A prestação de serviços a múltiplos tomadores durante o contrato de trabalho não obstaculiza a responsabilização subsidiária das empresas, ante os termos do artigo 5º-A, parágrafos 3º e 5º, da Lei 6.019/74 (que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas), bem como da Súmula 331, inciso VI, do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Em tais casos, a responsabilização deve ser fixada em conformidade com a efetiva prestação de serviços a cada tomador, atentando-se para não transformar a subsidiariedade em solidariedade.
Com força deste entendimento, a 6ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT-3, Minas Gerais) reconheceu o direito de um vigilante de receber parcelas trabalhistas de seu empregador e, também, de mais de 10 empresas que tomavam o seu serviço. Os julgadores excluíram a responsabilidade subsidiária dessas empresas, apenas, quanto ao pagamento de horas extras pelo descumprimento do intervalo interjornadas. Houve homologação de acordo em juízo com cerca de outras 10 tomadoras, que foram excluídas da lide.
A decisão do colegiado regional manteve, no aspecto, sentença da 9ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte. Os empregadores condenados já entraram com recurso de revista (RR), pedindo a reapreciação do caso no âmbito do TST.
Prestação de serviços para mais de 20 tomadoras e conluio entre empregadora e empregado
O que mais chamou atenção no caso foi o fato de o vigilante ter sido designado para prestar serviços para mais de 20 empresas tomadoras de serviços, sendo que, com exceção de uma delas, não havia exclusividade, tampouco uma escala de trabalho. Somou-se a isso a constatação de existência de conluio entre o próprio empregado e a empregadora, para que a excessiva jornada de trabalho, em desrespeito, inclusive, ao intervalo intrajornada de 11 horas descanso entre uma jornada e outra, fosse ‘‘escondida’’ dos órgãos públicos de fiscalização e das próprias empresas tomadoras dos serviços.
‘‘A irregularidade praticada, mormente considerado o expressivo número de tomadores, é inédita nesta Especializada [TRT-3]’’, destacou o desembargador José Murilo de Morais, que atuou como relator dos recursos ordinários (ROTs) interpostos pelo trabalhador e pelas empresas.
Recurso do trabalhador
A 6ª Turma do TRT mineiro deu provimento ao recurso do vigilante para invalidar o sistema de compensação de jornada no período em que trabalhou no sistema de 12 X 36 (12 horas de trabalho por 36 horas de descanso). É que se constatou o cumprimento da jornada especial junto com a realização de plantões e missões de escolta extras, embora estas, conforme apurou o relator, tenham sido remuneradas como hora extra. Nesse quadro, a empregadora e as empresas que com ela formam grupo econômico foram condenadas, de forma solidária, a pagar ao vigilante, no período de junho de 2016 a julho de2018, o adicional convencional de três horas extras para cada dia trabalhado em jornada 12 X 36, com reflexos legais. Ficou claro que não há responsabilidade subsidiária sobre essa verba. As horas extras em razão dos plantões e missões extras, deferidas na sentença, restaram excluídas da condenação, porque já haviam sido pagas ao vigilante.
Entenda o caso
O trabalhador era empregado de uma empresa prestadora de serviços de vigilância e, em razão disso, exercia suas atividades profissionais em benefício de mais de 20 empresas, denominadas tomadoras dos serviços. Durante o contrato de trabalho, exerceu a função de vigilante patrimonial de 1º de março de 2016 a 15 de julho de 2018. No período de 16 de julho de 2018 a 1º de outubro de 2019, trabalhou exclusivamente como vigilante de escolta armada.
Além da jornada normal de trabalho, o profissional também realizava plantões e missões de escolta extras, inclusive no período em que cumpriu jornada de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso. As provas produzidas no processo ainda revelaram o desrespeito ao intervalo intrajornada (para refeição e descanso) e interjornadas (de 11 horas de descanso entre uma jornada e outra).
Na ação reclamatória, o profissional postulou, em síntese, direitos decorrentes do contrato de trabalho, alguns estabelecidos em normas coletivas e outros decorrentes da jornada e da extinção do vínculo, sob a responsabilidade das empresas empregadoras integrantes do grupo econômico e dos tomadores de serviço. Celebrou acordo, homologado em juízo, com cerca de 10 empresas tomadoras, as quais foram excluídas do processo em razão da quitação conferida pelo trabalhador quanto ao pedido que lhes foi dirigido.
No entanto, a ação prosseguiu contra o grupo econômico constituído pela empregadora e demais tomadoras dos serviços, na qual o vigilante teve reconhecidos diversos direitos descumpridos ao longo do período contratual, entre os quais: diferenças salariais por inobservância do piso normativo; horas extras pelo descumprimento dos intervalos intrajornada (para refeição e descanso) e interjornadas (entre uma jornada e outra); horas extras pela invalidade do sistema de compensação no período da jornada 12X36; pagamento em dobro dos repousos semanais remunerados (RSRs) concedidos após o sétimo dia consecutivo de trabalho; pagamento de direitos previstos em normas coletivas (indenizações por vale-transporte, tíquete-refeição, café da manhã, diárias de alimentação); multas convencionais, multa do artigo 477 da CLT. Foi reconhecida a responsabilidade subsidiária das tomadoras dos serviços.
Desembargador José Murilo foi o relator
Foto: Imprensa TRT-3
Responsabilidade subsidiária
Conforme o desembargador-relator, a condenação se baseou na Súmula 331, inciso IV, do TST, que acolhe a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços, no caso de inadimplemento das obrigações trabalhistas por parte do empregador, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial. O magistrado ressaltou que a Lei 6.019/1974, por força das inserções realizadas pelas Leis 13.429/2017, passou a prever expressamente a responsabilidade do tomador pelas obrigações trabalhistas e previdenciárias referentes ao período em que foi beneficiário da prestação de serviços (artigo 5º-A, parágrafo quinto).
Ao reconhecer a responsabilidade subsidiária das empresas que se beneficiaram da força de trabalho do vigilante, o relator também fez referência à decisão do STF que, no dia 30 de agosto de 2018, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 324 e do Recurso Extraordinário (RE) 958252, aprovou a seguinte tese de repercussão geral: ‘‘É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante’’.
Segundo pontuou o desembargador, por meio da responsabilidade subsidiária, obtém-se a ampliação da base econômica em que o empregado firmará seus direitos, o que atende, entre outros, aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho (artigo 1º, inciso IV, e artigo 170, caput, da Constituição). Conforme ressaltou, o fato de a prestação de serviços ter ocorrido de forma simultânea em proveito de diferentes tomadores não afasta a responsabilidade subsidiária das empresas, citando, inclusive, decisões recentes do TST nesse sentido.
Limites da responsabilidade
Na decisão, o relator tratou dos limites da responsabilidade dos tomadores dos serviços e citou, no aspecto, o parágrafo 3º, do artigo 5º-A, da Lei 6.019/1974, segundo o qual: ‘‘É responsabilidade da contratante garantir as condições de segurança, higiene e salubridade dos trabalhadores, quando o trabalho for realizado em suas dependências ou local previamente convencionado em contrato’’.
Ele descreveu uma situação hipotética para ilustrar a ideia do limite da responsabilidade de cada tomador: ‘‘Imagine-se que um empregado vigilante, após trabalhar em um plantão de 12 horas para a empresa X, fosse, na sequência, designado para trabalhar para a empresa Y e lá sofresse um acidente de trabalho. Evidente que a responsabilidade pelos danos sofridos por ele seriam objeto de discussão perante a sua empregadora e a empresa onde ocorreu o acidente (empresa Y)’’, registrou o julgador no voto.
Ao descrever o exemplo, o desembargador teve o objetivo de mostrar que a responsabilidade da tomadora de serviços refere-se ao período em que se aproveitou da mão de obra do trabalhador; ou seja, da efetiva prestação de serviços em seu benefício, sem incluir o período em que o empregado deveria estar descansando. ‘‘Incogitável a fixação de responsabilidade à empresa X no exemplo mencionado, já que esta não interferiu para a ocorrência do acidente e não há na legislação previsão de solidariedade no caso de prestação de serviços a vários tomadores (artigo 264 e seguintes do Código Civil Brasileiro)’’, destacou no voto.
Responsabilidade subsidiária “com contornos de solidariedade” – Necessidade de adequação
Na visão do relator, no caso, o juízo de primeiro grau fixou a responsabilidade subsidiária das empresas tomadoras dos serviços com contornos de solidariedade, porque se estendeu a períodos em que o vigilante trabalhava fora de suas dependências (para outras empresas tomadoras), o que contraria as disposições da Súmula 331 do TST e do artigo 5º-A, parágrafos 3º e 5º, da Lei 6.019/1974, bem como os limites da lide traçados na peça inicial, em violação aos artigos 141 e 492 do Código de Processo Civil (CPC).
O relator explicou que isso ocorreu em relação às horas extras deferidas na sentença em razão dos plantões extras de vigilância patrimonial realizados pelo vigilante, de março de 2016 a julho de 2018, nos períodos de folga da jornada de 12X36. Concluiu que, nesse contexto, é preciso haver a adequação da responsabilidade dos tomadores dos serviços, no período, tendo em vista que, ‘‘nos termos da Súmula 331 do TST e do artigo 5º-A, parágrafos 3º e 5º, da Lei 6.019/1974, cada tomador é subsidiariamente responsável pelas obrigações trabalhistas referentes ao período em que foi beneficiário da prestação de serviços’’, frisou.
Alcance da responsabilidade subsidiária
Com relação ao alcance da responsabilidade subsidiária, o julgador se reportou aos artigos 186 e 927 do Código Civil, que estipulam a culpa in vigilando do contratante que deixar de fiscalizar o cumprimento das obrigações assumidas e impostas por lei, inclusive quanto aos trabalhadores. Explicou ainda que a responsabilidade subsidiária abrange, em geral, as verbas salariais, indenizatórias, rescisórias, inclusive as previstas nas normas coletivas firmadas pela empresa prestadora de serviços, ficando excepcionadas apenas as obrigações de caráter personalíssimo.
Intervalo intrajornada
Segundo o relator, as horas extras decorrentes do desrespeito ao intervalo intrajornada (para refeição e descanso) inserem-se no âmbito da responsabilidade subsidiária dos tomadores, já que essa obrigação se amolda no disposto no parágrafo 3º, do artigo 5º-A, da Lei 6.019/1974 (quando o trabalho é realizado nas dependências da tomadora ou em outro local previamente convencionado em contrato).
Intervalo interjornadas
Com relação às horas extras decorrentes do desrespeito ao intervalo interjornadas (entre uma jornada e outra), o entendimento do relator, acompanhado pelos demais julgadores da Turma, foi de que a responsabilidade subsidiária fixada na sentença não pode prevalecer. Isso porque as provas do processo revelaram, nas palavras do relator, ‘‘uma engenhosa articulação’’ entre a empresa empregadora e o próprio trabalhador ‘‘com o objetivo de inviabilizar a fiscalização governamental e, obviamente, a fiscalização dos próprios tomadores’’. Nesse caso, conforme explicou o julgador, não se configura a culpa in vigilando, que ocorre justamente quando há o descumprimento do dever de fiscalização.
Chamou a atenção do desembargador o fato de a planilha apresentada pelo próprio vigilante indicar descumprimento do artigo 66 da CLT apenas quando considerada globalmente; ou seja, em conjunto com a jornada prestada aos outros tomadores. A regra prevê um período mínimo de 11 horas consecutivas para descanso entre duas jornadas de trabalho (intervalo interjornadas). Na jornada em sistema de 12 X 36, o período de descanso deve ser de 36 horas.
No caso, o próprio trabalhador informou na petição inicial que o controle de jornada era separado para cada tomador, que havia rubricas distintas para diferenciar o pagamento dos plantões extras (rubrica backup) e missões extras (rubrica adicional de escolta armada).
Provas de conluio
Para o relator, a prática adotada teve o objetivo justamente de evitar o cômputo global das horas prestadas a diversos tomadores. Além disso, o vigilante confessou em depoimento que os controles de jornada eram feitos separadamente para cada tomador, para evitar eventual aplicação de multa pela fiscalização do Ministério do Trabalho. E ainda reconheceu que, caso não aceitasse trabalhar em algum plantão ou missão extra, não sofreria sanção.
Todas essas circunstâncias foram consideradas pelo relator como prova do conluio entre o vigilante e a empresa empregadora, para inviabilizar a fiscalização da jornada de trabalho por parte dos órgãos governamentais e dos próprios tomadores dos serviços.
Foto Ilustração: Ascom/ MPT-RS
Jornada exaustiva – Ausência de vantagem econômica por parte dos tomadores dos serviços
O relator considerou importante destacar que nenhum tomador de serviços de escolta armada ou de vigilância patrimonial auferiu vantagem econômica ou de qualquer outra ordem com o fato de o vigilante realizar jornadas exaustivas de trabalho, em descumprimento ao intervalo intrajornada. Observou, nesse sentido, que os plantões e missões extras foram remunerados como trabalho extraordinário, o mesmo ocorrendo com as horas excedentes à 44ª semanal no período em que se dedicou exclusivamente às missões de escolta armada.
‘‘Aliás, seria muito pouco crível que as empresas fossem aceitar que um vigilante patrimonial ou de escolta armada de cargas valiosas trabalhasse sem o necessário descanso, pois é fato notório que a supressão do sono e do descanso acarreta inúmeras consequências, inclusive impactando no desempenho no trabalho e aumentando os riscos de acidente (artigo 375 do CPC)’’, ponderou no voto.
Sobre a dificuldade de se apurar as irregularidades verificadas, o relator pontuou que, relativamente às missões de escolta armada, a convenção coletiva da categoria autoriza missões longas de trabalho, bem como considera horas extras aquelas que excederem as 44 semanais. E a irregularidade constatada no caso não diz respeito à falta de pagamento das horas extras, mas à supressão do descanso de 11 horas entre uma jornada e outra.
Na decisão, o magistrado chamou a atenção para o fato de o vigilante ser designado para prestar serviços para mais de 20 tomadoras, sendo que, à exceção de uma delas, não havia exclusividade nem uma escala de trabalho. ‘‘A irregularidade praticada, mormente considerado o expressivo número de tomadores, é inédita nesta Especializada’’, destacou o desembargador.
A jornada sobre o prisma de cada tomador – Observância dos limites legais e convencionais
Pela análise da jornada sob o prisma de cada tomador, o relator não identificou afronta aos limites legais e convencionais com relação à duração do trabalho e ao desrespeito ao intervalo interjornadas. O mesmo raciocínio foi aplicado ao pagamento do adicional de três horas extras diárias deferido em razão do desrespeito à jornada 12 por 36. Isso porque uma das tomadoras, única para a qual o vigilante trabalhou com exclusividade por certo período e a quem foi imputada a responsabilidade subsidiária por tal verba, não se beneficiou da irregularidade e sequer teria elementos para detectá-la mediante uma fiscalização ordinária.
Para o relator, as circunstâncias de a empregadora integrar um grupo econômico sólido e idôneo no mercado, bem como de ter conseguido a adesão e o consentimento do trabalhador na fraude empreendida, dificultaram muito a ação da fiscalização pelos órgãos públicos e também pelos próprios tomadores de serviços, de forma a afastar a culpa in eligendo e in vigilando no caso, por não fiscalizarem o horário de folga do vigilante. As culpas citadas dizem respeito à negligência na escolha da empresa prestadora de serviços (in eligendo) e no dever de fiscalização do cumprimento dos direitos trabalhistas pela contratada (in vigilando).
Por tudo isso, o desembargador-relator decidiu dar provimento parcial aos recursos das empresas para excluir a responsabilidade subsidiária de todas as tomadoras quanto às horas extras relativas aos intervalos interjornadas e respectivos reflexos; esclarecer que não há responsabilidade de qualquer tomadora pelo pagamento do adicional de horas extras deferido pela desconsideração da jornada 12 por 36; além de adequar a responsabilidade subsidiária das tomadoras aos limites do pedido e ao período em que se beneficiaram da força de trabalho do profissional. (Redação Painel com informações da Assessoria de Imprensa do TRT-3)
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0010466-22.2020.5.03.0009 (Belo Horizonte)