Os sócios não podem ser obrigados a permanecer presos à sociedade empresária eternamente, como garantidores de uma operação comercial, pois tal exigência contratual fere a plena liberdade de associação para fins lícitos, como prevê o inciso XX do artigo 5º da Constituição.
Com a força desse fundamento jurídico, a Décima Quinta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), por unanimidade, livrou dois ex-sócios de um posto de gasolina de arcar, solidariamente, com multas pelo distrato comercial com a Ipiranga Produtos de Petróleo S.A, devidamente reconhecido em ação indenizatória.
Segundo o relator das apelações, desembargador Alexandre Eduardo Scisinio, os ex-sócios provaram a alienação de suas cotas a terceiros e, também, a notificação à petroleira, manifestando desejo de exoneração da fiança por eles prestada. Por isso, não poderiam ficar presos a uma suposta ‘‘prévia autorização’’ colocada no contrato, oferecendo garantias por tempo indeterminado à Ipiranga.
‘‘Aqui reside o equívoco da sentença que, acolhendo as razões da autora Ipiranga, encontrou na expressão ‘alteração autorizada’ um conteúdo proibitivo que poderia suplantar o próprio texto da lei vigente brasileira, produzindo efeitos à margem dos conceitos e valores muito mais amplos, e escondendo a ordem dos intocáveis preceitos constitucionais’’, afirmou no acórdão.
Na percepção do relator, a Ipiranga não pode impedir que um posto de gasolina reorganize o seu quadro societário, promovendo a saída ou ingresso de novos sócios ou aumento de capital, já que está cumprindo o princípio da função social da empresa.
‘‘Não se pode proteger, conservar ou executar regra inconstitucional que atribui à Ipiranga a primazia de se imiscuir no direito que todo cidadão tem de livremente se associar ou permanecer associado. Ao contrário, as normas acentuam o direito à liberdade econômica. Não prevalece o princípio da autonomia dos contratos em qualquer relação jurídica que viole direitos garantidos na Constituição Federal’’, concluiu o desembargador-relator, reformando a sentença.
Quebra de contrato
A empresa Ipiranga Produtos de Petróleo S.A. acionou judicialmente o Posto de Serviço Manda Brasa Ltda e seus garantidores – o casal Alexandre Ziehe e Gisele Hart Ziehe –, pedindo a rescisão contratual e o pagamento de perdas e danos por lucros cessantes e pelo uso indevido do trade dress (‘‘roupagem comercial’’ Ipiranga), assim como o pagamento de aluguéis referentes aos bens cedidos desde a notificação de devolução.
Explicou que celebrou contrato de cessão de marcas, completo de produtos e outros acordos de revenda, no dia 18 de abril de 2012. Com tal avença, o posto de combustível passou a ter o direito de uso da marca da petroleira e, também, o de adquirir produtos e usar seus equipamentos.
Em contrapartida, disse que o posto tinha o dever de comprar, exclusivamente da Ipiranga, itens como combustíveis, óleos lubrificantes e graxas automotivas para revenda. Contudo, a partir de 2019, o posto passou a descumprir as suas obrigações contratuais. Ou seja, deixou de adquirir o volume de compra pactuado.
Inobstante a quebra de contrato, a parte autora denunciou que o réu continuou na posse dos bens cedidos, ostentando, perante o mercado, programação visual e layouts idênticos ao da marca Ipiranga. Pediu a procedência dos pedidos, informando que enviaria uma notificação extrajudicial para a devolução dos equipamentos cedidos.
Cessão de cotas sociais
Em contestação, no aspecto, o casal de empresários arguiu ilegitimidade passiva, por ter cedido as cotas sociais ao primeiro réu – o posto de combustível –, notificando a parte autora com antecedência de 60 dias. Em consequência da alteração societária, alegaram os ex-sócios, estariam desonerados de garantir a fiança prestada no contrato entabulado com a autora da ação indenizatória.
Em análise de mérito, a 25ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro julgou parcialmente procedentes os pedidos embutidos na peça inicial. O juiz em exercício Victor Agustin Cunha Jaccoud Diz Torres declarou rescindido o contrato entre as partes e condenou os réus, solidariamente, ao pagamento de multa contratual, com as devidas correções, em valor ser apurado em sede de liquidação de sentença. Ele também condenou o Posto de Serviço Manda Brasa Ltda ao pagamento de aluguéis à Ipiranga, desde a data da notificação extrajudicial (21/07/2020) até a data da primeira diligência reintegratória (10/08/2021).
Como fundamento, o juiz destacou a prevalência das disposições contratuais – tanto a que obriga, solidariamente, os dois ex-sócios quanto a que prevê a aquisição de uma litragem mínima de combustível. ‘‘Como se vê da disposição 9.1.1., somente a alteração autorizada da composição societária poderia levar à exoneração da garantia. A rigor, pactuou-se a renúncia ao direito de exoneração sem a concordância da credora, manifestação cabível válida’’, complementou.
Para o julgador, os réus até fazem prova da notificação judicial endereçada à Ipiranga, mas nada evidenciam acerca do aviso de consentimento quanto a toda essa reestruturação societária. ‘‘Portanto, observada a hígida disposição contratual, este negócio jurídico, desenvolvido entre terceiros, não é oponível à demandante’’, cravou na sentença.
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0272572-64.2020.8.19.0001 (Rio de Janeiro)
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