FÓRUM ERRADO
Invasões de terra pelo MST, a velha novidade

Por Eduardo Diamantino

Reprodução Brasil de Fato
Foto: João Zinclair

Nos últimos dias retornou à página de Política dos jornais a questão das invasões de propriedades rurais, capitaneadas pelo MST. A sensação inicial é que isso é coisa do passado; mas, como já ensinou Ivan Lessa, ‘‘a cada 15 anos o Brasil se esquece do que aconteceu nos últimos 15 anos’’ – e o assunto volta a ser atual.

A primeira anomalia a se registrar é que o assunto está na página de Política ao invés de estar na página Judicial. Algo estranho. O exercício da propriedade é matéria de Direito Civil há mais de 100 anos entre nós. Constava da redação originária do Código Civil de 1916. Logo, havendo esbulho, ou na iminência de ser esbulhado, o proprietário toma as medidas junto ao Poder Judiciário, que determina a desocupação ou impede a sua ocupação. Tudo isso através da polícia. É o Estado exercendo o seu jus puniendi e mantendo as relações sociais em harmonia. Em maior ou menor quantidade isso existe há anos e não é um tema inovador no Direito brasileiro.

Como a notícia está na seção errada, também errado estão os protagonistas e as soluções imaginadas para o caso. Nasce a segunda anomalia. Na última das invasões, acompanhei declarações do representante do MST explicando o que era função social da propriedade através de uma ótica enviesada e um tanto particular. Vi também o ministro da Reforma Agrária convocando reuniões e encontros para a não invasão dos imóveis. Proprietários rurais alarmados por redes falaciosas de WhatsApp temem a perda de suas propriedades. Ao largo de todo esse espetáculo, o juiz Renan Souza Moreira, da Vara de Mucuri (BA), determinou a desocupação dos imóveis, nos moldes da boa e velha lei.

Esse processo de discutir o problema no fórum errado é algo que tem se agravado em nosso País. Essa transmutação dos poderes é algo perigoso e que, se não for freado, terá consequências graves. Ativismo judicial, edição de decretos pelo Executivo e aplicação de verbas pelo Legislativo são exemplos dessa perigosa aventura de quebras de regras estruturais em nosso País. Judiciário deveria julgar, Legislativo legislar e Executivo, aplicar a lei. Levar as questões de uma forma distinta da prevista no ordenamento é um caminho certo para o arbítrio.

O Direito de Propriedade em nosso País tem garantia constitucional. Está insculpido no artigo quinto em seu inciso XXIII, no 184 e no 186 da Lei Maior. Está regulamentado de forma clara e segura no Estatuto da Terra. Parece-me claro que é um direito firme desde que respeitada a função social – também explicada em inúmeros artigos de lei. Logo, pode-se dizer que qualquer propriedade rural que está cumprindo sua função social não será expropriada e não poderá ser invadida. Nessa linha, vale registrar que a Lei n° 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, estabelece em seu Art. 2° (…) § 6º, que o imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações (incluído pela Medida Provisória nº 2.183-56, de 2001). Ou seja, ao ocupar as áreas, impede-se que elas sejam objeto de reforma agrária. Agora, se a invasão vier a acontecer, o Judiciário aplicará as normas postas. Essas decisões eram proferidas tempos atrás e voltarão a ser. Essa questão é do Poder Judiciário.

Obviamente, podem colaborar com o tema o Legislativo e o Executivo. Há tempos, a questão fundiária brasileira reclama uma reorganização legal e a implantação de políticas que deem ao produtor rural estabilidade. A última tentativa nesse sentido, feita através da Medida Provisória 910/19, restou esquecida e abandonada no Congresso. Por que não retomar os trabalhos? Nessa linha, nomear o presidente do Incra e suas diretorias é algo mais produtivo do que marcar reunião com movimentos ideológicos.

Pela parte dos produtores rurais, vale conferir se seus imóveis atendem a função social. Se forem produtivos, ambientalmente regularizados e estiverem perfeitamente aderentes às normas, podem dormir tranquilos. Caso contrário, é hora de se mexer. A letargia do governo anterior para essas questões terminou.

Eduardo Diamantino é sócio do escritório Diamantino Advogados Associados (SP e MG)

DÍVIDAS FISCAIS
Empresas em crise e os aspectos tributário e recuperacional da transação

Por Bruna Nunes de Quadros

Ilustração FreePik

A atividade empresarial é complexa e apresenta uma série de dificuldades para quem a exerce. Essas adversidades, quando assentadas com maior veemência, podem culminar em crises. A evasão deste cenário de desequilíbrio econômico é de interesse de ordem pública e social, visto que as sociedades empresárias são instrumentos de geração de insumos e renda e, assim, exercem um papel significativo e determinante no meio social.

Com base nisso, a Lei nº 11.101/05 prevê o instituto da recuperação judicial, que tem como propósito viabilizar a superação da crise econômico-financeira e a preservação da empresa. A recuperação judicial não se limita à mera aceitação de créditos. O instituto pretende, principalmente, conservar a fonte produtora e resguardar a geração de empregos e renda. Atualmente, é a alternativa mais efetiva para a reversibilidade do cenário de crise, uma vez que a empresa, com a tutela do Poder Judiciário, apresenta uma série de medidas preventivas e organizadas em um plano de recuperação, que visa ao reequilíbrio econômico-financeiro do negócio.

As empresas que atravessam crises e se socorrem do instituto da recuperação judicial, via de regra, além dos débitos com outros credores, estão tendo dificuldades em adimplir débitos de natureza tributária. Todavia, como o crédito tributário não está sujeito aos efeitos da recuperação judicial, se instalou um cenário de insegurança e tensão, pois, ao mesmo tempo em que as dívidas de natureza tributária, por não se sujeitarem aos efeitos da recuperação judicial, a efetividade do processo depende em grande medida da concentração da competência para decidir sobre atos que possam impactar de modo significativo o patrimônio (e a capacidade de cumprimento do plano) da devedora no juízo onde se processa a recuperação.

Em 2022, a Lei de Recuperação Judicial passou por algumas mudanças e, entre elas, a criação de câmbio mais eficiente para o adimplemento de créditos tributários. A Lei nº 10.522/02 passou a prever, por exemplo, o aumento do número de parcelas para quitação do ordinário e negócio jurídico processual específico para empresas em recuperação judicial, além de outras medidas, dentre as quais, sem dúvidas, a transação tributária foi a que recebeu mais destaque.

A transação tributária para empresas em recuperação judicial é regulada pela Lei nº 10.522/02 e pela Portaria PGFN nº 2.382/2021, que prevê, para empresas em recuperação judicial, a possibilidade de liquidação de impostos federais em 120 prestações financeiras, além de fundos no valor da multa e juros. Foi prevista, ainda, a hipótese de utilização do benefício fiscal e da base negativa de CSLL ou outros créditos próprios, sem limite de 30% do valor devido, hipótese em que o saldo devedor, após compensações, poderá ser parcelado em até 84 parcelas horizontais.

Na transação, devem ser incluídos todos os débitos, ressalvados aqueles que forem objeto de discussão judicial, os quais poderão ser excluídos mediante apresentação de garantia (que não podem estar incluídos no plano de recuperação judicial), ou com a apresentação de decisão judicial que determine a suspensão da respectiva exigibilidade. Se o contribuinte tiver interesse em incluir esses débitos no parcelamento, deverá comprovar que desistiu das defesas garantidas, tanto na esfera administrativa quanto judicial.

A transação individual se inicia com a apresentação, pelo contribuinte, de uma proposta à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), da qual obrigatório constar o detalhamento do endividamento tributário, a projeção do fluxo de caixa, assim como as premissas de garantia das dívidas.

Aqui, é importante destacar como causas de exclusão da transação tributária, notadamente a falta de pagamento de 06 parcelas consecutivas ou 09 alternadas, a comprovação da realização de atos de esvaziamento patrimonial e decretação de falência. Sobre esse ponto é de se ressaltar que a rescisão da transação, além da possibilidade de ser causa para a retomada da cobrança dos débitos com os respectivos consectários (penhora de bens etc.), permite à Fazenda Nacional requerer a convolação da recuperação judicial em falência (mesmo que o crédito tributário não se submeta aos efeitos de processos de recuperação ou falência).

Das amostras, evidencia-se que a transação individual dispõe de mais vantagens em comparação à transação por adesão, pois possibilita (ao menos em tese) ajustar o fluxo de amortização conforme a capacidade efetiva de pagamento da devedora. A devedora pode, por exemplo, propor um fluxo progressivo de amortização, iniciando-se com parcelas mais baixas que incrementam gradativamente, de modo que a satisfação do passivo fiscal se dê em consonância com o cumprimento do plano de recuperação judicial.

A maior flexibilização no tratamento do endividamento tributário pretendida com a instituição da transação individual torna a Fazenda Pública menos alheia ao processo de recuperação, pressupondo o compartilhamento de premissas econômico-financeiras entre o plano de recuperação judicial e as medidas de garantia da dívida tributária..

Bruna Nunes de Quadros, advogada especializada em Direito Tributário da Cesar Peres Dulac Müller Advogados (CPDMA) 

LEI DO BEM
Finalmente, o ”bem” foi alcançado

Por Glaucia Lauletta

No final de 2005, o governo federal entendeu que a inclusão digital deveria ser estimulada no país e que o estímulo passaria pela redução da carga tributária incidente sobre a comercialização de produtos eletrônicos. Foi quando a Lei nº 11.196, de 21 de novembro de 2005, criou o Programa de Inclusão Digital e, dentre várias outras medidas, exonerou temporariamente a Contribuição ao PIS e a Cofins incidentes sobre a receita bruta de venda a varejo dos produtos ali mencionados. Originalmente, o benefício concedido tinha prazo de vigência determinado, até 31 de dezembro de 2009.

Segundo dados do próprio governo, os resultados do programa foram tão bons que justificava-se a sua extensão, o que ocorreu em duas ocasiões, até que a Lei nº 13.097, de 19 de janeiro de 2019 (resultado da conversão da Medida Provisória nº 656/2014), prorrogou a referida desoneração até 31 de dezembro de 2018. Com isso, os integrantes da cadeia econômica de eletrônicos – indústria e comércio – viram-se incentivados a comercializar tais produtos em escala e com melhores preços, tendo sido realizados inúmeros investimentos, considerando o período estendido no qual o benefício fiscal poderia ser fruído.

Inesperadamente, entretanto, tão logo se viu diante de dificuldades orçamentárias, o mesmo governo federal – que não só prorrogou o benefício como atestou os excelentes resultados do programa e a sua importância no desenvolvimento nacional – editou a Medida Provisória nº 690/2015, que restabeleceu a exigência de referidos tributos a partir de 1º de janeiro de 2016. Importante ressaltar que, entre a extensão do prazo para o benefício e a sua revogação antecipada, passaram-se somente seis meses, o que evidencia que a decisão foi motivada por razões absolutamente casuísticas, sem qualquer planejamento ou respeito à legislação vigente.

Liminares aos contribuintes lesados

Os contribuintes que se sentiram lesados por referida alteração abrupta recorreram ao Judiciário, muitos dos quais obtiveram liminares – e, na sequência, sentenças procedentes –, o que lhes permitiu fruir do benefício até a data anteriormente fixada, leia-se, 31 de dezembro de 2018. O principal argumento sustentado foi a evidente violação ao artigo 178, do Código Tributário Nacional, que impede que isenção concedida por prazo certo e sob condição (onerosa) seja revogada antes do termo final de sua vigência. Foi exatamente a hipótese do benefício previsto na chamada Lei do Bem, que somente cessaria ao final de 2018 e que possuía uma série de condições para ser fruído, inclusive, a necessidade da prática de um preço máximo para os produtos, entre outros.

Como normalmente ocorre com temas dessa magnitude, os contribuintes tiveram que aguardar alguns anos, até que, em 6 de agosto de 2021, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) apreciou o primeiro caso a ela submetido, reconhecendo a ilegalidade da revogação do benefício fiscal previsto até 2018 (REsp nº 1.941.121). O “bem” estava parcialmente alcançado, eis que a consolidação da matéria no âmbito do tribunal dependia da apreciação de precedente pela 2ª Turma e, em havendo divergência de entendimento, até mesmo pela 1ª Seção do STJ. Muita coisa ainda poderia acontecer.

Reconhecimento do direito à fruição do benefício fiscal

Em 21 de junho de 2022, a 2ª Turma do STJ teve a oportunidade de julgar o REsp nº 1.987.675, ocasião na qual, em absoluta sintonia com a decisão anterior da 1ª Turma, também reconheceu o direito do contribuinte à fruição do benefício fiscal até 31 de dezembro de 2018.

Considerando que a matéria envolvida não deve dar ensejo ao conhecimento de recursos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em linha com manifestações já ocorridas, possuímos bastante conforto para afirmar que a matéria está definitivamente decidida, tendo ambas as Turmas do STJ dado razão aos contribuintes. Podemos dizer que o “bem”, agora sim, foi plenamente alcançado.

A discussão é emblemática por várias razões. Primeiro, porque, como dito acima, o Programa de Inclusão Digital teve como objetivo trazer um dos avanços mais importantes na economia moderna, que é a inclusão digital. Segundo, porque os objetivos do programa foram plenamente alcançados. E, por fim, porque condutas como a adotada pelo governo federal, nesse caso, são nocivas e perigosas, por minarem a confiança na gestão pública e desestimularem investimentos por parte do setor privado.

Enquanto incentivos fiscais forem utilizados como ‘‘moeda de troca’’ ou como ‘‘tapa buracos’’ de orçamentos que não fecham, dificilmente teremos uma política fiscal que inspire confiança e que atinja os objetivos que deveria perseguir. Felizmente, no caso da Lei do Bem, o Judiciário, mais especificamente o Superior Tribunal de Justiça, privilegiou a legislação, a boa-fé e a segurança jurídica, tudo aquilo que, mais do que o benefício tributário em si, representam o “bem” que todo e qualquer governo deveria salvaguardar.

Glaucia Lauletta é advogada da banca Mattos Filho (SP), acumulando mais de 25 anos de experiência em contencioso tributário

LOCAÇÕES COMERCIAIS
A ação de despejo durante o período de processamento da recuperação judicial

 Por Thiago Castro da Silva

Empresas que ajuízam ação de recuperação judicial e têm o desenvolvimento de suas atividades em imóveis locados poderão, caso haja inadimplemento, enfrentar ações de despejo, mesmo que o crédito esteja arrolado no quadro de credores. Acerca desse tema, existem algumas questões importantíssimas sendo tratadas nos tribunais quanto à suspensão da demanda e sobre a retomada do bem durante o período de processamento da recuperação judicial.

Antes de mais nada, é importante destacar que a ação de despejo poderá ocorrer por diferentes fundamentos, de acordo com a Lei do Inquilinato (Lei 8.245/191). O mais comum, em se tratando de empresas em recuperação judicial, é o pedido de despejo por falta de pagamento (art. 9.°, II). A ação também poderá ser fundamentada pelo mero descumprimento contratual (art. 9.°, I) ou tratar-se de ação por denúncia vazia, quando decorrido o prazo estabelecido no contrato (art. 46, §2°).

Para a Lei 11.101/2005, que regula a recuperação judicial das empresas, a causa de pedir na ação de despejo é fundamental para a definição da manutenção da posse da recuperanda no imóvel locado, isso porque os atos de constrição ficam suspensos enquanto a recuperação estiver sendo processada. Para tanto, a primeira análise é se o pedido de despejo se baseia no inadimplemento de crédito que está sujeito à recuperação.

Não há dúvidas que os créditos constituídos antes do ingresso da recuperação judicial se sujeitam ao plano de reestruturação. Porém, quando é pleiteada em juízo a retomada do imóvel locado, inicia-se uma discussão entre o direito de propriedade e a preservação da empresa recuperanda. O primeiro, buscando um viés constitucional, defendendo a propriedade como um direito absoluto; o segundo, defendendo o interesse social gerado pela manutenção da atividade econômica.

A corrente que defende a impossibilidade de despejo baseada no inadimplemento de crédito sujeito à recjuperação utiliza-se do argumento insculpido no art. 6.º da Lei 11.101/2005, que trata das suspensões dos atos de constrição. Entendem que, uma vez suspensa a exigibilidade do crédito, os efeitos do inadimplemento não podem atingir o locatário e, sendo o despejo um desses efeitos diretos, deverá ficar suspenso até a aprovação ou rejeição do plano.

Além disso, essa tese ganha força quando comparada aos demais credores ditos proprietários destacados no art. 49, § 3.° da mesma lei. Esses comumente chamados ‘‘credores proprietários’’, que são, por exemplo, garantidos por alienação fiduciária de bens, não estão sujeitos aos efeitos da recuperação, porém, estão impedidos de retirar bens de capital que são essenciais à atividade da recuperanda. Nessa linha, se o credor, que também é proprietário do bem e não está sujeito à recuperação judicial, não pode retomar o bem, não há razão para abrir exceção ao locador cujo crédito está sujeito à recuperação.

A via que defende a não suspensão da ação de despejo baseia-se no direito à propriedade, que está insculpido na Constituição Federal – art. 5º, XXII (‘‘é garantido o direito de propriedade’’) – cumulada com a legislação própria, a Lei nº 8.245/91 (Lei do Inquilinato). O argumento aí é que esse bem, cuja posse foi entregue por cessão temporária e onerosa de uso, não faz parte dos bens de propriedade da empresa. Logo, não estaria abrangido pelo art. 6º, § 7º-B, da Lei 11.101/05, que refere ser admitida a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a suspensão dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial. Por essa razão, não se tratando de bem pertencente ao ativo da empresa em recuperação, não seria o juízo universal competente para decidir sobre a destinação de tal bem.

Existe, porém, um outro problema de ordem processual que está relacionado à definição do juízo competente para suspender a ação de despejo. No Superior Tribunal de Justiça prevalece o entendimento de que ‘‘A ação de despejo movida pelo proprietário locador em face de sociedade empresária em recuperação judicial não se submete à competência do Juízo recuperacional’’ (CC 148.803/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26/04/2017, DJe 02/05/2017).

Essa posição vai ao encontro de outros julgados da Segunda Seção, tais como o CC 123.116/SP, DJe 03/11/2014, e AgRg no CC 145.517/RS, DJe 29/06/2016, que entendem que ‘‘Em ação de despejo movida pelo proprietário locador, a retomada da posse direta do imóvel locado à sociedade empresária em recuperação judicial, com base nas previsões da lei específica (a Lei do Inquilinato n. 8.245/91), não se submete à competência do Juízo universal da recuperação’’ (CC 123.116/SP).

Encontra-se, contudo, na jurisprudência, posição divergente – mesmo que ainda minoritária. A  2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo já julgou no sentido de que ‘‘embora o Juízo da recuperação não tenha competência para presidir a ação de despejo, cabe a ele definir o destino dos bens essenciais à consecução da atividade empresarial das devedoras, como guardião do princípio da preservação da empresa insculpido no art. 47 da lei de regência’’ e que a ‘‘retomada do imóvel essencial fere o disposto na parte final do § 3º do art. 49 da LRF’’, devendo ser mitigado o direito de propriedade (AI nº 2250318-08.2019.8.26.0000, Relator Araldo Telles, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 15/04/2020).

Ainda que a Lei 14.112/2020 (Nova Lei de Recuperação Judicial) tenha positivado as medidas de cooperação jurisdicional entre os juízes, encontra-se uma certa resistência dos juízos cíveis que processam os despejos em suspender a retomada dos imóveis, mesmo após os julgadores prestarem informações acerca da recuperação judicial e dos efeitos da sujeição do crédito.

Dentre tantas outras situações, ainda pode-se destacar as cláusulas resolutivas expressas por insolvência (cláusula ipso facto), onde a exceção do interesse das partes (pacta sunt servenda) poderá ser observada diante da importância do bem à recuperanda e seus credores, ouvindo-se o juízo da recuperação. O mesmo pode ser utilizado nos casos de cláusula compromissória, onde a escolha pelo juízo arbitral poderá gerar um impasse ante a liminar de despejo e a sujeição do crédito à recuperação. Nesse caso, o mérito submetido ao juízo arbitral não pode ser objeto de deliberação no Poder Judiciário, porém, até que se instalem as deliberações dos árbitros, há, ao nosso ver, mesmo em cognição sumária, a possibilidade de tutela dos direitos da locatária/recuperanda para permanência no imóvel.

Em contrapartida, o inadimplemento posterior ao ajuizamento da recuperação poderá ensejar o despejo da devedora, porque não é possível transmitir ao proprietário o ‘‘financiamento’’ do soerguimento da recuperanda. É dever da recuperanda adimplir com suas obrigações correntes como forma de demonstrar sua viabilidade econômica.

É preciso buscar alternativas para que as redes de varejo, as mais afetadas com o tema, possam ter as mesmas possibilidades de reorganização econômico-financeira que os demais segmentos da economia. Para que isso aconteça, é preciso que a cooperação jurisdicional seja eficaz, garantido ao proprietário o recebimento dos aluguéis vencidos (dentro do plano de recuperação judicial) e a vencer (como débito corrente no curso do processo). À devedora, é necessário que se garanta a manutenção das suas atividades ,para que possa ter o mínimo de previsibilidade na sua projeção de caixa e, assim, honrar com o seu plano de reestruturação.

Thiago Castro da Silva, advogado especializado em reestruturação de empresa da Cesar Peres Dulac Müller Advogados (CPDMA) 

 

DIREITO AGRÁRIO
Equívoco da não indenização da posse na faixa de fronteira

Por Eduardo Diamantino

Não é uma novidade o entendimento dos Tribunais Regionais Federais sobre a não indenização de imóveis desapropriados na faixa de fronteira do Brasil, sob o argumento de que seriam bens da União e, logo, detidos de forma precária. Nessa questão, temos uma novidade e uma crueldade. A novidade é que com o julgamento do RE 1.010.919, que entendeu pela imprescritibilidade da Ação Civil Pública para discutir domínio, o raciocínio deve causar ainda mais estragos no Direito Agrário Brasileiro. A crueldade é que está se aplicando o entendimento de forma mais danosa possível ao proprietário rural.

É preciso voltar à Súmula 477, do Supremo Tribunal Federal (STF), que no final da década de 1960 determinou: ‘‘As concessões de terras devolutas situadas na faixa de fronteira, feitas pelos estados, autorizam, apenas, o uso, permanecendo o domínio com a União, ainda que se mantenha inerte ou tolerante, em relação aos possuidores’’. Tal súmula carrega um enorme casuísmo em sua elaboração, já que apenas três apelações ensejaram a sua edição. Além disso, é ultrapassado e descabido o argumento de que a proteção à faixa de fronteira é necessária à segurança nacional.

Acontece que a realidade fundiária brasileira mostra que a ocupação desse território se deu de forma distinta do determinado no mundo do Direito. A faixa de fronteira brasileira, especialmente na Região Sul do país, foi sendo ocupada por títulos de concessão estaduais ou mesmo das formas de registro anterior sem resistência alguma da União.

Dado o valor econômico das áreas, surgiram conflitos de ocupação. Em um esforço de economia do discurso, é possível dizer que existiam ao menos quatro lados nessa questão: os proprietários das terras que as tinham com registro nos cartórios de imóveis, os posseiros, os estados que haviam titulado as mesmas aos produtores e a União. Considerando que competia à União, através do Incra, tratar da política fundiária brasileira, a ele caberia regularizar a questão.

Deveria ter organizado as ações discriminatórias, conforme previsto na Lei 6.383/76, e resolvido a questão. Não foi o que ocorreu. Foi preferido o fácil caminho da desapropriação para fins de reforma agrária e estabelecida a confusão sobre a área.

Assim, nas décadas de 1970 e 1980, ocorrerem desapropriações na área, destinação das mesmas aos assentados, como se do particular fossem. Tudo isso com problemas no título de domínio. Ou seja, em um dado momento, se usava esse argumento para deixar de pagar a indenização.

A questão era tão sui generis que a jurisprudência da época, procurando dar um desfecho equitativo à questão, passou a admitir que a posse de boa-fé, provada por título registrado em cartório e exercida de forma mansa e pacífica, ensejava a indenização em 60% do valor total. Nesse sentido, no próprio TRF-4, o acórdão da Apelação 20140059934 é exatamente nesse sentido.

Não poderia fazer de forma diferente: I) os proprietários haviam adquirido as terras diretamente dos estados membros, com toda a aparência de legalidade; II) já haviam sido surpreendidos com uma súmula precoce e equivocada editada pelo Supremo Tribunal Federal; e III) haviam sido esbulhados de lá por desapropriação; logo, ao menos, receber pela posse parece ser o mais arrazoado.

Existem mais argumentos a favor dessa questão: não se tratam de  bens indispensáveis à União. Os bens da União podem ser: de uso comum, especiais e dominiciais, que são os aqui tratados. Existe uma gradação de sua importância e desafetação. Prova disso é o disposto no artigo 101 do atual Código Civil. O artigo 67, do Código Civil da época, autoriza a alienação dos referidos bens dentro de condições legais específicas. A forma de posse também conta. O próprio DL 9.760, de 1946, que trata da ocupação de bens da União, diferencia no parágrafo único do artigo 71 a posse de boa fé.

Entender de forma diferente é misturar o joio ao trigo. É isso que está ocorrendo. Aqui reside a crueldade mencionada. A novel jurisprudência vem entendendo por não indenizar de forma alguma os desapropriados de boa-fé, deixando-os à míngua de qualquer reparação pelos prejuízos sofridos.

Com a novidade tratada no início deste artigo, a AGU e o MPF terão permissão para revisitar toda a questão, provocando outro efeito nefasto: a insegurança jurídica. A decisão definitiva proferida em ação de desapropriação pode ser revisitada por meio de ação civil pública, em defesa do patrimônio público, para discutir a dominialidade do bem expropriado, mesmo expirado prazo decadencial para propositura de ação rescisória.

Por isso, essa guinada jurisprudencial há de ser revista. Feita dessa forma só atende aos cofres públicos, que estarão livres de indenizar e poderão aplicar os recursos como bem entenderem.

Eduardo Diamantino é vice-presidente da Academia Brasileira de Direito Tributário (ABTD) e sócio do escritório Diamantino Advogados Associados