COCHILO FISCAL
Herdeiro não paga IPTU se município executa proprietário muitos anos depois de sua morte

Por Jomar Martins (jomar@painelderiscos.com.br)

O fisco municipal não pode redirecionar a cobrança do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) para os sucessores/herdeiros de proprietário falecido se a execução fiscal foi ajuizada muito tempo depois do óbito. Afinal, neste cenário, o proprietário falecido – por ter os créditos tributários constituídos após a sua morte – já era parte ilegítima na execução.

Com esse entendimento, a 22ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) manteve sentença que extinguiu uma execução fiscal por dívidas de IPTU movida pelo Município de Arroio dos Ratos, reconhecendo a falta de condições processuais e a ilegitimidade passiva do executado, como autoriza o artigo 485, incisos IV e VI, do Código de Processo Civil (CPC).

Segundo informações do processo, a execução fiscal foi ajuizada em fevereiro de 2010 para cobrança de débito de IPTU, cujas Certidões de Dívida Ativa (CDAs) contemplam dívidas atinentes ao exercício de 2005, 2006 e 2007.No curso da execução, foi constatado que o executado havia falecido em agosto de 1997.

Des. Francisco Moesch/Foto: Arquivo/TSE

Apelação do Município

Inconformado com a extinção da execução pela 1ª Vara Judicial da Comarca de São Jerônimo (RS), o Município interpôs apelação no TJRS. De relevante, afirmou que não tem condições de tomar conhecimento acerca do falecimento de seus contribuintes. Assim, alegou que nada impede que a execução possa ser redirecionada aos sucessores do falecido.

Por fim, a municipalidade destacou que não ocorreu propriamente a modificação do sujeito passivo da execução, o que afasta a incidência da Súmula 392 do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Decisão monocrática

Em decisão monocrática, o relator da apelação, desembargador Francisco José Moesch, confirmou os termos da sentença.

‘‘Veja-se que o crédito tributário fora constituído após o falecimento do executado, sendo, inclusive, nulas as Certidões de Dívida Ativa lavradas em 20/11/2009, uma vez que não poderia constituir débitos em seu nome após a morte’’, constatou. Por isso, o executado é parte ilegítima para constar no polo passivo da demanda.

Segundo o relator, a legitimidade das partes é uma das condições da ação (art. 485, inciso VI, do CPC), de modo que pode ser demandado apenas aquele que possa ser sujeito aos efeitos jurídico-processuais e materiais da sentença. Noutras palavras, se a ação já tinha sido ajuizada em face de parte ilegítima, o fisco, durante o curso da ação, não pode incluir sucessores no processo, alterando o polo passivo da execução.

Nesse caso – discorreu o relator –, a ação já deveria ter sido proposta, inicialmente, contra o espólio do contribuinte falecido ou diretamente contra os seus sucessores, pois esses são os responsáveis pelo tributo, como prevê o artigo 131, incisos II e III, do Código Tributário Nacional (CTN)

‘‘Além disso, é inviável, após a propositura da execução fiscal, a inclusão de sucessores na demanda, acarretando na substituição da Certidão de Dívida Ativa para alteração do sujeito passivo, sob pena de flagrante violação à Súmula 392 do STJ’’, fulminou o desembargador-relator.

Clique aqui para ler o acórdão de apelação

5000103-15.2010.8.21.0032 (São Jerônimo-RS)

 

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DESCONTOS INCONDICIONAIS
Bonificações em mercadorias não configuram receita passível de incidência de PIS e Cofins

Sede do TRF-4 em Porto Alegre
Foto: Diego Beck/ACS/TRF-4

Por Jomar Martins (jomar@painelderiscos.com.br)

Os descontos e as bonificações em mercadorias recebidas pelo contribuinte, por ocasião da aquisição de produtos, independentemente de destaque nas notas fiscais, não configuram receita da pessoa jurídica adquirente.

A decisão, por maioria de votos, é da 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), ao reconhecer o direito de um varejista de combustíveis do interior gaúcho de não recolher PIS e Cofins sobre os descontos e as bonificações recebidas de fornecedores na forma de mercadorias, com ou sem destaque nas notas fiscais.

Segundo o juiz federal convocado no colegiado, Andrei Pitten Velloso, voto vencedor neste julgamento, o desconto recebido configura ‘‘mero redutor do custo de aquisição das mercadorias’’, que não pode ser compreendido como receita tributável. Assim, não corresponde a efetivo ingresso financeiro positivo a justificar a incidência tributária.

‘‘Ainda que sejam estabelecidas pelo fornecedor condições para a obtenção do desconto ou das bonificações pelo adquirente, como a exposição dos produtos em locais privilegiados ou a realização de propagandas, não se pode considerar que os descontos correspondem de forma autônoma a uma remuneração pelos encargos’’, esclareceu.

Por outro lado, advertiu, as bonificações em dinheiro que o comprador recebe do fornecedor, ao contrário dos descontos e de bonificações em mercadorias, constituem receitas. Portanto, nesse caso, sujeitam-se à incidência da contribuição ao PIS e da Cofins.

Mandado de segurança

Dias & Costa Comercial de Combustíveis (Posto São Cristóvão), com sede em Alegrete (RS), impetrou mandado de segurança contra o delegado da Receita Federal do Brasil (RFB) em Santa Maria (RS), pedindo provimento judicial que a desobrigue de incluir as bonificações e descontos nas bases de cálculo das contribuições do PIS e da Cofins.

A empresa alegou que faz acordos comerciais com seus fornecedores a fim de obter abatimento no custo de aquisição dos produtos para, em vendas futuras, precificar reduzidamente suas mercadorias. Tal prática é ‘‘absolutamente comum’’ no seu nicho de mercado. Disse que o fisco utiliza uma base de cálculo diferente da registrada na contabilidade das empresas. Ou seja, a autoridade fazendária vê tais descontos como receita, objeto, portanto, de incidência de tais contribuições.

Notificado pela 2ª Vara Federal de Uruguaiana (RS), o delegado prestou informações. Argumentou que ‘‘não se caracterizam como descontos incondicionais aqueles concedidos apenas nos documentos de cobrança, sem o serem na nota fiscal de venda, não bastando que esta faça somente menção à possibilidade de serem eventualmente concedidos, conforme estabelecido genericamente em acordo comercial’’.

Observou que as bonificações concedidas que não estejam diretamente vinculadas a operações de vendas não se constituem em espécie do gênero descontos incondicionais. ‘‘Logo, não ensejam dedução da base de cálculo do PIS e da Cofins, pois não decorrem de uma pré-venda/venda dos bens e não dependem de evento posterior à emissão desse documento.’’

Sentença de improcedência

O juiz federal substituto Matheus Varoni Soper denegou a segurança, entendendo não restar configurado o direito líquido e certo invocado na petição inicial do mandado se segurança.

O julgador explicou que a documentação apresentada pela parte impetrante, para referendar a tese que sustenta na petição inicial, é ‘‘deveras escassa’’, consistindo apenas de um demonstrativo de créditos, no qual sequer há informação se as bonificações recebidas foram em dinheiro ou mercadorias ou produtos.

Noutras palavras, a autora da ação não trouxe ao processo as notas fiscais nem os contratos ou termos de ajuste entabulados com seus fornecedores, documentos indispensáveis para esclarecer se as tais bonificações foram condicionadas ou incondicionadas. Essas informações são imprescindíveis para o julgamento da causa, apontou.

‘‘Não se perca de vista que o mandado de segurança é o remédio constitucional vocacionado à proteção de direito líquido e certo, de natureza individual ou coletiva, não amparado por habeas corpus ou habeas data, lesado ou ameaçado de lesão, em decorrência de ato de autoridade de qualquer categoria ou funções que exerça (CRFB/88, art. 5º, inc. LXIXI e LXX e Lei n. 12.016/09, art. 1º)’’, anotou na sentença.

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MS 5003240-85.2023.4.04.7103 (Uruguaiana-RS)

 

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AMBIENTE HOSTIL
Cozinheira discriminada sexualmente pelos colegas será indenizada em R$ 20 mil pelos danos morais

Reprodução TRT-23

O artigo 932, inciso III, do Código Civil, diz que o empregador é responsável por atos praticados pelos seus empregados, serviçais e prepostos no exercício do trabalho que lhe competir ou em razão dele.

Assim, convencida de que uma cozinheira foi alvo continuado de ofensas e de condutas discriminatórias no trabalho, a 1ª Vara do Trabalho de Tangará da Serra (MT) condenou a Marfrig Global Foods e a P. G. R. São Paulo Refeições – que fornece refeições aos empregados do frigorífico – ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 20 mil.

O juiz do trabalho Mauro Vaz Curvo também fixou uma indenização adicional de R$ 8 mil em razão das condições degradantes de trabalho da cozinheira, vítima de discriminação pela sua orientação sexual.

Comentários ofensivos e preconceituosos

Segundo a sentença, ficou comprovado que a cozinheira era alvo frequente de comentários ofensivos e preconceituosos por parte de colegas. Entre as frases dirigidas a ela estavam: ‘‘você gosta de mulher porque nunca teve um homem de verdade’’ e ‘‘se apertar bem, dá para um macho’’. As chacotas incluíam também críticas ao seu peso e a outras características físicas.

Mesmo após pedir o fim das brincadeiras, os episódios continuaram, o que deixava a trabalhadora triste e abatida. Testemunhas confirmaram o ambiente hostil e a prática reiterada de discriminação.

‘‘A continuidade das ofensas, mesmo após os pedidos da trabalhadora para que cessassem, demonstra o descaso dos ofensores e reforça o caráter discriminatório das condutas relatadas’’, destacou o magistrado.

Juiz Mauro Curvo, da 1ª VT de Tangará da Serra
Foto: Divulgação/CUFA MT

Empregador tem de zelar por ambiente sadio

O juiz ressaltou que cabe ao empregador zelar pela integridade física e psicológica dos trabalhadores, cabendo a ele tomar todas as medidas que estão ao seu alcance para preservar a higidez do meio ambiente de trabalho, conforme previsto na Constituição Federal e na Convenção 155 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil.

Ele também mencionou ainda a Convenção 190 da OIT, que entrou em vigor no âmbito internacional em 2021, como o primeiro tratado internacional voltado à prevenção da violência e assédio no trabalho.

Embora ainda não tenha sido ratificada pelo Brasil, a convenção é citada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no ‘‘Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero’’, que reconhece o direito de todas as pessoas a um ambiente laboral livre de violência e assédio. O juiz concluiu, no entanto, que as empresas não tomaram medidas preventivas ou punitivas para coibir a discriminação

Alimentos em más condições

Além da discriminação, a cozinheira também enfrentava condições inadequadas de trabalho. Responsável por preparar refeições para cerca de 800 pessoas diariamente, ela lidava com alimentos em más condições, conforme confirmado por testemunhas. Os alimentos frequentemente apresentavam mau cheiro e coloração anormal, sendo descritos como ‘‘impróprios para consumo’’.

Os comentários depreciativos sobre a comida oferecida aos empregados eram quase diários, causando constrangimento à trabalhadora. Ela lamentava a situação e ressaltava que apenas seguia ordens da empresa.

‘‘Essa situação gerava constrangimento, pois a trabalhadora, apesar de seguir as determinações impostas pela empresa, enfrentava diretamente o descontentamento e as reclamações, sentindo-se desvalorizada e humilhada’’, frisou o juiz.

De acordo com o magistrado, a exposição constante a críticas ofensivas e a ausência de condições dignas de trabalho feriram a dignidade da cozinheira. Por esse motivo, foi determinada uma indenização adicional de R$ 8 mil pelas condições degradantes a que a trabalhadora tinha que se sujeitar.

Rescisão indireta

A sentença também declarou nulo o pedido de demissão feito pela trabalhadora, convertendo-o em rescisão indireta do contrato de trabalho, prevista no artigo 483 da CLT. A rescisão indireta ocorre quando o empregador comete falta grave que inviabiliza a continuidade do vínculo empregatício.

No entendimento do juiz, o assédio moral e a discriminação por orientação sexual configuraram grave descumprimento das obrigações do empregador, violando direitos fundamentais da empregada, como o respeito à dignidade e a garantia de um ambiente de trabalho saudável e livre de discriminação.

‘‘Diante da gravidade dos fatos relacionados à discriminação por orientação sexual, torna-se inviável exigir que a reclamante permanecesse no emprego como condição para pleitear em juízo a rescisão indireta. Tal exigência configuraria a continuidade da exposição a um ambiente de trabalho hostil, comprometendo sua dignidade e intensificando os prejuízos já sofridos’’, destacou o magistrado.

Como consequência, as empresas terão de pagar as verbas rescisórias, incluindo aviso prévio, 13º salário, férias e FGTS com multa de 40%. A trabalhadora também terá direito a receber as guias para saque do FGTS e para a habilitação no seguro-desemprego.

Por fim, o juiz determinou o envio de ofícios ao Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Estadual (MPMT) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) após constatar irregularidades trabalhistas e suspeita de crime de homofobia contra a trabalhadora.

Da sentença, cabe recurso ordinário ao Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região (TRT-23, Mato Grosso).  Redação Painel de Riscos com informações de Aline Cubas, da Secretaria de Comunicação Social do TRT-23. 

ATOrd 0000574-63.2024.5.23.0051 (Tangará da Serra-MT)

SEQUELAS PERMANENTES
Mecânico que feriu o dedo na prensa hidráulica vai ganhar pensão mensal e danos morais

Comprovado que o acidente de trabalho foi provocado pela falta de dispositivos de segurança necessários à prevenção de riscos inerentes à máquina instalada no estabelecimento industrial, cabe à empregadora arcar com a indenização dos danos materiais e morais causados ao empregado.

A decisão é da 2ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região (TRT-18, Goiás), ao elevar de R$ 3 mil para R$ 10 mil o valor da indenização por danos morais a ser paga pela Crown Embalagens Metálicas da Amazônia a um mecânico de produção vítima de acidente de trabalho. O valor reparatório é 3,6 vezes o salário-base de R$ 2.715,08 recebido pelo reclamante em outubro de 2022, mês anterior ao infortúnio.

Ao ajudar o seu chefe imediato no reparo do eixo de um dos equipamentos da fábrica, o calço da prensa hidráulica caiu sobre sua mão direita, fraturando a falange distal do dedo polegar. O acidente acarretou a necessidade de tratamento cirúrgico e fisioterápico e o afastamento do trabalho.

Além de aumentar o quantum reparatório de dano moral, o colegiado deferiu também pensionamento mensal ao trabalhador, por entender que houve negligência por parte da empregadora no cumprimento das normas de segurança do trabalho.

Falta de treinamento adequado

Na peça inicial da ação reclamatória, o reclamante alegou que o acidente foi causado pela falta de treinamento adequado dos empregados, ‘‘já que foi o colega de trabalho do obreiro que deixou a peça de 35kg cair sob sua mão’’.

Em consequência do acidente, o trabalhador teve de passar por cirurgia e fisioterapia, ficando afastado do trabalho por mais de 40 dias. Por causa do ocorrido, o mecânico teve limitação permanente do movimento de flexão-extensão do polegar direito, confirmada por perícia.

A sequela funcional foi estimada em 25% da capacidade do dedo atingido. A falta de treinamento adequado e a ausência de dispositivos de segurança na máquina foram apontadas pelo trabalhador como causas do acidente.

Sentença de procedência

Ao julgar o caso, o juízo da 1ª Vara do Trabalho de Rio Verde (GO)condenou a empresa a pagar indenização por danos morais no valor de R$ 3 mil. O mecânico de produção recorreu ao TRT-18, pedindo o aumento desse valor para R$ 20 mil.

Des. Platon Teixeira de Azevedo Filho foi o relator
Foto: Comunicação Social/TRT-18

A empresa também recorreu, pedindo a redução das indenizações por danos materiais e morais e insistiu, ainda, na responsabilidade exclusiva ou concorrente do trabalhador no acidente, alegando que o uso do equipamento não exigia treinamento específico.

O desembargador Platon Teixeira de Azevedo Filho atuou como relator dos recursos na 2ª Turma. Após analisar as provas, ele concluiu que o mecânico estava executando tarefa estranha às suas atividades contratuais no momento do acidente, para a qual não havia recebido treinamento, e que a prensa hidráulica não tinha dispositivos de segurança que pudessem impedir a queda de peças.

Dever legal de preservar a segurança laboral

Para Platon Filho, a empresa tinha o dever legal de tomar as medidas necessárias para preservar a segurança do ambiente laboral e se descuidou de tal encargo, tanto ao efetuar a escolha do modelo de prensa instalada em sua fábrica quanto ao não proceder à sua imediata adequação.

Na análise do desembargador-relator, isso evidencia a culpa da empresa no acidente, ressaltando que ‘‘a circunstância de terem sido tomadas medidas para promover a segurança da operação da máquina somente depois da ocorrência do infortúnio constitui a prova cabal da sua imprevidência’’, justificou.

O relator ainda deferiu o pagamento de pensão ao trabalhador, em parcela única, equivalente a 4,5% da remuneração recebida à época do acidente, incluindo todas as parcelas de natureza salarial habitualmente recebidas, com o proporcional correspondente do 13º salário e do adicional de férias.

O valor da pensão deverá ser calculado a partir do fim do benefício por incapacidade temporária até a data em que o trabalhador deverá completar 78,3 anos. Ao cálculo também deverá ser aplicado um deságio de 30%, conforme a média adotada pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) em casos similares, para evitar enriquecimento sem causa resultante do recebimento, de uma só vez, da pensão. Redação Painel de Riscos com informações da Coordenadoria de Comunicação Social do TRT-18.

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ATOrd-0010790-05.2023.5.18.0101 (Rio Verde-GO)

ARTIGO ESPECIAL
Ódio aos judeus requentado: o boicote à excelência judaica

Nazistas intimidando judeus em Berlim
Foto Divulgação/Gatestone Institute

Por Nils A. Haug

Tradução: Joseph Skilnik

Os chamamentos no Ocidente para boicotar israelenses são sistêmicos e indicam uma agenda agressiva generalizada ao redor do mundo para apagar a influência judaica na academia, ciência, tecnologia e cultura. A verdadeira explicação para essas iniciativas de boicote, ao que tudo indica, é o ódio aos judeus profundamente arraigado em várias sociedades ocidentais.

Em novembro de 2024, um tanto furtivamente, Ayelet Shaked, ex-ministra da Justiça de Israel, por mais estranho que possa parecer, teve a permissão negada de entrar na Austrália para participar de uma conferência para debater sobre os atuais acontecimentos no Oriente Médio. A conferência foi organizada pelo Conselho para Assuntos Judaicos e Israelenses da Austrália (AIJAC), programada para ser um evento da comunidade judaica.

Colin Rubenstein, diretor executivo da AIJAC, rechaçou a negativa de visto, realizada sem nenhuma justificativa divulgada na época, pelo ministro australiano de assuntos internos, Tony Burke. Na opinião de Rubenstein, a decisão de recusar um visto a Shaked, com base no argumento de que ela iria difamar os australianos e incitar a discórdia na comunidade, é um ato vergonhoso de hostilidade em relação a uma democracia aliada.

Recusar a entrada em um país ocidental de um ex-ministro israelense é simplesmente mais um incidente de um movimento global de exclusão de personalidades judaico/israelenses das plataformas digitais. Em janeiro de 2022, cerca de 20 eventos culturais foram cancelados em protesto contra o patrocínio da embaixada de Israel na Austrália de uma apresentação da Sydney Dance Company, programada para ser apresentada no festival cultural de Sydney. O cancelamento se deu com base em um trabalho da Batsheva Dance Company, de Tel Aviv, e do coreógrafo israelense Ohad Naharin, mas a difamação ocorreu devido às conexões israelenses/judaicas.

Um relatório de dezembro de 2023, do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Civil de Israel, alertou que ‘‘estão ocorrendo boicotes não oficiais no mundo acadêmico do Ocidente’’. As consequências para Israel podem ser sérias, segundo o relatório, já que essas ‘‘práticas discriminatórias podem prejudicar a economia, que depende da vitalidade científica de país de startups’’.

O relatório ainda acrescenta:

‘‘Desde 7 de outubro, começou uma espécie de boicote às escondidas aos pesquisadores israelenses, jamais visto antes. Esse boicote se reflete no cancelamento de convites para conferências conjuntas, na rejeição de artigos para publicação, na rejeição de bolsas a pesquisadores israelenses e muito mais’’.

O relatório menciona ações realizadas anteriormente, no caso em março de 2022, pela Associação de Estudos do Oriente Médio (MESA), com sede nos Estados Unidos, nas quais um boicote acadêmico contra instituições israelenses, instigado pelo movimento BDS, foi aprovado por uma grande maioria dos membros da MESA, mas condenado pela Agência de Engajamento Acadêmico, grupo encarregado de defender os direitos dos cidadãos.

Em resposta à proibição, a Associação para o Estudo do Oriente Médio e da África (ASMEA), rival da MESA, fundada pelos falecidos professores Bernard Lewis e Fouad Ajami, ‘‘apontou para o padrão de dois pesos e duas medidas na resolução da MESA e o dano que causará à liberdade acadêmica’’, segundo o JNS.

O presidente da ASMEA, professor Norman Stillman, escreveu em um comunicado:

‘‘Ao aprovar esta resolução para colocar na lista negra e boicotar instituições israelenses de ensino superior, os membros da MESA abandonaram qualquer pretexto de ser uma associação acadêmica em favor de uma organização com uma singular causa política: deslegitimar Israel. O abandono pela MESA dos princípios básicos de integridade acadêmica e liberdade, ou seja, a livre expressão de ideias, está profundamente enraizado em velhos preconceitos e parcialidades’’.

Embora todas as tentativas de deslegitimar a excelência judaica no cenário mundial devam ser condenadas de imediato, o marco da hipocrisia dos atores antissemitas e antissionistas ocidentais foi destacado pelos eventos em torno da publicação em 1988 do livro Os Versos Satânicos, de Salman Rushdie. Num momento de imensa pressão de muçulmanos ofendidos para proibir o livro, as nações ocidentais não estavam inclinadas a bani-lo. Eles acertadamente afirmaram que a liberdade acadêmica fazia parte de sua tradição constitucional.

A então primeira-ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher, justificou a publicação do polêmico trabalho pelo Ocidente. ‘‘A liberdade de expressão’’, salientou ela, ‘‘era um princípio de grande importância’’ e o assunto envolvia ‘‘soberania nacional e direito internacional’’, nenhuma das quais proibia a impressão do texto.

Comparada à postura de princípio dos líderes ocidentais de defender a liberdade acadêmica e a liberdade de expressão na época do controverso livro de Rushdie, em se tratando de aplicar os tais direitos a escritores, acadêmicos, empreendedores, intelectuais, especialistas, cientistas e afins judeus/israelenses, sem mais nem menos, de uma hora para a outra, os princípios constitucionais tão badalados estão sendo ignorados, até por instituições acadêmicas de prestígio como a Universidade da Pensilvânia.

Em setembro de 2023, e em nome da liberdade acadêmica, a Universidade da Pensilvânia sediou um ‘‘Festival de Escritores de Literatura Palestina’’ em seu campus na Filadélfia, apresentando ‘‘alguns dos mais execráveis antissemitas do planeta’’. Os palestrantes escolhidos sequer eram reconhecidos como ‘‘escritores, acadêmicos ou especialistas literários’’. O festival foi considerado por um crítico como um ‘‘festival de ódio antissemita pró-BDS’’, que defendia a destruição do estado judeu. Sem causar espécie, não foi aceita a participação de judeus/israelenses.

No mesmo estilo, o ‘‘Festival de Literatura da Palestina’’ (Palfest), autodenominado de ‘‘iniciativa cultural’’, ocorrido em outubro de 2024, ‘‘anunciou que mais de mil escritores assinaram um boicote literário a Israel’’, segundo um relatório do Wall Street Journal.

Em uma carta aberta, esses escritores disseram que eles não permitirão que seus livros sejam traduzidos para o hebraico, conceder entrevistas a revistas e jornais israelenses, participar de conferências ou fazer palestras em Israel ou trabalhar com editoras e agentes literários israelenses. A Palfest, orgulhosamente, descreve sua própria atitude como ‘‘o maior boicote cultural contra instituições israelenses da História’’.

Entre os signatários da carta de boicote se encontram vencedores do Prêmio Pulitzer, ganhadores do Prêmio Nobel, MacArthur Fellows e assim por diante. Na sequência, mais 5 mil escritores assinaram o boicote.

Esses não são incidentes isolados. São sistêmicos e indicam uma agenda agressiva generalizada ao redor do mundo para apagar a influência judaica na academia, ciência, tecnologia e cultura. A estratégia dos inimigos de Israel e dos judeus é uma reminiscência dos objetivos do Partido Comunista Chinês, digamos, sobre Taiwan: isolar completamente Taiwan dos assuntos mundiais, em todas as áreas, política, financeira, econômica e cultural. Neste caso, teria dado certo não fosse pelo apoio a Taiwan pelos EUA e outros aliados. Os Estados Unidos e o Ocidente também deveriam apoiar Israel nesse caso.

A arrogância por trás da intenção de cancelar, desmantelar, privar e negar a profunda sabedoria, brilho e excelência de homens e mulheres excepcionais que contribuíram tanto para o ethos, a cultura e a grandeza da civilização ocidental é difícil de compreender. Dos ganhadores do Prêmio Nobel, 22% são judeus (de 0,2% da população mundial), entre eles Albert Einstein, Niels Bohr (cuja mãe era judia, ficando, portanto, na corda bamba durante a era nazista), Eli Wiesel e Milton Friedman. A esses notáveis também seria negada uma plataforma caso aparecessem no cenário mundial de hoje.

A verdadeira explicação, ao que tudo indica, é o ódio aos judeus profundamente arraigado em várias sociedades ocidentais. Isso ficou escondido por anos a fio numa fachada de tolerância e sutilezas sociais, mas agora, nas palavras de Steven Spielberg, o antissemitismo ‘‘não está mais à espreita, e sim na crista da onda, orgulhoso de si’’, tal como na Alemanha na década de 1930.

Ari Ingel, diretor executivo da Comunidade Criativa para a Paz, disse em resposta à carta de boicote de outubro:

‘‘Esses chamamentos ao boicote, agora liderados pelos próprios membros da comunidade literária, são uma reminiscência do boicote de 1933 aos autores judeus, quando os antissemitas queimaram mais de 25.000 livros. As obras de autores judeus como Albert Einstein e Sigmund Freud, juntamente com obras dos americanos Ernest Hemingway e Helen Keller, também foram queimadas. É para onde as coisas estão indo mais uma vez’’.

As palavras do Conde Stanislas de Claremont-Tonnerre, na época da Revolução Francesa, tentam analisar a animosidade em relação ao povo judeu: ‘‘aos judeus deve ser negado tudo como nação, mas concedido tudo individualmente… A existência de uma nação dentro de uma nação é inaceitável para o nosso país’’.

Stanislas, portanto, condenou a sua existência como nação, soberbamente refutada em 1948.

O jornalista Daniel Greenfield observa que, na visão dos ativistas ocidentais, ‘‘o antissemitismo sempre teve como premissa redefinir a existência judaica como antinatural e artificial. Os judeus já eram condenados como colonizadores desde a época do Faraó… Os judeus, sendo semitas, não pertencem à Europa. Os judeus, sendo europeus, não pertencem a Israel. Os judeus, sendo sionistas, não pertencem às instituições progressistas como Harvard ou Columbia. E os judeus, sendo ocupadores, não pertencem a Londres’’.

Ele continua, ‘‘não se trata de Israel’’, e sim ‘‘tem tudo a ver com os judeus’’. Sem rodeios, o ostracismo cultural e acadêmico é simplesmente o ódio aos judeus.

Ao mesmo tempo, essas atitudes também refletem a agonia dessa malevolente concepção, que favorece o grupo sobre o indivíduo, conhecido como política de identidade. Ela causou vastas cisões danosas na arena pública e agora se manifesta em um gritante preconceito irracional e raivoso sob o disfarce de uma reivindicação tendenciosa de justiça social contra uma nação, uma religião, um grupo étnico de estudiosos, intelectuais, cientistas e gênios criativos amantes da paz que valorizam a liberdade, a moralidade, a inovação e a excelência.

A nação judaica tem um chamamento divino para ‘‘trazer luz’’ ao mundo com sabedoria, verdade e justiça equânime perante a lei. Esses valores começaram com os códigos mosaicos, que introduziram rubricas definitivas de virtude. ‘‘O povo judeu trouxe a moralidade ao mundo há milhares de anos’’, comentou Safra Catz, CEO da Oracle, ‘‘e algumas pessoas ainda estão malucas por causa disso’’.

Neste momento de turbulência internacional, o mundo precisa da expertise e sabedoria das melhores mentes e grandes estadistas, incluindo as dos judeus. Se essa excelência geracional milenar for negada ao Ocidente neste momento sombrio de pós-verdade, pós-moralidade e barbárie em expansão, especialmente no Ocidente, será em detrimento da civilização e da sociedade ocidentais.

Nils A. Haug é advogado, escritor, especialista em teoria política e ética e articulista do Gatestone Institute – centro de estudos e conselho de política internacional dedicados a educar o público sobre temáticas que os meios de comunicação de massa deixam de promover