunidades locais e ecossistemas. A judicialização decorrente desse desastre também se baseou principalmente em ações civis públicas e individuais para a reparação de danos, a responsabilização criminal de executivos da empresa responsável e reformas na regulação de barragens.

Em 2018 e 2023, na cidade de Maceió, capital do Estado de Alagoas, problemas relacionados à exploração de sal-gema por minas subterrâneas causaram tragédias ambientais de grandes proporções. A extração levou ao surgimento de rachaduras e afundamentos no solo, o que resultou na evacuação de milhares de moradores de bairros inteiros. A judicialização envolveu ações contra as empresas responsáveis pela exploração, bem como entes públicos, com o objetivo de assegurar a reparação de danos materiais e morais, além da adoção de medidas estruturais para mitigar o impacto sobre a cidade. O caso evidenciou, principalmente, os riscos associados à exploração de recursos naturais e a necessidade de uma gestão mais responsável e sustentável dessas atividades.

No exterior, em 2004, o tsunami que atingiu diversos países do Sudeste Asiático (especialmente Indonésia, Tailândia e Sri Lanka) causou a morte de centenas de milhares de pessoas e destruiu comunidades inteiras. As respostas legais incluíram ações de responsabilidade civil, esforços de reconstrução com financiamento internacional e medidas de assistência humanitária. O caso destacou a importância da cooperação internacional e da mobilização rápida de recursos jurídicos e financeiros para responder a desastres de grande escala.

No ano de 2005, o Furacão Katrina devastou Nova Orleans e outras áreas do Golfo do México, resultando em uma crise humanitária e em litígios extensos nos Estados Unidos. Os processos judiciais envolveram demandas por responsabilidade civil contra o governo federal e estadual, além de ações contra empresas privadas responsáveis pela construção e pela manutenção de infraestruturas, como diques e barragens. Esse caso sublinhou a necessidade de coordenação eficiente entre diferentes níveis de governo e a importância da infraestrutura.

Entre as principais medidas comuns adotadas nos casos citados estão a importância da preparação e da prevenção (considerando que muitos litígios surgem da falha na adoção das medidas preventivas adequadas e da ausência de políticas de gestão de riscos), a coordenação intergovernamental (a eficácia na resposta a desastres frequentemente depende da coordenação entre diferentes níveis de governo e da colaboração com organizações da sociedade civil), a responsabilidade e a reparação de danos (a transparência e a justiça nos processos de compensação são essenciais para manter a confiança pública e evitar a judicialização desnecessária).

Com a aplicação dessas lições ao contexto atual, especialmente no caso do Rio Grande do Sul em 2024, é possível desenvolver estratégias jurídicas e políticas públicas mais adequadas para lidar com os desastres climáticos. A integração de práticas bem-sucedidas e a adaptação às realidades locais podem contribuir significativamente para a melhoria da capacidade de resposta e, inclusive, da efetividade do sistema judiciário.

Judicialização coletiva e estrutural

Os desastres climáticos frequentemente resultam em impactos que afetam grandes grupos de pessoas e comunidades inteiras, o que exige uma abordagem jurídica que vá além da solução de litígios individuais.

Assim, a judicialização coletiva e estrutural emerge como uma resposta para enfrentar as consequências de tais eventos, ao permitir que grupos afetados busquem a prestação jurisdicional de maneira uniforme. Essa forma de judicialização pode abranger a reparação de danos, a proteção de direitos coletivos e a implementação de mudanças sistêmicas, entre outras medidas cabíveis.

No desastre climático que atingiu o Rio Grande do Sul em 2024, a judicialização coletiva e estrutural desempenha um papel relevante. As chuvas intensas e os alagamentos subsequentes causaram prejuízos massivos, que afetaram não apenas indivíduos, mas também comunidades (e municípios) inteiras, a infraestrutura pública e o meio ambiente.

A judicialização coletiva e estrutural é fundamentada em princípios que visam garantir a efetividade da justiça em casos de grande impacto social e ambiental, entre outros. Assim é possível agregar múltiplas demandas em um único processo, otimizando recursos judiciais e promovendo decisões aplicáveis de modo uniforme a todos os membros do grupo afetado.

Além disso, as medidas estruturais podem ser ordenadas nos processos judiciais para implementar reformas necessárias, prevenir futuros danos e assegurar a proteção contínua dos direitos.

Os processos estruturais, também chamados de processos estruturantes, são ações judiciais (individuais ou coletivas) que visam não apenas à resolução de um caso específico, mas à reforma de um sistema, uma prática ou uma estrutura que esteja em desacordo com normas legais ou constitucionais. Esses processos são caracterizados por buscar resultados que têm um impacto abrangente e duradouro, por levar à modificação da forma como um sistema funciona em sua totalidade.[6]

Esses processos frequentemente envolvem múltiplos atores (públicos e privados) e exigem coordenação e supervisão contínuas, para garantir a implementação das mudanças ordenadas. Os processos estruturais também podem exigir a supervisão contínua do Judiciário para garantir que as mudanças estruturais sejam efetivamente implementadas e mantidas ao longo do tempo.

Enquanto os processos coletivos são fundamentais para garantir a proteção de grupos específicos, os processos estruturais vão além e buscam transformar sistemas inteiros para prevenir futuras violações e garantir a conformidade com as normas legais e constitucionais.

Após as inundações no Rio Grande do Sul, ações coletivas e processos estruturantes foram ajuizados, com objetivos diversos.

Por exemplo, a Defensoria Pública do Estado ajuizou uma ação civil pública contra as empresas Estapar e Porto Seguro, com o objetivo de ressarcir os proprietários que tiveram veículos alagados nos estacionamentos do Aeroporto Salgado Filho.

Em outra ACP proposta pela Defensoria Pública do Estado contra a empresa Cobasi, há pedido de compensação por danos ambientais, à saúde pública, psicológicos e punitivos, em virtude da morte de quarenta animais em dois estabelecimentos da ré.

O Sindicato dos Servidores da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul ingressou com uma ACP para pleitear que os servidores do Tribunal de Justiça tenham assegurado o direito aos termos iniciais da oferta de prorrogação de parcelas de empréstimos consignados contratados com o Banrisul, em razão da calamidade ambiental.

Uma ACP foi proposta pela Associação Brasileira de Liberdade Econômica e pelo Instituto de Direito e Economia do Rio Grande do Sul contra a União, na Justiça Federal de Porto Alegre, com o pedido principal de cumprimento de obrigação de fazer, consistente na estruturação de um plano de apoio financeiro às empresas e indústrias impactadas pelas enchentes no Rio Grande do Sul.

Ainda, a Confederação Nacional das Associações de Moradores e a União das Associações de Moradores de Porto Alegre ajuizaram uma ACP contra o Município de Porto Alegre, com pedidos de estabelecimento de um plano de ação específico para as regiões diretamente afetadas pelas enchentes e de realização de concurso público para preencher o quadro técnico de órgãos ambientais municipais, entre outras medidas.

Portanto, o objeto das ações coletivas e dos processos estruturais é extremamente amplo e variado, desde a responsabilização pela falha na gestão de recursos hídricos e pela ausência de medidas preventivas adequadas, até a reparação dos danos, a implementação de medidas estruturais e outras situações derivadas do fato.

Tais processos apresentam diversos desafios, como a complexidade da coordenação entre diferentes partes interessadas, a necessidade de provas mais dispendiosas e complexas, além da consequente tramitação mais lenta de um único processo com litígios de grande escala. No entanto, eles também oferecem alguns benefícios significativos, como a economia processual, a uniformidade das decisões judiciais e a possibilidade de alcançar soluções mais abrangentes e uniformes.

Judicialização individual de direitos

Os desastres climáticos, como o ocorrido no Rio Grande do Sul em 2024, geram impactos significativos não apenas no aspecto coletivo, mas também em relação aos direitos individuais.

Esses eventos extremos, caracterizados por enchentes, deslizamentos de terra, tempestades e outras calamidades naturais, não apenas causam destruição física, mas também desestabilizam a vida cotidiana e comprometem uma série de direitos fundamentais dos cidadãos. Em situações de crise, o acesso à justiça torna-se uma ferramenta essencial para garantir que os direitos das pessoas sejam protegidos e que as vítimas possam buscar reparação pelos danos sofridos.

A judicialização individual de direitos surge, portanto, como uma resposta necessária e natural ao impacto desses desastres. Quando um evento climático de grandes proporções atinge uma comunidade, ele frequentemente expõe ou agrava vulnerabilidades preexistentes, como a falta de infraestrutura adequada, a precariedade das condições de moradia e as deficiências no acesso a serviços essenciais.

Além disso, desastres desse tipo costumam provocar a interrupção de serviços públicos, a perda de bens e meios de subsistência e a necessidade urgente de assistência social e de saúde. Nesses contextos, a prestação jurisdicional se torna uma via buscada pelos indivíduos para reivindicar seus direitos e garantir reparação por danos materiais e morais.

A manifestação da judicialização individual de direitos no desastre climático do Rio Grande do Sul em 2024 reflete as múltiplas dimensões da crise e a complexidade de lidar com um grande volume de litígios que surgem de uma única catástrofe natural.

O aumento expressivo de demandas judiciais individuais revela a incapacidade de outros mecanismos de resolução de conflitos em lidar com a magnitude dos problemas gerados por desastres dessa escala. Além disso, a judicialização individual destaca a diversidade de questões jurídicas que podem emergir em tais situações, que abrange desde disputas sobre direitos de propriedade até reivindicações por benefícios assistenciais e previdenciários.

A dinâmica da judicialização individual também ilustra as tensões inerentes ao funcionamento do sistema judiciário em tempos de crise. A sobrecarga do Judiciário, causada por um aumento abrupto no número de processos em um pequeno espaço de tempo, expõe a necessidade de um sistema mais flexível e eficiente, capaz de responder prontamente às demandas emergentes.

Isso se torna ainda mais relevante quando se considera que os desastres climáticos tendem a afetar desproporcionalmente as populações mais vulneráveis, que já enfrentam barreiras significativas no acesso à justiça.

A judicialização individual derivada de desastres climáticos também levanta questões importantes sobre a equidade no acesso à justiça. Em muitos casos, as vítimas enfrentam dificuldades para buscar reparação, seja por falta de recursos financeiros, seja pela complexidade dos processos judiciais. O aumento da judicialização individual pode, por um lado, ser visto como um indicador da eficácia do sistema judicial em fornecer um caminho para a resolução de conflitos. Por outro lado, também pode indicar falhas sistêmicas em outras áreas, como a ausência de políticas públicas eficazes ou a ineficácia de programas de assistência governamental.

Como visto no item anterior, um tema relevante na judicialização individual de direitos diz respeito às ações de cobertura de seguro. As pessoas naturais e as pessoas jurídicas de direito privado que contratam seguros para seus bens (imóveis ou móveis) podem ter negados os seus requerimentos ao acionar suas apólices, o que leva à propositura de ações individuais. No caso do Rio Grande do Sul, a ausência de contratação de cobertura por alagamento e a controvérsia sobre a extensão de cobertura por danos causados por questões climáticas (vendaval, ciclone e outras) provocam a discussão judicial e a análise individualizada das controvérsias.

A revisão de contratos bancários é outra matéria que aumenta na judicialização individual após desastres climáticos. As pessoas afetadas enfrentam dificuldades em cumprir suas obrigações financeiras, como o pagamento de empréstimos e financiamentos. Em consequência, buscam o Judiciário para renegociar ou revisar os termos de seus contratos bancários, com argumentos baseados na teoria da imprevisão, a fim de buscar ajustar as obrigações contratuais às novas realidades impostas pelo desastre.

As ações de despejo também se tornam mais frequentes após a ocorrência de desastres climáticos, igualmente em virtude da perda (ou redução) de renda ou dos danos (parciais ou totais) sobre os imóveis, o que faz com que os locatários não consigam cumprir suas obrigações contratuais. Isso pode levar, igualmente, a pedidos de revisões de contratos de locação, apoiados na teoria da imprevisão. Esses litígios, em regra, são mais simplificados, mas podem envolver questões complexas sobre o equilíbrio entre o direito à moradia e os direitos de propriedade, especialmente em um contexto de crise humanitária.

A judicialização também se estende ao âmbito trabalhista, especialmente para aqueles que perderam seus empregos ou tiveram suas condições de trabalho afetadas pelo desastre. As demandas trabalhistas envolvem alegações de despedidas irregulares e o não cumprimento de direitos trabalhistas, com pedidos de rescisão indireta de contrato, pagamento de verbas rescisórias e compensação por danos morais, entre outros.

O aumento dos pedidos de seguro-desemprego é uma das manifestações mais evidentes da judicialização individual de direitos após desastres climáticos. Esses eventos extremos frequentemente resultam na interrupção de atividades econômicas, na destruição de locais de trabalho e, em muitos casos, na perda massiva de empregos. Como consequência, trabalhadores que se veem desempregados recorrem ao seguro-desemprego como uma das principais formas de proteção social e sobrevivência financeira, o que leva à judicialização nas hipóteses de indeferimento administrativo.

Outro exemplo de judicialização individual está no saque do valor existente nas contas vinculadas do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço). Embora tenham sido autorizados saques excepcionais do FGTS para os atingidos pelo desastre (no denominado ‘‘saque-calamidade’’, autorizado pelo Decreto Federal nº 12.016/2024), eventuais falta de provas do direito e indeferimento administrativo podem levar à propositura de ações judiciais individuais, nas quais os trabalhadores afetados buscam o reconhecimento do direito ao saque emergencial de suas contas.

Além disso, as demandas individuais por medicamentos e tratamentos médicos normalmente aumentam em virtude de desastres climáticos. As pessoas que perderam o acesso aos serviços de saúde durante o desastre buscam o Judiciário para garantir a continuidade de tratamentos essenciais ou para obter medicamentos que se tornaram inacessíveis em virtude dos danos causados na infraestrutura de saúde pública. Essas demandas ressaltam a importância da judicialização como um meio de garantir direitos fundamentais em situações de crise.

Outras áreas afetadas pela judicialização individual de direitos são a previdência social e a assistência social, especialmente os benefícios previdenciários por incapacidade e o benefício de prestação continuada da Lei Orgânica da Assistência Social. O desemprego, as lesões físicas ou psicológicas sofridas pelos afetados pelas enchentes no Rio Grande do Sul, entre outros fatores, podem levar ao aumento de novos pedidos administrativos e judiciais.

A judicialização individual de direitos após o desastre climático no Rio Grande do Sul em 2024 ilustra a necessidade de um sistema judiciário flexível e adaptável, capaz de responder às demandas emergentes de uma população afetada por eventos extremos. A multiplicidade de ações individuais reflete as diversas formas como os direitos dos cidadãos podem ser impactados por desastres naturais e destaca a importância do Judiciário em garantir que esses direitos sejam protegidos e efetivamente exercidos, mesmo em situações de calamidade pública.

Atuação do sistema judiciário nos desastres climáticos

Os desastres climáticos apresentam desafios significativos para todas as esferas da sociedade, incluindo o Judiciário, que desempenha um papel relevante na resposta a esses eventos.

A atuação do Judiciário após os desastres naturais vai além da simples resolução de conflitos, envolvendo a proteção de direitos fundamentais, a garantia de justiça e a implementação de medidas que possam mitigar os impactos desses eventos sobre a população.

Nessas situações, o Judiciário normalmente enfrenta uma sobrecarga de demandas, que vão desde ações individuais sobre temas variados e de competência de diversos ramos (especialmente na Justiça Federal, na Trabalhista e na Estadual) até litígios complexos e coletivos envolvendo responsabilidades ambientais e urbanísticas. Essa sobrecarga exige do Judiciário uma atuação célere e eficaz, tanto em termos de infraestrutura quanto de procedimentos, para lidar com o aumento súbito no volume de processos e garantir que as decisões judiciais sejam proferidas de maneira efetiva. Assim, a atuação do Judiciário é essencial não apenas para a resolução de conflitos, mas também para a manutenção da ordem social e a garantia de que as vítimas dos desastres recebam a tutela legal devida a quem tiver direito.

Um dos primeiros desafios que o Judiciário enfrenta após um desastre climático é a sobrecarga de processos em um curto período de tempo. A destruição de infraestrutura (inclusive dos próprios tribunais), a interrupção de atividades econômicas e a perda de meios de subsistência resultam em um aumento súbito de litígios, que vão desde disputas sobre seguros e benefícios assistenciais até ações por responsabilidade civil e questões trabalhistas. Para lidar com essa sobrecarga, o Judiciário precisa adaptar-se rapidamente, o que pode envolver a criação de varas especializadas, a designação de juízes adicionais para auxílio às unidades e o uso de tecnologias para agilizar a tramitação dos processos.

A complexidade das questões jurídicas que surgem em contextos de desastres climáticos também requer uma abordagem inovadora por parte dos tribunais. A integração de conhecimentos técnicos, a colaboração com outras esferas do governo e a utilização de novas tecnologias são elementos fundamentais para uma atuação eficaz. Além disso, a necessidade de proteger os direitos de grupos mais vulneráveis, que muitas vezes são os mais afetados pelos desastres, impõe ao Judiciário o desafio de assegurar que a justiça seja acessível.

A criação de varas especializadas em desastres climáticos pode ser uma solução eficaz para concentrar o conhecimento técnico e jurídico necessário para lidar com a complexidade desses casos. Os servidores e magistrados que atuarem nessas unidades podem desenvolver mais rapidamente um conhecimento especializado sobre as particularidades dos litígios decorrentes de desastres, como a interpretação de contratos de seguro em situações de catástrofes naturais ou a aplicação de princípios de direito ambiental e urbanístico.

A especialização não apenas melhora a qualidade das decisões judiciais, mas também contribui para a celeridade na resolução dos processos, pois juízes e demais pessoas envolvidas estarão melhor preparados para compreender as questões em conflito e para tomar decisões informadas.

Outro aspecto relevante da atuação dos tribunais em desastres climáticos é a supervisão e a implementação de medidas preventivas e estruturais que visem mitigar os impactos futuros. Isso pode incluir decisões judiciais para autorizar a realização de obras de infraestrutura, como a construção de barragens e diques, a melhoria de sistemas de drenagem, ou a implementação de políticas de urbanização sustentável. O Judiciário também desempenha um papel importante na fiscalização do cumprimento de normas ambientais e urbanísticas durante esse período excepcional, a fim de garantir que a Administração Pública e as empresas privadas executem medidas adequadas para prevenir futuros desastres.

As decisões judiciais em contextos de desastres não devem apenas remediar danos, mas também podem ser consideradas como precedentes (vinculantes ou não) que orientarão futuras políticas públicas e práticas empresariais, entre outras ações específicas.

A função preventiva do Judiciário se torna ainda mais relevante quando se considera a necessidade de uma abordagem integrada, que envolva não apenas a construção de infraestruturas físicas, mas também a revisão de marcos regulatórios e a promoção de uma gestão ambiental sustentável. Isso pode significar, por exemplo, a imposição de condicionantes mais estritas para o licenciamento de novas obras em áreas de risco, a exigência de estudos de impacto ambiental mais abrangentes e a obrigatoriedade de planos de contingência detalhados para enfrentar emergências climáticas.

Por fim, a atuação do Judiciário em desastres climáticos deve ser vista em um contexto mais amplo, em que os desastres naturais podem se tornar mais frequentes e intensos. Isso significa não apenas reagir a desastres individuais, mas também analisar os casos individuais e coletivos de forma preventiva, com medidas que possam incentivar a adoção de políticas públicas que visem à mitigação dos impactos das mudanças climáticas e à proteção das áreas e das comunidades mais vulneráveis.

A resiliência do sistema judiciário envolve a capacidade de se adaptar a novas realidades, de responder rapidamente a crises emergentes e de promover a justiça de forma eficaz e acessível a todos.

Considerações finais

Este artigo examinou os desafios e as complexidades da judicialização decorrente de desastres climáticos, com foco específico no caso do Rio Grande do Sul em 2024. A análise abordou tanto os processos coletivos quanto os litígios individuais, destacando que a judicialização não se resume à reparação de danos e reflete em uma ampla variedade de temas e competências.

A compreensão dos desastres climáticos e de seus efeitos jurídicos é essencial para o desenvolvimento de estratégias e a promoção de um sistema de justiça preparado para enfrentar os desafios impostos por essas crises e pela alta judicialização em um curto período de tempo.

O aumento na judicialização, tanto em ações coletivas quanto individuais, evidencia a importância do Judiciário na proteção dos direitos dos indivíduos e das populações afetadas por desastres climáticos. A análise dos casos relacionados a benefícios assistenciais e previdenciários, ações trabalhistas, seguros e direitos de propriedade (entre outros) revelou a multiplicidade de questões jurídicas que emergem em situações de crise.

Viu-se também que os tribunais desempenham um papel relevante na resposta a desastres climáticos, na resolução de conflitos e na supervisão da implementação de medidas preventivas e estruturais.

Diante do que foi analisado, recomenda-se o fortalecimento contínuo da capacidade do Judiciário para lidar com litígios derivados de desastres climáticos, incluindo a criação de varas especializadas, a formação contínua de juízes e servidores e a utilização de tecnologias que agilizem e facilitem a tramitação dos processos. Essas medidas são essenciais para assegurar uma resposta eficaz e adequada às demandas judiciais.

A preparação para futuros desastres climáticos exige um enfoque preventivo, em que os tribunais, em colaboração com outras esferas do governo e com a sociedade civil, devem aprender com a experiência adquirida nos litígios atuais como uma base para o desenvolvimento de estratégias que considerem as necessidades específicas das populações afetadas, evitem a repetição de danos e garantam uma resposta célere e adequada.

Referências

ARENHART, Sérgio Cruz; OSNA, Gustavo; JOBIM, Marco Félix. Curso de processo estrutural. São Paulo: RT, 2021.

CARVALHO, Délton Winter de; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. A intensificação dos desastres naturais, as mudanças climáticas e o papel do Direito Ambiental. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 49, p. 83-97, jan./mar. 2012.

CARVALHO, Délton Winter de; ZANETI JR., Hermes. Desastres climáticos e conflitos coletivos complexos. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO (ed.). Desastres socioambientais e mudanças climáticas: aspectos doutrinários. 2. ed. Brasília: CNMP, 2024. p. 93-113.

FERREIRA, Ximena Cardozo. Planejamento territorial como instrumento de prevenção de danos causados por inundações. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO (ed.). Desastres socioambientais e mudanças climáticas: aspectos doutrinários. 2. ed. Brasília: CNMP, 2024. p. 162-189.

FILPO, Klever Paulo Leal; LOBATO, José Danilo Tavares; PIRES, Yeda Ferreira; ARAÚJO, Fábio Santos. Desastres naturais, omissões do poder público e judicialização: reflexões a partir do caso cidade de Petrópolis-2022. Revista de Gestão Ambiental e Sustentabilidade, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 1-35, 2023.

TOLEDO, André de Paiva; RIBEIRO, José Cláudio Junqueira; THOMÉ, Romeu. Acidentes com barragens de rejeitos de mineração e o princípio da prevenção: de Trento (Itália) a Mariana (Brasil). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

Notas

[1] CARVALHO, Délton Winter de; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. A intensificação dos desastres naturais, as mudanças climáticas e o papel do Direito Ambiental. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 49, p. 83-97, jan./mar. 2012.

[2] Sobre a responsabilidade civil nos desastres climáticos: CARVALHO, Délton Winter de; ZANETI JR., Hermes. Desastres climáticos e conflitos coletivos complexos. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO (ed.). Desastres socioambientais e mudanças climáticas: aspectos doutrinários. 2. ed. Brasília: CNMP, 2024. p. 93-113.

[3] Acerca do tema: FERREIRA, Ximena Cardozo. Planejamento territorial como instrumento de prevenção de danos causados por inundações. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO (ed.). Desastres socioambientais e mudanças climáticas: aspectos doutrinários. 2. ed. Brasília: CNMP, 2024. p. 162-189.

[4] Sobre o assunto: FILPO, Klever Paulo Leal; LOBATO, José Danilo Tavares; PIRES, Yeda Ferreira; ARAÚJO, Fábio Santos. Desastres naturais, omissões do poder público e judicialização: reflexões a partir do caso cidade de Petrópolis-2022. Revista de Gestão Ambiental e Sustentabilidade, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 1-35, 2023.

[5] Acerca do caso: TOLEDO, André de Paiva; RIBEIRO, José Cláudio Junqueira; THOMÉ, Romeu. Acidentes com barragens de rejeitos de mineração e o princípio da prevenção: de Trento (Itália) a Mariana (Brasil). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

[6] ARENHART, Sérgio Cruz; OSNA, Gustavo; JOBIM, Marco Félix. Curso de processo estrutural. São Paulo: RT, 2021.

Oscar Valente Cardoso é juiz da 1ª Vara Federal de Capão da Canoa (RS), doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), coordenador do Comitê Gestor de Proteção de Dados do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), professor no Mestrado da Universidade Europeia de Lisboa

E A RESTITUIÇÃO?
PGFN exclui ICMS-ST da base do PIS/Cofins, mas deixa lacunas

Advogado João Vitor Prado Bilharinho Divulgação

Por João Vitor Prado Bilharinho

Após a repercussão negativa das Soluções de Consulta DISIT 4.046, 4.047 e 4.048, emitidas pela Receita Federal e que contrariaram a tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do Tema 1.125, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) emitiu o Parecer SEI 4.090/2024, reconhecendo expressamente que o ICMS-ST recolhido pelo substituído tributário deve ser excluído da base de cálculo do PIS e da Cofins.

No julgamento do Tema 1.125, em sede de recursos repetitivos (REsp 1896678/RS e REsp 1958265/SP), o STJ entendeu que a Substituição Tributária seria mera modalidade de arrecadação do ICMS, razão pela qual fixou-se, de forma unânime, a seguinte tese: ‘‘O ICMS-ST não compõe a base de cálculo da Contribuição ao PIS e da COFINS devidas pelo contribuinte substituído no regime de substituição tributária progressiva’’.

Apesar disso, o posicionamento da Receita Federal nas referidas soluções de consulta havia sido totalmente contrário à decisão do STJ, ao indicar que a exclusão do ICMS-ST do cálculo do PIS e da Cofins ‘‘somente pode ser aproveitada pelo substituto tributário, não servindo, em qualquer hipótese, ao substituído na obrigação tributária correlata’’.

Na prática, a Receita Federal só estaria obrigada a seguir o entendimento do STJ quando a PGFN se pronunciasse no sentido de vincular os auditores fiscais à tese fixada no Tema 1.125 dos recursos repetitivos, o que inclusive foi utilizado como fundamento nas Soluções de Consulta 4.046, 4.047 e 4.048 para justificar a inaplicabilidade do referido tema.

Para corrigir tal situação e garantir a segurança jurídica sobre a matéria, a PGFN emitiu o Parecer 4.090/2024, alinhando seu entendimento à tese fixada pelo STJ e, consequentemente, desobrigando o Fisco de contestar ou recorrer em processos sobre o assunto, nos termos do artigo 19, inciso VI, alínea ‘‘a’’, da Lei 10.522/2002.

Nesse ponto, por se tratar de tema julgado na sistemática dos recursos repetitivos, a referida tese já possuía caráter vinculante perante as instâncias judiciais, de modo que, após o trânsito em julgado, ocorrido em agosto de 2024, todos os juízes e tribunais ficaram obrigados a decidir conforme o entendimento firmado pelos ministros do STJ.

Com o referido parecer, a PGFN uniformiza o entendimento sobre a matéria tanto no âmbito judicial como no administrativo, sendo que as empresas varejistas podem adequar suas operações ao entendimento do STJ, sem o receio de serem autuadas.

O Parecer SEI 4090/2024, entretanto, deixa alguns pontos sem resposta, como a questão da restituição do indébito tributário, o que pode gerar judicialização da matéria, pois não especifica como será apurada base de cálculo para fins de apuração do regime de substituição tributária.

Nessa situação, em vez de limitar-se à análise do documento de venda com base apenas no ICMS destacado, a empresa varejista deve cruzar todas as notas fiscais de entrada sujeitas ao ICMS-ST e confirmar a efetiva saída dessas mercadorias, considerando também a incidência do PIS e da Cofins.

Em outras palavras, o processo de composição de estoque garante que o imposto recolhido na etapa inicial da cadeia pelo substituto tributário esteja alinhado às novas regras, evitando eventuais inconsistências fiscais. Para isso, a empresa deverá identificar os produtos sujeitos à substituição tributária e recalcular o imposto conforme o novo entendimento.

Por se tratar de um cálculo complexo, a PGFN deveria ter manifestado a forma pela qual as empresas devem realizar o cálculo do tributo a recuperar, considerando a composição de estoque.

Essa omissão do órgão fazendário sobre o cálculo pode gerar problemas futuros aos contribuintes, pois, na via administrativa, a Receita Federal irá fiscalizar a forma de apuração do crédito, buscando restringir o valor a ser restituído/compensado.

Até que a PGFN esclareça esse ponto sobre a composição do estoque no cálculo dos créditos referentes à exclusão do ICMS-ST, os contribuintes correm o risco de sofrer fiscalização pela Receita Federal.

Assim, apesar do Parecer SEI 4.090/2024 afastar em parte a insegurança jurídica sobre o mérito da questão, a situação não fica completamente resolvida, devendo o contribuinte se atentar sobre a forma de realizar esse cálculo em sua operação.

João Vitor Prado Bilharinho é advogado da área tributária no escritório Diamantino Advogados Associados