O PODER DOS RELATOS
Canal de denúncia é ferramenta que fortalece o programa de compliance trabalhista

Por Christian Charles do Carmo de Ávila

O compliance faz parte da estrutura de Governança Corporativa e tem como foco principal evitar a ocorrência de não conformidades; ou seja, impedir que leis, normas ou regras internas sejam desrespeitadas, evitando, assim, atos de corrupção em todos os níveis.

É possível, assim, afirmar que o setor responsável pelo compliance da empresa tem a função de monitorar e assegurar que todos os envolvidos estejam de acordo com as práticas de conduta da organização.

Dentre outros pilares que compõem um programa de integridade, abordaremos o pilar relativo ao canal de denúncia, que está inserido dentro de um mais abrangente, como o do monitoramento. Isso em razão de se tratar de uma ferramenta de uso contínuo que permite a verificação de não conformidades a partir de relatos internos e externos.

Rogéria Gieremek¹, uma das grandes vozes do compliance nacional, salienta que o monitoramento e os testes de controle visam a verificar, na prática, a aderência dos processos e procedimentos estabelecidos com a lei e as normas internas da empresa. Aqui, entrariam, também, as due diligences, as auditorias e as investigações, internas e externas, no trinômio detecção-tratamento-resposta a incidentes.

Um canal de denúncia pode estar localizado dentro da própria estrutura da empresa ou, externamente, através de empresa contratada para este fim. Aliás, esta última possibilidade pode ser entendida por alguns como a mais independente e profissional. Isso, certamente, traria mais segurança e estimularia os denunciantes a se utilizar desta ferramenta.

Segundo a doutrina de Melo, Silva e Souza², diversas são as contribuições dos canais de denúncia: tornar a empresa mais protegida contra os eventos de fraudes e comportamentos antiéticos; fornecer transparência aos processos de negócio e às relações entre os diversos agentes da governança; inibir desvios de conduta e melhorar o ambiente de trabalho; e suportar a atuação da auditoria interna com informações relevantes e atualizadas..

Por meio do canal de denúncia, qualquer colaborador, terceiro ou mesmo cliente, pode comunicar à empresa, por exemplo, eventos relacionados a desvio de mercadorias, uso impróprio de bens, incluindo veículos – inclusive, se determinado motorista prestar serviços para terceiros enquanto em atividade para o seu empregador. Ainda, auxilia na denúncia de abusos ocorridos nas relações de trabalho por superiores hierárquicos, podendo também, proteger a empresa de falsas acusações desta natureza, como é possível verificar no seguinte julgamento do recurso ordinário (RO) 0000639-29.2014.5.04.0733 oriundo do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4, RS):

INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. Hipótese em que os elementos probatórios contidos nos autos não confirmam a ocorrência dos danos morais alegados pela reclamante a ensejar o deferimento da pretensão de indenização a tal título. Recurso ordinário não provido.

(…) a reclamada tinha programa de compliance no qual um funcionário poderia telefonar e comunicar situação de assédio, sendo um 0800; a depoente não telefonou para este número porque as pessoas que sabe que ligaram foram despedidas; a ligação é anônima, mas não sabe quais são os procedimentos internos de andamento da denúncia; (…)

A própria reclamante narrou que a ré tinha um programa de ‘‘compliance’’ em que poderia denunciar eventual assédio moral, restando garantido o anonimato de quem denunciasse, fato que foi corroborado pela última testemunha ouvida e indica uma postura proativa da ré para coibir o assédio moral no seu ambiente de trabalho.

Da leitura do depoimento da autora em conjunto com a documentação trazida pela reclamante, noto que a autora não passou por transtornos psiquiátricos no período do alegado programa de terceirização, tendo as manifestações da autora se iniciado quase dois anos após o término do citado programa.

Como visto, esta ferramenta alerta a empresa sobre comportamentos reprováveis de funcionários, o que auxiliará na aplicação de sanções ou até mesmo na demissão destes funcionários por justa causa em face de atos graves que venham a causar danos financeiros ou à sua imagem. Foi o que ocorreu no julgamento do RO 1001193-41.2021.5.02.0705, oriundo do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2, SP), em que uma funcionária foi demitida por justa causa por desrespeitar o código de ética e o regramento interno da empresa:

‘‘Pede a autora a nulidade da justa causa aplicada, sob argumento de que fora injustamente acusada de manter relacionamentos afetivos com todos os representantes de empresas de remoção, se beneficiando de ‘mimos’, frequentando bares e restaurantes com eles. Aduz que houve denúncia ao setor de compliance e lhe foi negado acesso ao teor da denúncia e, posteriormente, fora dispensada por justa causa.

‘‘A reclamada afirma que houve denúncia, iniciando apuração dos fatos e concluindo em razão das provas colhidas que os atos da autora se enquadrou como mau procedimento, eis que revelou segredo do qual tinha conhecimento, violando código de conduta e favorecendo participante em processo licitatório em trâmite.

‘‘Dos áudios colacionados pela reclamada, extraio que a reclamante entrou em contato com o Sr. André, (…) informando acerca da denúncia e procedimento administrativo que envolvia a autora (…). Nas mensagens de whatsapp apresentadas nos (…) constato que a autora fornece informações acerca de valor de contrato com outra empresa (…).

‘‘Extraio do relatório de investigação interna, (…) que houve novas informações acerca do vazamento de informações por parte da autora. (…) Na 11ª cláusula do contrato de trabalho celebrado entre as partes, fls.224, consta expressamente o comprometimento da autora em não revelar ou divulgar a terceiros, bem como não utilizar de modo algum nenhuma informação confidencial ou não de que tenha conhecimento ou acesso em razão da profissão e atribuições desempenhadas na reclamada, sob pena de enquadramento aos termos do artigo 482 da CLT.

‘‘Às fls. 231, a reclamada apresenta termo de confidencialidade assinado pela autora, (…). Do todo analisado, entendo que a autora, efetivamente, inobservou regramento interno da reclamada e expresso no termo de confidencialidade e em cláusula do contrato de trabalho celebrado entre as partes(…).

‘‘Sendo assim, não procede o pedido de nulidade da justa causa (…)’’

Como visto, o canal de denúncia se mostra uma ferramenta versátil e imprescindível para a manutenção do programa de compliance, devendo sempre ser considerada quando da adoção de um programa de conformidade trabalhista.

Christian Charles do Carmo de Ávila é advogado especializado em Direito e Processo do Trabalho e Compliance Trabalhista

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¹ A aplicabilidade da Lei anticorrupção brasileira às sociedades de economia mista. Revista de Direito Administrativo Contemporâneo. Vol. 22, ano 4, São Paulo: Ed. RT, Jan-fev. 2016, p. 177
² MELO, Hildegardo Pedro de Araújo; SILVA, Gilson Rodrigues da; SOUZA, Rossana Guerra de. A proteção do anonimato e a Eficácia do Compliance: Um estudo experimental sobre a influência do Canal de denúncia Anônima na Comunicação de problemas de Compliance no Brasil. São Paulo, 2016, p. 6. Disponível em: <https://congressousp.fipecafi.org/anais/artigos162016/50.pdf>. Acesso em: 10 mai. 19.

CONDUTA DESRESPEITOSA
Ofensas genéricas não impedem condenação de empregador por assédio moral

Secom/TST

A Confecções de Roupas Seiki Ltda., de São Paulo (SP), foi condenada a pagar R$ 5 mil de indenização a uma assistente que era constantemente ofendida pela gerente da loja. O direito à indenização havia sido negado na segunda instância da Justiça do Trabalho, que entendera que as ofensas ocorriam de forma geral, contra todas as pessoas que trabalhavam no local. Mas, para a Quarta Turma do Tribunal Superior do Trabalho, isso não afasta a configuração do assédio moral.

Ofensas

Segundo relato da assistente na reclamação trabalhista, a gerente era filha dos proprietários do empreendimento, e as ofensas quase sempre se referiam à capacidade cognitiva da empregada (era chamada de “ignorante” e “burra”) ou à sua competência no trabalho (“inútil”, “coitada”). As agressões – vividas por dois anos por ela – também eram dirigidas a colegas da confecção.

Ilações

Em contestação, a Seiki negou as ocorrências e sustentou que a gerente sempre tratava a empregada e as demais pessoas subordinadas “de forma exemplar e educada”. Segundo a empresa, o relato da assistente “não passava de meras ilações fantasiosas”.

Genéricas

O juízo da 89ª Vara do Trabalho de São Paulo e o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2, SP) rejeitaram o pedido de indenização, por entenderem que as ofensas não eram dirigidas apenas à assistente. “Se todos vivenciavam idêntica realidade, não haveria espectador, tampouco, em consequência, situação vexatória”, registra a decisão do TRT.

Danos morais

Todavia, o ministro Alexandre Luiz Ramos, relator do recurso de revista (RR) da empregada, propôs a condenação da Seiki ao pagamento de indenização de R$ 5 mil por danos morais. Para Ramos, o Tribunal Regional contrariou a jurisprudência do TST, segundo a qual o fato de as ofensas serem genéricas e dirigidas a várias pessoas não afasta a configuração do dano moral.

Ambiente civilizado

Um dos precedentes citados pelo relator assinala que o empregador tem o dever de zelar pela urbanidade e a responsabilidade por manter um ambiente de trabalho civilizado, em que a pessoa que a representa (preposta) trate de modo respeitoso a equipe. A decisão foi unânime.

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Processo RR-1000697-56.2017.5.02.0089

 

TERCEIRIZAÇÃO ILÍCITA
TRT-RS reconhece vínculo de emprego entre motorista entregador e FedEx

Por Jomar Martins (jomar@painelderiscos.com.br)

Pelo princípio da primazia da realidade, é possível descaracterizar um pacto de relação civil de prestação de serviços. Basta que, no cumprimento do contrato, estejam presentes, concretamente, todos os elementos fático-jurídicos da relação de emprego – trabalho por pessoa física, com pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e sob subordinação.

Com base neste entendimento, a 8ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4, Rio Grande do Sul), reformou sentença que negou reconhecimento de vínculo empregatício (artigos 2º e 3º da CLT) a um entregador motorizado da FedEx. Com a reviravolta no caso no segundo grau, o processo trabalhista retornará à 26 Vara do Trabalho de Porto Alegre, para análise e julgamento dos demais pedidos da petição inicial – todos relacionados ao reconhecimento de vínculo.

Trabalho sem autonomia

Para o relator do recurso ordinário no TRT-4, desembargador Marcelo José Ferlin D’Ambroso, a prova oral comprova subordinação na relação havida entre as partes, como também que o autor prestava serviços de forma não eventual. Ou seja, não se sustenta o argumento de que o autor da ação reclamatória prestava serviços apenas de forma autônoma.

Conforme o relator, a existência de contratos de prestação de serviços firmados entre a empresa constituída pelo autor e a empresa ré não é suficiente para demonstrar que a prestação de serviços ocorreu de modo não subordinado, eventual e sem pessoalidade. Pouco importa, no particular, que a prestação de serviços tenha ocorrido por intermédio de pessoa jurídica.

‘‘Outrossim, o fato de o autor ter disponibilizado veículo próprio para a prestação de serviços, igualmente, não afasta a caracterização do vínculo de emprego, uma vez que é comum, em casos de terceirização ilícita de atividade-fim, que o ônus do empreendimento seja parcial e indevidamente transferido ao prestador de serviços, em realidade, mero empregado’’, definiu o desembargador-relator.

Ação reclamatória

O autor ajuizou ação reclamatória contra a FedEx Brasil Logística e Transporte em março de 2017, pleiteando verbas indenizatórias estimadas em R$ 150 mil, se reconhecidas pela Justiça do Trabalho. Na petição inicial, afirmou que começou a trabalhar para a empresa reclamada em março de 2014, na função de motorista/entregador, como pessoa física.

Em julho de 2014, como trabalhava sem carteira assinada, narrou, a FedEx pediu que abrisse uma empresa para prestar os serviços, com a apresentação de notas. Esta relação durou até março de 2017, quando foi dispensado sem justa causa – sem receber um tostão pela rescisão trabalhista. Nesses dois anos e 11 meses de trabalho, denunciou, teve de trabalhar como pessoa jurídica (PJ) por exigência do empregador, o que caracteriza a figura da ‘‘pejotização’’.

Para a prestação do serviço contratado, afirmou que utilizava veículo próprio. O veículo, após o serviço, por determinação da contratante, ficava guardado na garagem da empresa. Por outro lado, a empresa fornecia um smartphone, que era utilizado como contato de trabalho, bem como para dar baixa nos romaneios de coleta e/ou entrega de mercadorias, conforme comprovado no Termo de Responsabilidade de Recebimento de Equipamento apresentado.

Em síntese, apesar do contrato como PJ, disse que trabalhava de forma habitual, remunerada e mediante subordinação, requerendo, como pedido principal, reconhecimento de vínculo empregatício aos moldes do previsto na legislação celetista. Afinal, como indica os artigos 2º e 3º da CLT, para a configuração da relação de emprego é necessária a presença concomitante dos seguintes elementos fático-jurídicos: trabalho não eventual, prestado com pessoalidade, em regime de subordinação e com onerosidade – ou seja, mediante pagamento.

Os demais pedidos vertidos na inicial: anotação da Carteira do Trabalho e Previdência Social (CTPS), recolhimento de contribuições previdenciárias, férias (com 1/3), 13º salário, aviso prévio, horas extras, Fundo de Garantia, dentre outras verbas indenizatórias.

Sentença improcedente

O juízo da 26ª Vara do Trabalho de Porto Alegre não reconheceu o vínculo empregatício, julgando improcedente a ação. Com isso, fulminou, por consequência, todos os pedidos vertidos na petição inicial.  Nos fundamentos de sua decisão, o juiz Elson Rodrigues da Silva Junior disse que o reclamante constituiu empresa antes do início da prestação de serviços e se cadastrou como transportador na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Tanto é verdade que os documentos e depoimentos inseridos nos autos provam que ele recebia pagamento contra apresentação de notas fiscais emitidas por sua empresa.

Assim, a relação mantida com a FedEx não seria de emprego, mas de prestação de serviços de transporte de cargas, a teor do que prevê o artigo 5º da Lei 1.442/07. Reza o dispositivo: ‘‘As relações decorrentes do contrato de transporte de cargas de que trata o art. 4o desta Lei são sempre de natureza comercial, não ensejando, em nenhuma hipótese, a caracterização de vínculo de emprego’’.

‘‘Nesse sentir, a presunção é no sentido de inexistência de relação de emprego entre as partes, por força do art. 5º da Lei nº 11.442/07. A fraude não se presume, de modo que cabia ao reclamante comprovar de forma robusta a existência de fraude e a presença dos elementos caracterizadores da relação de emprego. Todavia, o reclamante não se desincumbiu a contento desse ônus’’, cravou na sentença o juiz trabalhista.

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Reclamatória trabalhista 020385-59.2017.5.04.0026/RS

Jomar Martins é editor da revista eletrônica PAINEL DE RISCOS

 

SIMILAR A FATURAMENTO
TRF-4 autoriza penhora de recebíveis de cartão de crédito numa execução fiscal

Por Jomar Martins (jomar@painelderiscos.com.br)

A penhora dos recebíveis de cartão de crédito guarda similitude à penhora de faturamento. Trata-se de medida excepcional ante à inexistência de bens livres e desembaraçados capazes de garantir os débitos em execução.

O fundamento levou o Tribunal Regional Federal da 4ª Região  (TRF-4) a reformar despacho que indeferiu pedido de penhora de valores repassados mensalmente, pelas operadoras de cartões de crédito, a uma empresa de panificação. A empresa vem sendo executada judicialmente pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro)

Na análise do recurso de agravo de instrumento, manejado pela panificadora com o intuito de derrubar a decisão da 2ª Vara Federal de Criciúma (SC), os julgadores da 1ª Turma se convenceram que esta é a medida mais acertada. Afinal, restou comprovado, nos autos, o esgotamento das diligências tendentes à localização de bens passíveis de constrição em nome da  agravante.

O relator do agravo, desembargador Leandro Paulsen, explicou que o artigo 11da Lei de Execuções Fiscais (Lei 6.830/80) estabelece a ordem de penhora ou arresto de bens, ocupando o dinheiro o primeiro lugar na ordem de preferência.

Tema de recurso repetitivo

Embora não desconheça precedente em sentido contrário na 1ª Turma (AG 5006697-65.2021.4.04.0000),  Paulsen apurou que os recebíveis de cartão de crédito guardam similitude à penhora do faturamento, disciplinada pelo artigo 866 do Código de Processo Civil (CPC) e objeto, inclusive, do Tema 769 de recursos repetitivos do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

‘‘É que o produto da venda de mercadorias e serviços, recebidos, majoritariamente, através de operações que envolvem as administradoras de cartões de crédito, constituem a maior parte do faturamento das empresas. Ademais, conforme enfatizado na decisão antecipatória, houve a demonstração de que foram realizadas, pela exequente, diligências objetivando encontrar bens penhoráveis, que restaram infrutíferas’’, justificou no acórdão o desembargador-relator.

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Execução fiscal 5014552-85.2019.4.04.7204/SC

Jomar Martins é editor da revista eletrônica PAINEL DE RISCOS

 

 

 

DIREITOS & DEVERES
Fundos de investimentos podem sofrer efeitos da desconsideração da personalidade jurídica

Imprensa STJ

Os fundos de investimento, embora não ostentem personalidade jurídica, titularizam direitos e obrigações. Se constituídos ou utilizados de forma fraudulenta pelos cotistas – pessoas físicas ou jurídicas –, podem ser atingidos pelos efeitos da desconsideração da personalidade jurídica. É o que decidiu a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ.

Com esse entendimento, o colegiado manteve acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) que, no curso de uma execução, confirmou a rejeição dos embargos de terceiro opostos por um Fundo de Investimento em Participações (FIP) contra o bloqueio e a transferência de ativos de sua propriedade, após a desconsideração da personalidade jurídica de uma empresa holding.

Em recurso especial dirigido ao STJ, o Fundo alegou que não foram preenchidos os requisitos legais para a desconsideração da personalidade jurídica, tendo em vista que os FIPs são constituídos sob a forma de condomínio fechado, sem personalidade jurídica, motivo pelo qual não poderiam ser atingidos pela medida.

Comprovação de abuso de direito autoriza desconsideração da personalidade

O ministro Villas Bôas Cueva, relator, explicou que a Lei 4.728/1965, ao disciplinar o mercado de capitais, realmente caracterizou os fundos de investimento como entes constituídos sob a forma de condomínio, definição posteriormente seguida pelo Banco Central na Circular 2.616/1995.

Atualmente, prosseguiu, está em vigor a Instrução 555/2014 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), segundo a qual o fundo de investimento pode ser constituído sob a forma de condomínio aberto – que permite ao cotista solicitar o resgate de suas cotas – ou fechado – no qual as cotas só são resgatadas ao fim do prazo de duração do fundo.

Além de lembrar que os fundos estão sujeitos a regramento específico da CVM, o ministro destacou que esse tipo de condomínio, embora seja destituído de personalidade jurídica e exerça suas atividades por meio de administrador, é dotado de direitos, deveres e obrigações.

‘‘Assim, o fato de ser o FIP constituído sob a forma de condomínio e não possuir personalidade jurídica não é capaz de impedir, por si só, a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica em caso de comprovado abuso de direito por desvio de finalidade ou confusão patrimonial’’, afirmou no voto.

Fundo teria sido constituído para ocultar patrimônio de empresas do grupo

Citando doutrina a respeito do tema, Villas Bôas Cueva ressaltou que as prerrogativas do artigo 1.314 do Código Civil (CC) não são conferidas ao cotista de fundo de investimento, tendo em vista que ele não desfruta plenamente de direitos relacionados a todos os ativos do fundo constituído, mas apenas aos direitos ligados à sua fração de participação.

Nesse sentido, o relator reconheceu que o patrimônio gerido pelo FIP pertence, em condomínio, a todos os investidores, o que impede a responsabilização do fundo pela dívida de um único cotista.

‘‘Apenas em tese, repita-se, não poderia a constrição judicial recair sobre o patrimônio comum do fundo de investimento por dívidas de um só cotista, ressalvada a penhora apenas da sua cota-parte’’, completou o ministro.

No caso dos autos, entretanto, Villas Bôas Cueva destacou que essa regra deve ceder à constatação de que a própria constituição do fundo de investimento ocorreu de forma fraudulenta, como modo de encobrir ilegalidades e ocultar o patrimônio de empresas integrantes do mesmo grupo econômico – tomando-se cuidado, contudo, para não atingir as cotas daqueles que não possuam nenhuma ligação com a parte executada no processo.

O relator ressaltou que, no momento da constrição determinada pelo juízo da execução, como consequência da desconsideração inversa da personalidade jurídica do devedor, o fundo de investimento possuía apenas dois cotistas, ambos integrantes do mesmo conglomerado econômico – o que revela que o ato judicial não atingiu o patrimônio de terceiros.

‘‘Além disso, o fato de o fundo de investimento ser fiscalizado pela CVM e de ter todas as informações auditadas e disponibilizadas publicamente não impede a prática de fraudes associadas, não às atividades do fundo em si, mas dos seus cotistas (pessoas físicas ou jurídicas), que dele se valem para encobrir ilegalidades e ocultar patrimônio. Disso também resulta a irrelevância do fato de se aferir incremento em seu patrimônio líquido’’, concluiu.

Leia o acórdão no REsp 1.965.982