SANHA ARRECADATÓRIA
Apetite fiscal do governo Lula sobre fundos exclusivos viola conceito de renda

Por Douglas Guilherme Filho

Reprodução Porto Fino Multi Family

O terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem sido marcado por uma política de aumento da carga tributária como forma de cumprir a meta de déficit zero. Para tanto, em vez de cortar gastos públicos, o que seria o mais aconselhável, a solução adotada foi a de aumentar as receitas, dentre outras formas, por meio da tributação sobre determinados setores da economia.

Especificamente no caso dos fundos fechados de investimento, a sanha arrecadatória da União tem recaído sobre o Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF), cujo pagamento foi antecipado. Essa medida se deu por meio da Lei 14.754/2023, editada no final do ano passado e que modificou o momento do fato gerador tributo, com vigência já para o início de 2024.

Acontece que a mudança configurou verdadeira violação aos princípios constitucionais da irretroatividade e anterioridade. Isso porque a nova legislação inovou ao determinar que os supostos rendimentos apurados pelos fundos até 31/12/2023 passassem a se sujeitar ‘‘à tributação periódica a partir do ano de 2024’’, sob a alíquota de 15%.

Antes da edição da Lei 14.754/2023, a incidência do IRRF sobre os rendimentos auferidos pelos fundos de investimentos fechados ocorria apenas nas hipóteses de distribuição dos rendimentos, amortização, resgate ou venda de cotas. As alíquotas eram regressivas de 22,5% a 15%, de acordo com o prazo do investimento e a categorização da carteira do fundo como de longo ou curto prazo.

Assim, a alteração legislativa ampliou as hipóteses de incidência do tributo, ao prever a sua exigência de maneira semestral para os fundos fechados sujeitos ao Regime Geral e, também, para fundos específicos, como Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios (FIDCs) Exchange Traded Funds (ETFs) e Fundos de Investimentos em Participações (FIPs). Até aqui o regime ‘‘come-cotas’’ era aplicável apenas para fundos abertos.

A mudança em questão traz uma enorme insegurança aos contribuintes que detêm participações em fundos de investimentos fechados, sem falar na violação ao princípio da ‘‘não surpresa’’, já que os sujeitou a uma cobrança sobre a qual não havia nenhuma perspectiva de recolhimento naquele momento.

A mudança passou a permitir que a cobrança recaia sobre a mera expectativa de renda. Na prática, isso pode englobar valores ilíquidos e incertos, em afronta aos ditames constitucionais e legais que regulam esta tributação, notadamente o conceito de renda.

É importante frisar que a configuração de renda está diretamente condicionada à existência de um acréscimo positivo e concreto no patrimônio do contribuinte, não podendo ser tratada como mera variação patrimonial para fins de incidência do imposto de renda.

Em que pese o esforço do governo de zerar as contas públicas a partir do aumento da arrecadação, a mudança na legislação que regula os fundos de investimento esbarra na vedação ao confisco, bem como da capacidade contribuinte, pois a lei tributa signos presuntivos que não configuram renda.

Por enquanto, infelizmente, o único caminho possível para os contribuintes é a judicialização para proteger seu patrimônio contra os excessos arrecadatórios do estado.

Douglas Guilherme Filho é coordenador da área tributária no escritório Diamantino Advogados Associados

RETENÇÃO DE TALENTOS
Stock options como forma de incentivo aos empregados e sua importância para as startups

Por Luciana Klug

O fenômeno das stock options apareceu nos Estados Unidos na década de 50 e ganhou grande visibilidade após os anos 80, quando se tornou uma prática quase absoluta entre as empresas americanas de grande porte. Nos Estados Unidos, o auge do sistema de concessão de stock options ocorreu entre os anos de 2000 e 2001. No Brasil, o tema ganhou ainda maior destaque com as startups.

Originalmente aplicado às sociedades anônimas, as stock options autorizam a opção de compra futura de ações por empregados da empresa, por uma quantia pré-fixada, que geralmente é menor do que o preço de mercado, após um período de carência estipulado. Se o valor da ação ultrapassa o preço, o empregado obtém o lucro e, em consequência, duas alternativas lhe são oferecidas: revender de imediato a mais-valia ou guardar os seus títulos e se tornar um empregado acionista.

A outorga da opção de compra de ações engaja, inegavelmente, o empregado no desempenho de suas atividades para o bom desempenho da empresa. Os bons resultados empresariais na vigência do contrato de trabalho, com reflexos no valor das ações, dão a chance de ganhos patrimoniais aos empregados.

Os planos de stock options são mecanismos relevantes no cenário empresarial, permitindo que empresas recompensem e retenham talentos-chave, estimulando o engajamento de longo prazo.

Os beneficiários de um programa de stock options são geralmente os empregados executivos e, em alguns casos, os conselheiros e consultores da empresa. A escolha dos beneficiários pode variar de acordo com a estratégia da empresa e os objetivos do programa.

No âmbito trabalhista, a restrita controvérsia a respeito das stock options circunda sobre sua natureza jurídica (remuneratória ou não).

O Tribunal Superior do Trabalho (TST) tem decidido, reiteradamente, que os contratos de concessão de opção de compra de ações não possuem natureza salarial, tendo em vista não se tratar de contrapartida de trabalho do empregado, ainda que contratados em decorrência do vínculo laboral. Com efeito, no momento do exercício da opção de aquisição, o empregado assume a titularidade das ações e se torna sujeito às volatilidades do mercado, sendo que eventual diferença, positiva ou negativa, não possui natureza salarial (decorre unicamente do negócio e não do vínculo empregatício).

Com o avanço da tecnologia, as startups – empresas inovadoras e capazes de expansão em escala – crescem em ritmo acelerado, promovendo formas, ambientes e meios de trabalho que fogem do habitual.

Não há, contudo, legislação específica que regulamente as relações de trabalho e emprego das startups. A Lei Complementar 182/2021 (Marco Legal das Startups) não faz menção às formas de contratação e direitos trabalhistas, sendo necessária a utilização da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para a regulação das relações de emprego.

Assim, as startups possuem todas as obrigações e responsabilidades trabalhistas, dependendo do modo de contratação que adotem. Ou seja, embora tenham um modelo de negócios inovador e disruptivo, as startups estão submetidas às normas trabalhistas aplicáveis a qualquer outra empresa.

Neste contexto, as stock options são um excelente mecanismo para as startups, já que a opção de participação societária estimula o trabalho focado no resultado ou nas metas acordadas. Ajuda, ainda, a atrair e reter talentos altamente capacitados para realizar sua atividade e impulsionar o crescimento da empresa.

As stock options se revelam, portanto, uma ferramenta importante no processo de gestão e crescimento das startups.

Em síntese, apesar da inexistência de legislação específica acerca da tributação do plano de stock options, o entendimento jurisprudencial predominante é de que as verbas advindas desses contratos não possuem natureza remuneratória. Por se tratar de relação mercantil, sujeitam-se apenas à tributação sobre o ganho de capital.

Luciana Klug é coordenadora da área Trabalhista do escritório Cesar Peres Dullac Müller (CPDM)

ACORDOS COLETIVOS
Decisão do TST sobre horas extras em atividades insalubres é paradigmática

Por Lara Fernanda de Oliveira Prado 

Foto: Reprodução/JContábil/FreePik

São incontáveis as vozes que criticam a chamada cultura paternalista da Justiça do Trabalho e a sua proteção exagerada ao trabalhador. É importante reconhecer, entretanto, que muito dessa avaliação se dissipou com o advento da reforma trabalhista, que prestigiou a prevalência do negociado sobre o legislado.

Apesar da mudança promovida na legislação, a transformação segue passos mais lentos na prática. Um exemplo recorrente de controvérsia entre tribunais envolve a validade dos acordos coletivos em atividades insalubres. A origem está no artigo 60 da CLT, que estabelece a necessidade de licença prévia das autoridades competentes em higiene e segurança do trabalho para validar a prestação de horas extras em atividades insalubres.

Justamente por isso é digno de registro um julgamento recente (AIRR-1000844-38.2022.5.02.0241) do Tribunal Superior do Trabalho (TST), em que a corte validou um acordo coletivo que estabelecia regime de compensação em atividades insalubres, mesmo sem autorização de órgão competente. Apesar de as instâncias inferiores terem condenado a empresa, o TST manteve a eficácia do acordo e a absolveu dos pedidos relacionados.

Desde a entrada em vigor da reforma trabalhista, o tema é alvo de divergências jurisprudenciais. É que o artigo 611-A, inciso XIII, da CLT, permite a prorrogação de jornada em ambientes insalubres sem licença prévia das autoridades competentes, quando acordados em negociação coletiva, enquanto o artigo 611-B, inciso XVII, veda acordo que suprima normas de saúde, higiene e segurança do trabalho.

Com isso, alguns juízes entendem que a autorização do artigo 611-A prevalece sobre a lei, permitindo a negociação da regra do artigo 60, enquanto outros consideram a sua aplicação inconstitucional por violar normas de segurança do trabalho e ser diametralmente oposta ao 611-B, inciso XVII.

Historicamente, a constatação da insalubridade em processos judiciais resultava na invalidação dos acordos coletivos de compensação de jornada, obrigando o pagamento de horas extras. Por outro lado, a tendência de mudança desse posicionamento cresce progressivamente, especialmente em decorrência do Tema 1.046 do STF.

Direitos não sujeitos à negociação coletiva

No caso concreto, o juiz fundamentou sua decisão no Tema vinculante 1.046 do STF, destacando que, ao não exigir, na tese, a especificação das vantagens compensatórias e adjetivar de “absolutamente” indisponíveis os direitos que não estão sujeitos à negociação coletiva, o Supremo Tribunal Federal sacramentou a teoria do conglobamento e a ampla autonomia negocial coletiva na esfera laboral.

Vale ressaltar que a teoria do conglobamento é aquela que permite que um acordo coletivo seja avaliado em seu conjunto, considerando todas as suas cláusulas e benefícios, ao invés de examinar cada cláusula individualmente, o que valoriza a singularidade e as necessidade de cada caso.

A questão ainda não está pacificada, mas os julgamentos favoráveis aos empregadores são crescentes, e o entendimento pode passar a ser vinculante por meio de provocação da SDI (seções especializadas em dissídios individuais). A conclusão representa mais um passo para a mudança de cultura do tribunal ao reafirmar a prevalência do negociado sobre o legislado, em consonância com a modernização das relações trabalhistas.

A separação entre os direitos que podem ser flexibilizados e aqueles que não estão sujeitos a qualquer negociação ficou clara na CLT com a inserção dos artigos 611-A e 611-B. O objetivo disso foi trazer maior clareza e segurança jurídica, ao permitir expressamente que acordos coletivos possam prevalecer sobre a lei em determinadas condições, ainda que favoráveis ao empregador. Não se trata, em absoluto, de abolir direitos, mas de adaptar a legislação às realidades específicas das partes.

Cabe às empresas investirem nas negociações coletivas, usufruindo da autonomia que a reforma trabalhista proporcionou. À Justiça do Trabalho, a tarefa é continuar essa transformação de modo a possibilitar um ambiente de trabalho equilibrado e seguro, protegendo os interesses de empregadores e empregados sem posicioná-los como polos opostos.

Lara Fernanda de Oliveira Prado é sócia da área cível e trabalhista no Diamantino Advogados Associados

RESERVA DE CAPITAL
Municípios veem miragem em decisão do STF para ampliar a arrecadação fiscal

Por Gustavo Vaz Faviero e Murilo Muniz Silva

Miragens no deserto são ilusões ópticas, causadas por fenômenos da luz, fazendo com que o viajante acredite que haja água onde só existe areia. Em certa medida, a miragem é um fenômeno real, causada por efeitos físicos, mas também é um devaneio da mente do viajante que, desesperado por água, se convence da presença de um oásis onde não há nada.

No Direito Tributário, às vezes, vemos fenômenos semelhantes. Tal qual um viajante no deserto, o fisco, sedento por arrecadação para conseguir sair do árido terreno do déficit fiscal, vê em precedentes do Supremo Tribunal Federal interpretações que não são possíveis.

Um exemplo é o peculiar entendimento de algumas prefeituras que o Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) pode ser cobrado na integralização de bens imóveis ao capital social de uma pessoa jurídica, quando o seu valor de mercado for superior ao valor do capital social subscrito.

Apenas para relembrar, a integralização de capital é uma forma pela qual o sócio constitui ou amplia o patrimônio de uma empresa. Essa operação, por se tratar de uma transferência onerosa, em tese, atrairia a incidência do ITBI.

Contudo, a Constituição Federal traz uma regra de imunidade, no artigo 156, retirando da hipótese de incidência do imposto a transmissão de bens ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital.

Ocorre que, com o julgamento do RE 796.376-SC (Tema 796) pelo STF, surgiram algumas dúvidas sobre o limite dessa imunidade, em especial quando o valor do imóvel excede o valor do capital a ser integralizado.

No caso, o STF firmou a seguinte tese: ‘‘A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado’’. Ou seja, o imposto municipal incidirá sobre os imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica, na parcela relativa à constituição de reserva de capital, uma vez que é um de capital não subscrito.

Surfando na onda da decisão, prefeituras passaram a entender que, quando o valor de integralização fosse inferior ao valor venal estabelecido pelo município (ou ao valor de mercado), haveria a constituição de uma reserva de capital ‘‘implícita’’, o que autorizaria a cobrança do ITBI sobre essa diferença.

Surpreendentemente, o argumento vingou. Pelo menos no Tribunal de Justiça de São Paulo, onde a 15ª e a 18ª Câmaras de Direito Público mantiveram a interpretação dos municípios:

‘‘(…) Diferença tributável, independentemente da inserção contábil de excedente na reserva de capital, tendo em vista que a base de cálculo do ITBI se refere ao valor da transação, definida com base no Tema n. 1.113 do C. STJ – Valor da transação que, arbitrada de acordo com o art. 148 do CTN, excedeu ao valor do capital social – Excedente que não é abrangido pela imunidade tributária contida no art. 156, §2º, da Constituição (…)’’ (TJSP; Embargos de Declaração Cível 1000350-77.2023.8.26.0482; Relator (a): Tania Ahualli; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público; Foro de Presidente Prudente – Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 23/04/2024; Data de Registro: 23/04/2024) – Destaques nossos.

‘‘Exegese da tese fixada no Tema 796 do STF. Reserva de capital implícita. Possibilidade de tributação. Lançamento tributário. Base de cálculo do ITBI que é o valor venal do bem imóvel e que não guarda relação com seu valor originário indicado na Declaração de Imposto de Renda. Caso concreto em que há considerável discrepância entre o valor atribuído ao imóvel na operação societária e aquele apontado pela Administração Pública Municipal.” (TJSP; Apelação Cível 1000256-03.2023.8.26.0136; Relator (a): Ricardo Chimenti; Órgão Julgador: 18ª Câmara de Direito Público; Foro de Cerqueira César – 2ª Vara; Data do Julgamento: 29/05/2024; Data de Registro: 29/05/2024) – Destaques nossos.

No entanto, essa interpretação não é correta por diversas razões.

Primeira, a Constituição não traz nenhuma norma limitadora da imunidade com base no valor do bem integralizado. Pelo contrário, uma interpretação sistêmica traz conclusão diversa, uma vez que o objetivo norma de imunidade é facilitar e fomentar a criação de novas empresas.

Segunda, o precedente do STF trata justamente de um caso em que o contribuinte optou por constituir uma conta explícita de reserva de capital (‘‘conta ágio’’) para não diluir a participação societária dos demais membros da empresa. Ou seja, é tudo menos uma reserva implícita.

Terceira, não há, na legislação, obrigação do sócio a integralizar bens pelo seu valor de mercado. Pelo contrário, há regra específica na legislação do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) que autoriza o sócio a escolher qual o valor utilizará no ato de integralização: se o valor contábil ou o valor de mercado.

Assim, em momento algum a legislação ou o STF permite aos municípios a cobrança de ITBI sobre a diferença entre o valor declarado pelo contribuinte e o valor avaliado pelo município.

Como se isso não bastasse, ao ter essa conduta, os municípios submetem os contribuintes a uma escolha: (i) caso a transferência não seja feita pelo valor de mercado, a operação não estará acolhida pela imunidade do ITBI; (ii) caso a integralização seja feita pelo valor de mercado, a operação estará albergada pela imunidade, mas a conferência de bens pode ser sujeita ao IRPF.

A única certeza que podemos extrair de tudo isso é que o fisco municipal vê no precedente do STF uma miragem para saciar a sua sede por arrecadação. Novamente, o Judiciário terá que analisar o tema.

Gustavo Vaz Faviero é coordenador da área tributária, e Murilo Muniz Silva é sócio da área societária no escritório Diamantino Advogados Associados

TRUQUE TRIBUTÁRIO
Convênio prolonga novela da transferência compulsória de créditos de ICMS

Por Gustavo Vaz Faviero e João Vitor Prado Bilharinho  

Diamantino Advogados Associados

Atribuída ao ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, a frase ‘‘no Brasil, até o passado é incerto’’ é pródiga para explicar diferentes aspectos do País. No Direito Tributário, especialmente, ela se aplica com uma frequência maior do que o desejável em um sistema funcional. É o caso da cobrança do ICMS nas transferências entre filiais de um mesmo contribuinte. Apesar do STF ter entendido que esse tipo de operação não seria tributado, os estados deram um jeito de garantir a arrecadação e descumprir a decisão da mais alta Corte do País.

No caso, o truque dos estados está na obrigação para que o contribuinte transfira seus créditos tributários. Considerando que o intuito da não cumulatividade do ICMS é justamente proteger o contribuinte, é ilógico atribuir um caráter compulsório à transferência de créditos em operações interestaduais de estabelecimentos da mesma pessoa jurídica. Assim, os estados criaram a figura exótica da ‘‘opção compulsória’’, por meio do Convênio 178/2023, do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), violando a Lei Kandir, que, em seu artigo 12, parágrafo 4º, assegura ao contribuinte a transferência do crédito – mas não o obriga a fazê-lo.

Relembrando: o Supremo decidiu que não há circulação jurídica do bem na transferência de mercadorias para estabelecimentos da mesma pessoa jurídica, uma vez que a titularidade sobre a mercadoria não é alterada, razão pela qual não haveria incidência do ICMS sobre essas operações.

Por não ser cumulativo, o valor devido decorre do resultado de um encontro de contas entre os créditos que o contribuinte possui e os débitos decorrentes das saídas tributadas. Em casos de saídas não tributadas, haveria a necessidade do estorno proporcional dos créditos decorrentes desta operação.

Diante das dúvidas que surgiram quanto ao tratamento que seria dado aos créditos, o STF decidiu três pontos importantes em embargos de declaração.

Primeiro: o estabelecimento remetente não deve estornar os créditos decorrentes das operações de transferência. Segundo: os estados deveriam disciplinar a forma de transferência dos créditos de ICMS acumulados no estabelecimento remetente até o final de 2023. Caso isso não ocorresse, os contribuintes ficariam autorizados a proceder com essa operação mesmo sem regulamentação específica.

Terceiro: com base no voto do ministro Barroso, ficou entendido que a transferência de créditos é um direito do contribuinte, mas não uma obrigação. Assim, poderia escolher a forma de destino do seu crédito.

Para atender a determinação do Supremo, os estados aprovaram o Convênio ICMS 178/2023, visando disciplinar a transferência dos créditos por meio de quatro regras básicas.

A primeira, que a apropriação do crédito pelo estabelecimento destinatário seria procedida de uma espécie de tributação prévia do crédito, em que o remetente registraria no livro de saída um débito equivalente ao imposto a ser transferido. Sob a ótica da decisão do ADC 49 há um tratamento curioso na operação, uma vez que se passou a tributar o crédito como forma de controle dos saldos a serem transferidos.

A segunda regra é que a sistemática do convênio não importa no cancelamento ou modificação dos benefícios fiscais concedidos pela unidade federada de origem.

No caso de operações interestaduais, a terceira regra prevê que o crédito a ser transferido é calculado da mesma forma que a operação era anteriormente tributada. Isso porque, o imposto a ser transferido corresponderá ao resultado da aplicação de percentuais das alíquotas interestaduais sobre o valor da entrada mais recente da mercadoria ou o custo da mercadoria produzida.

A quarta determinação é justamente a que atribui uma obrigatoriedade quanto à transferência do crédito ao não permitir que o contribuinte opte por transferir o crédito ou não. Ou seja, o entendimento fixado pelo STF no julgamento da ADC 49 garantiu ao contribuinte o direito subjetivo, com natureza facultativa, de transferir o montante que julgar necessário para suas operações, sem a necessidade da tributação do ICMS. Tanto é assim que nas operações de transferências dentro do mesmo estado não há a obrigatoriedade da transferência do crédito.

Assim, o convênio que deveria finalizar uma discussão e dar efetividade à decisão do STF, abriu um novo flanco de disputa entre o contribuinte e o Fisco que o Judiciário terá novamente que analisar.

Gustavo Vaz Faviero é coordenador da área tributária e João Vitor Prado Bilharinho é advogado da área tributária no escritório Diamantino Advogados Associados