Por Félix Soibelman
Reprodução Revista Oeste/Cartunista Schmock
O presidente da OAB criticou Moraes diante do fato de atuar como juiz em processo no qual é vítima.
Diante da crítica Moraes voltou atrás para julgar-se impedido, mas absurdamente manteve a prisão que determinou de supostos autores de ameaças contra si e sua família.
Para mim existe tanto o impedimento quanto a suspeição. Cuida-se de aplicação do art. 254 do CPP combinado com inciso IV do art.144 e inciso IV do art. 145 do NCPC, valendo reproduzir estes últimos:
“Art. 144. Há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo:
IV – quando for parte no processo ele próprio, seu cônjuge ou companheiro, ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive;”
“Art. 145. Há suspeição do juiz:
IV – interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes”
Ora, não pode haver maior interesse do juiz num processo do que aquele em que ele mesmo é parte, com supressão total do chamado “processo acusatório”, no qual se instaura o tripé formado por réu, autor e juiz, para diferenciar-se do “processo inquisitório”, onde fundiam-se os papéis do acusador e do juiz. No presente caso é pior ainda, pois, fundem-se vítima, acusador e juiz, como bem observou o desembargador do TRF-RJ William Douglas.
Em todos os processos, aliás, no qual há o “contempt of court”, como ataque à Corte, o STF não poderia fazer da jurisdição um ato de defesa, transtornando os rumos do direito a serviço da própria Instituição. Deveria, no caso, convocar juízes do STJ.
Não obstante, a coisa torna-se mais deformada ainda na medida em que os Ministros mesmos declararam que eles são, na forma pessoal, extensão da Corte para aplicação transgênica e adulterina do art. 43 de seu regimento interno. Logo, agem como seres ontologicamente institucionais em causa própria mediante a jurisdição, fundindo-se o ser humano e a instituição numa espécie de ego-institucionalidade.
A adoção, pelos Ministros, de uma fórmula maluca pela qual remetem ao L´Etat c´est moi de Luiz XIV, ou seja, dizendo que eles, Ministros, são extensões do STF, confundindo-se com a instituição do mesmo modo que o rei francês dizia que o Estado era ele mesmo, tem consequências lógicas desastrosas para os fins persecutórios que pretendem, como veremos a seguir.
Cabe aqui invocar o princípio lógico da identidade dos indiscerníveis, que promana da lavra de Leibniz, não sem antes falar dos princípios da reflexividade e da simetria.
O princípio de reflexividade diz que toda coisa está em relação consigo mesma. Logo, se x=x, x está em relação de identidade consigo mesmo, o que se escreve como x=x, Rxx.
Poderíamos dizer, adotando o princípio lógico da simetria, que se os ministros são extensão do STF, então o STF é extensão deles, o que se escreve como m->stf, stf->m ou R stf m -> R m stf, ou seja, se existe uma relação ( R ) do STF com os Ministros, então existe essa mesma relação dos Ministros com o STF.
Porém, prefiro adotar uma relação de identidade, pelo sinal de = (igualdade), ficando bem entendido que os que supunhamos como membros do órgão denominado STF, a saber, seus Ministros, não são, pela dicção deles mesmos, apenas membros do conjunto STF, mas integram o próprio conjunto transmitindo-se a eles a propriedade deste, como continente, de forma que, logo, podemos dizer que STF = Ministros (stf=m).
Isto posto, os Ministros são inseridos na mesma relação de identidade do princípio da reflexividade, tendo com o STF a mesma relação identitária que tem este consigo mesmo. É o propósito estrábico dos Ministros ao dizerem que ataques a eles como pessoas são como se fossem crimes cometidos nas dependências do STF, sendo um “case institucional”.
Logo, aplica-se aos Ministros o princípio da identidade dos indiscerníveis, que assim se escreve:
∀x ∀y (x=y → (Φx → Φy), o que se lê como para todo x e todo y, se x é igual a y, toda e qualquer relação ou propriedade que tenha x as terá y em toda e qualquer hipótese.
In casu, estamos dizendo que toda e qualquer propriedade ou relação que se aplica ao STF será aplicada aos Ministros: ∀stf ∀m (stf=m → (Φstf → Φm)).
Quais são as consequências? Simples. Tomemos como princípio da vedação à suspeição e impedimento que se caracteriza quando o órgão judicante julgar causas em que ele mesmo seja parte. Repito, deveria haver pelo menos um corpo de juízes alheios ao STF para julgar as causas em que o tribunal é parte.
Muito bem, escrevamos a suspeição e o impedimento como “stf ˜J Φ ⊃ stf”, a saber, o STF não pode julgar qualquer causa que contenha o STF como parte. Ora, se os Ministros do STF são idênticos ao STF, esta relação se aplica também a eles, e teremos “∀stf ∀m (stf=m → stf ˜J (Φ ⊃ stf) → stf ˜(JΦ ⊃ m))” podendo-se permutar todas as posições do STF e Ministros dada a sua identidade:
1) ∀stf ∀m (stf=m → m ˜J ((Φ ⊃ stf ) → m ˜J (Φ ⊃ m”))
2) ∀stf ∀m (stf=m → stf ˜J (Φ ⊃ stf ) → stf ˜J (Φ ⊃ stf )”
e assim por diante.
Logo, se antes apenas o próprio juiz não poderia participar de julgamento onde seja parte, pela ideia de identidade entre o tribunal e os ministros que eles mesmos cunharam para possibilitar este inquérito anômico e disparatado, atraindo para o STF todo âmbito mundial, agora o STF não pode julgar sequer um caso em que seja parte um dos ministros e nem os ministros podem julgar um caso em que seja parte o STF, diante da identidade dos indiscerníveis.
Neste sentido, o cordão de transgressões do STF ao longo dos 4 anos do governo de Bolsonaro e toda essa posteriori que se protrai indefinidamente ingressou na vertigem do descontrole onde Moraes desembestou sem nenhum freio mais, invertendo a vedação ao julgamento parcial para saltar do “não pode nada’’ ao “tudo pode“, escandalizando toda e qualquer regra processual que espelhe a ampla defesa e, principalmente, o devido processo legal.
A OAB agora coloca “fogo no parquinho” onde brincaram juntos com os signatários da carta da USP e toda a imprensa que colaborou na criação deste monstro ego-institucional de todos os Ministros. O que ou quem o deterá? Se Moraes chega a ponto de transpassar uma fronteira tão basilar com um simples despacho no qual nem faz caso ao processo acusatório, a garantia do juiz imparcial e o devido processo legal, é porque todas as cancelas já estão rompidas.
A “Ditadura do judiciário” não é a pior porque não se tenha ninguém a recorrer; ora, em nenhuma ditadura se tem a quem recorrer, pois se houvesse não seria ditadura; a ditadura do judiciário é a pior porque ninguém sabe qual é a regra a ser seguida; ao menos com a ditadura dos militares sabia-se o que se podia falar ou não, fazer ou não; com estes Ministros instaurou-se o salve-se quem puder da hermenêutica desvairada, pela qual qualquer legalidade é relativizada de modo que, por exemplo, se você pensa que andar de tênis na rua não é ato ilegal, amanhã poderá ser surpreendido com uma decisão de Moraes pela qual isso será considerado ato executório ou preparatório de atos antidemocráticos porque o tênis serve para andar até uma manifestação contra o STF, anarquisando assim a teoria dos antecedentes causais para um sentido contrário ao que sempre se aplicou.
Bem-vindo à terra Marlboro, ou à sopa primordial jurídica, pela qual tudo volta a estar por fazer-se abolindo-se todo o edifício conceitual jurídico precedente para colocar nele o que suceda por mãos da loucura vestindo a toga.
Félix Soibelman é advogado no Rio de Janeiro