TRATAMENTO ESPECIAL
Desapropriação, produtividade e função social face ao julgamento da ADI 3.865/DF

Por Rubens Antonangelo

Ministro Edson Fachin foi o relator
Foto: Carlos Moura/SCO/STF

O Supremo Tribunal Federal (STF), em voto da relatoria do ministro Edson Fachin, julgou improcedente a ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 3.865/DF, ajuizada pela CNA (Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA Brasil), que questionava expressões contidas nos artigos 6º e 9º da Lei 8.629/93, que definem a propriedade produtiva e o cumprimento da função social.

Ficou entendido que o cumprimento da função social pela propriedade é essencial, aplicando-se inclusive em relação às produtivas, que, se não cumpridoras deste requisito, ficam passíveis de desapropriação para reforma agrária.

Não obstante o resultado do julgamento, tem-se que o artigo 185, inciso II, e seu parágrafo único, da Constituição, deu tratamento especial à propriedade produtiva.

O dispositivo declara ser insuscetível de desapropriação para reforma agrária o imóvel produtivo. Por sua vez, seu parágrafo único, estabelece: ‘‘que a lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social’’.

O texto constitucional demonstra que o objetivo da reforma agrária não é a simples distribuição de terras, mas o aumento da produção, daí o tratamento especial à propriedade produtiva.

Sendo assim, o objetivo do parágrafo único do artigo 185 da Constituição, como doutrina Celso Ribeiro Bastos, em Comentários à Constituição do Brasil, 7º volume, pág. 282, 1990, Editora Saraiva, é no sentido de que: ‘‘(…) o preceito sob comento manda conferir à propriedade produtiva um tratamento especial que só pode consistir num regime jurídico mais benéfico do que o previsto para as propriedades tidas por não satisfatoriamente produtivas’’.

Assim, em se tratando de propriedade produtiva não cumpridora da função social, a legislação haveria de lhe proporcionar a oportunidade de se adequar ao cumprimento desse requisito antes de promover sua desapropriação para reforma agrária, e não colocá-la como simultâneo.

Se a pretensão do constituinte fosse a desapropriação também do imóvel produtivo que não cumprisse sua função social, não haveria necessidade do artigo 185, inciso II e seu parágrafo único, pois o artigo 184 dá essa autorização.

Andou bem o STF ao dar solução à questão. Todavia, aquela adotada não parece estar em consonância com o disciplinado na Constituição em relação ao tema.

Rubens Antonangelo é sócio da área cível e agrária no escritório Diamantino Advogados Associados

Clique aqui para ler o voto do ministro Fachin

RECUPERAÇÃO JUDICIAL
A assembleia geral de credores e a flexibilização do prazo para encerramento

Por Camila Cartagena Espelocin

A Assembleia Geral de Credores, órgão [1] da recuperação judicial e da falência com previsão legal expressa na Lei 11.101/2005 [2] (LRF), tem como principal função reunir os credores sujeitos, com o fim de expressar seus interesses particulares e decidir sobre questões relevantes ao andamento do procedimento sobre as quais a LRF exija sua manifestação.

As atribuições conferidas ao conclave encontram disciplina no artigo 35, incisos I e II de referida norma, sendo que no processo de recuperação judicial, seu principal objetivo é a votação da aprovação, ou não, do Plano de Recuperação Judicial.

A Lei 14.112/2020 alterou diversos aspectos da Lei 11.105/2005, dentre as quais se destaca a previsão expressa de que, uma vez instalada, a assembleia geral de credores, convocada com o fim de votação do plano, deverá ser encerrada no prazo de 90 (noventa) dias [3].

Notadamente, ao impor um limite para conclusão da assembleia geral de credores, pretendeu o legislador dar celeridade ao procedimento [4], evitando sucessivos e injustificados adiamentos que poderiam levar à proposital procrastinação do processo concursal sem que houvesse deliberação acerca do plano.

O novo § 9º do artigo 56 da LRF diz que “Na hipótese de suspensão da assembleia geral de credores convocada para fins de votação do plano de recuperação judicial, a assembleia deverá ser encerrada no prazo de até 90 (noventa) dias, contado da data de sua instalação.”

Em uma primeira leitura, parece haver a possibilidade de suspensão da assembleia para além dos 90 (dias), isso porque, em que pese o verbo emanar uma ordem (“deverá”), o procedimento não indica quais seriam as consequências para o desatendimento desse prazo. Esse tipo de dispositivo, considerado uma norma imperfeita, deve ser interpretado em consonância com os demais princípios da LRF (i.e preservação da empresa e soberania das decisões assembleares).

Importante destacar que ainda não há jurisprudência consolidada acerca do tema. Apesar disso, a exemplo do que tem se visto nos casos de prorrogação do período de blindagem conhecido como stay period – em que a jurisprudência tem entendido ser cabível sucessivas   prorrogações desde que a recuperanda não tenha contribuído para o retardamento da tramitação do processo –, a tendência é que a norma também seja flexibilizada a fim de que se permita, com base no princípio da preservação da empresa e do melhor interesse dos credores, que a suspensões da assembleia geral de credores ultrapassem o limite de 90 (noventa) dias.

Na doutrina, encontramos algumas interpretações normativas que buscam suprir a omissão legislativa ao prever quais seriam as consequências práticas do não encerramento da assembleia no prazo previsto em lei. Para tanto vale destacar as que referem que: (i) o prazo seria impróprio, portanto, desprovido de sanção [5]; (ii) a necessidade de encerramento do conclave e designação de nova data sujeito a nova verificação de quórum [6]; e por fim (iii) a necessidade de decretação da falência [7].

Nesse contexto, na prática, partindo da premissa de que as recuperandas apresentem justificativas plausíveis para suspensão, bem como tendo em vista a autonomia da assembleia geral de credores, onde os interesses dos credores devem ser respeitados e tutelados, alguns juízos já têm admitido a possibilidade de mitigação da previsão contida no § 9º do artigo 56 da LRF, ratificando a possibilidade de colocar-se em votação a suspensão da solenidade por período superior à 90 (noventa) dias, de forma que caberá aos credores tal decisão [8].

A título exemplificativo, em recente decisão proferida na recuperação judicial da Aelbra Educação Superior – Graduação e Pós-Graduação S.A., foi autorizada a flexibilização desse prazo, considerando que a recente alteração da Lei comporta interpretação, bem como que, no caso, excepcional prorrogação do prazo não se mostraria prejudicial aos envolvidos, muito antes pelo contrário, já que a votação de plano ainda não maduro seria potencialmente ensejar prejuízo aos destinatários [9].
Em que pese seja compreensível a preocupação do legislador com a duração razoável do processo, na prática o atraso para conclusão das assembleias gerais de credores se deve às dificuldades estruturais do próprio procedimento que não se resolvem com a fixação de prazos. Além disso, cabe ao credor decidir pela votação do plano ou a suspensão da assembleia a fim de que questões sejam sanadas e o plano esteja maduro para ser submetido à apreciação dos credores.

A vedação de uma suspensão da assembleia geral de credores por prazo superior a 90 (noventa) dias poderá trazer potenciais prejuízos aos envolvidos, credores e devedores. Especialmente se considerarmos que o ambiente assemblear é o responsável por intensificar as negociações e ajustar procedimentos complexos como o financiamento da devedora (DIP financing), alienação de ativos (distressed assets), discriminação e venda de unidades produtivas da devedora (M&A), ajustes de propostas base/vinculantes (stalking horse) e tantos outros exemplos, é que se justifica a dilação desse prazo.

Na maioria dos casos, esses procedimentos são complexos e muitas vezes dependem de articulações com um número expressivo de credores, análise em comitês internos, circulação de informações aos investidores (em geral por contrato de confidencialidade – NDA), cujo prazo para conclusão não depende da devedora, pelo contrário, é o credor que dita o ritmo da evolução da proposta, contrapropostas ou nova suspensão.

Ou seja, sob pena de afronta aos princípios da preservação da empresa e da soberania da assembleia de credores, é razoável que se afaste a interpretação isolada do artigo 56, § 9º da Lei 11.101/2005, e se autorizem tantas suspensões quanto forem necessárias a fim de que não seja posto em votação plano imaturo e, portanto, incapaz de atender às necessidades de devedores e credores, e propiciada a promoção da preservação da empresa e sua função social.

É nesse sentido que se espera que a jurisprudência seja consolidada.

[1] A ideia de órgão está vinculada à de interesse comum ou coletivo. Cf.: AZEVEDO, Erasmo Valadão. FRANÇA, Novaes. ADAMEK, Marcelo Vieira Von. Assembleia Geral de Credores. São Paulo: Quartier Latin, 2022.p. 96.

[2] A Assembleia Geral de Credores está disciplinada no artigo 35 e seguintes da Lei 11.101/2005.

[3] Artigo 56. § 9º: Na hipótese de suspensão da assembleia-geral de credores convocada para fins de votação do plano de recuperação judicial, a assembleia deverá ser encerrada no prazo de até 90 (noventa) dias, contado da data de sua instalação.

[4] Em estudo realizado pela Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), constatou-se que o número de sessões assembleares até a votação do plano é o principal fator para dilatar o prazo até a votação.

Disponível em: https://abjur.github.io/obsFase2/relatorio/obs_recuperacoes_abj.pdf

[5] LOLLATO, Felipe, FRANÇA, Guilherme. Assembleia geral de credores: novidades e pontos controvertidos”. Artigo publicado no livro “Reforma da Lei de Recuperação e Falência (Lei 14.112/20)”. Editora IASP, 2021.p.484-486.

[6] COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 15. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p.235.

[7] AZEVEDO, Erasmo Valadão. FRANÇA, Novaes. ADAMEK, Marcelo Vieira Von. Assembleia Geral de Credores. São Paulo: Quartier Latin, 2022.p. 98.

[8] Sobre o Quórum Geral de Deliberação dispõe o artigo 42, da Lei 11.101/2005 que “Considerar-se-á aprovada a proposta que obtiver votos favoráveis de credores que representem mais da metade do valor total dos créditos presentes à assembléia-geral, exceto nas deliberações sobre o plano de recuperação judicial nos termos da alínea a do inciso I do caput do art. 35 desta Lei, a composição do Comitê de Credores ou forma alternativa de realização do ativo nos termos do art. 145 desta Lei.”

[9] Processo de Recuperação Judicial n. 5000461-37.2019.8.21.0008, em tramitação perante o 1º Juizado da 4 Vara Cível do Foro da Comarca de Canoas – RS.

Camila Cartagena Espelocin é advogada especializada em Direito de Negócios, atuando na área de reestruturação de empresas do escritório Cesar Peres Dullac Müller (CPDM)

PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO
Holding familiar e desdobramentos tributários

Por Júlia Farina Dalpiaz

holding patrimonial familiar é uma ferramenta de planejamento sucessório. É um mecanismo jurídico que permite a organização da sucessão patrimonial de forma mais efetiva e vantajosa, em vida, visto que auxilia a evitar grandes perdas no patrimônio, assim como a morosidade e o desgaste de um processo de inventário.

Este modelo de holding consiste em uma sociedade empresarial que reúne, em seu capital social integralizado, o patrimônio de uma pessoa física ou de um casal (a depender do regime de bens), organizando este patrimônio de modo mais racional, econômico e seguro.

Na prática, em vez das pessoas físicas manterem os bens em seus nomes, elas os possuem através de uma pessoa jurídica – a controladora patrimonial. Com isso, há o compartilhamento dos bens efetivos, o que não é possível fazer com o testamento, cujos efeitos somente passam a se produzir após o falecimento do testador. Ao criar a holding familiar, a transferência dos bens ocorre por meio da integralização na constituição ou aumento de capital com a produção dos seus efeitos de modo imediato, servindo, portanto, não apenas para fins de planejamento sucessório, mas também, na mesma medida, para a organização do patrimônio em vida.

Uma das principais vantagens atribuídas às holdings familiares é a maximização da eficiência tributária na gestão do patrimônio familiar.

Esta economia da carga tributária se dá em diversos aspectos – desde a imunidade do ITBI na transmissão de imóveis para integralização de capital em pessoas jurídicas aos métodos de avaliação dos bens para fins de tributação (os bens partilháveis em caso de falecimento passam a ser as quotas ou ações da holding e não os bens individualmente considerados). Além disso, em caso de o patrimônio ser gerador de receita, a distribuição dos lucros se dá na forma de dividendos (não tributáveis), aproveitando, de resto, o regime de tributação mais favorável às pessoas jurídicas. A repercussão, portanto, se dá na base de cálculo do ITCMD, ITBI e imposto de renda (inclusive sobre ganho de capital).

Ao integralizar bens na sociedade empresária, o objetivo é organizar a sucessão, sendo que as cláusulas que determinam a divisão do patrimônio têm que respeitar as legítimas, inserindo a participação societária de cada um dos herdeiros.

Desse modo, a transmissão do patrimônio é feita com a execução do contrato social, não sendo mais atribuído ao fisco estabelecer o valor venal dos bens na incidência de tributos, sendo a base de cálculo, a partir de então, amparada por um laudo de mensuração do ativo ou da rentabilidade futura.

Ao se constituir uma holding, se poderá escolher entre as modalidades (de holding) pura ou mista.

As holdings, originariamente, são empresas que visam deter participações societárias em outras sociedades de interesse, gerindo e administrando os seus negócios. A holding pura é aquela que servirá tão somente para a gestão e proteção do património familiar, não exercendo qualquer tipo de atividade operacional; já a holding mista é aquela que possui um objetivo operacional, isto é, além da proteção patrimonial, ela também exercerá uma atividade empresarial.

Muito se fala sobre as vantagens na constituição de holdings familiares, porém, caso não seja bem estruturada, com um planejamento adequado que leve em consideração as particularidades de cada entidade familiar e os benefícios que se pretende alcançar, a gestão da sociedade familiar poderá ser comprometida.

Em razão disso, importa chamar atenção para o que disciplina a Lei Complementar nº 104/2001, que adicionou ao artigo 116, do CTN, o parágrafo único com a seguinte redação:

Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos:

  1. – tratando-se de situação de fato, desde o momento em que o se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios;
  2. – tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável.

Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. (Incluído pela Lcp nº 104, de 2001) – grifou-se.

Trazendo a previsão para a aplicação prática, isso significa que, caso haja qualquer indício de que a holding familiar foi constituída com o único propósito de redução da carga tributária, a autoridade administrativa poderá considerar ter havido a simulação do fato gerador do tributo e desconstituir a pessoa jurídica e todos os atos ou negócios jurídicos que dela decorreram.

Mas caberá à administração tributária comprovar, mesmo havendo a existência de indícios e presunções, que existe, efetivamente, a prática de atos simulados, para só então descaracterizar o ato e, ao final, constituir os créditos tributários de acordo com o real negócio demonstrado.

De todo o modo, deve ser avaliado cada caso de maneira individualizada, a fim de se identificar a hipótese que melhor se enquadra à realidade e às particularidades dos cenários que se apresentam para, somente assim, elaborar o planejamento sucessório visando à melhor forma de resguardar os interesses dos envolvidos.

O certo é que estruturas jurídicas como as sociedades holding podem trazer diversos benefícios aos seus instituidores, desde a organização sucessória, à economia tributária e, de modo geral, uma melhor distribuição do patrimônio, prevenindo litígios e despesas desnecessárias, devendo-se, no entanto, ter atenção no momento da sua constituição de modo a alcançar, efetivamente, estes benefícios ao máximo.

Júlia Farina Dalpiaz integra a área de Direito Tributário do escritório Cesar Peres Dulac Müller Advogados (CPDMA), com atuação no RS e SP.

VÍNCULO EMPREGATÍCIO
A condenação da Uber e a nova face da subordinação no Direito do Trabalho

Por Lara Fernanda de Oliveira Prado

A recente condenação da Uber em ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) trouxe à tona questões cruciais sobre a natureza da relação de trabalho nesta era de gig economy. O cerne da controvérsia reside nos cinco elementos fático-jurídicos que definem a relação de emprego no Brasil, tendo em vista que a ausência de qualquer um desses elementos exclui a configuração do vínculo empregatício.

De acordo com a inteligência dos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), uma relação de emprego existe quando são comprovadas a não eventualidade dos serviços prestados, a pessoalidade do trabalhador contratado, a onerosidade e a subordinação jurídica. Desta feita, o ponto mais importante deste debate é o preenchimento, ou não, desse último requisito na relação dos motoristas com a empresa.

Conforme estabelecido pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), para que a subordinação seja configurada, é necessária a presença de todos os componentes do poder hierárquico do empregador: os poderes diretivos, fiscalizatório, regulamentar e disciplinar. Sem a convergência concreta de todos, não há subordinação jurídica e, por conseguinte, relação de emprego. Portanto, ao analisar o caso da Uber, é preciso ponderar se os meios telemáticos utilizados são realmente capazes de controlar e dirigir a prestação de serviços.

O impasse da demanda tem início com as profundas transformações ocorridas em meio à globalização, reestruturação do sistema produtivo e revolução tecnológica, que desafiam a clareza do conceito em debate, outrora bem definido. Na época do surgimento do Direito do Trabalho (século da Revolução Industrial), a subordinação era facilmente identificável, haja vista que a supervisão direta dos trabalhadores era mais palpável. Acontece que, num mundo em constante transmutação das formas de trabalho, a objetividade na caracterização desse elemento precisa ser reavaliada.

Embora as relações de trabalho tenham evoluído e novas modalidades tenham surgido, essas não foram acompanhadas de regulamentação específica, de modo que, diante de tal lacuna, a questão em tela permanece altamente controversa e sujeita a debates acalorados.

Nesse ínterim, alguns tribunais entendem que a Uber não exerce uma subordinação plena sobre seus motoristas, enquanto outros sustentam o contrário. Porém, é necessário frisar que a competência para regulamentar a contenda é do Poder Legislativo. Aliás, o TST já se manifestou nesse sentido: ‘‘As novas formas de trabalho devem ser reguladas por lei própria e, enquanto o legislador não a edita, não pode o julgador aplicar indiscriminadamente o padrão da relação de emprego’’.

Plataforma impõe os preços

Fato é que o trabalho por meio de plataformas digitais é uma realidade singular, que mescla características tanto do trabalho autônomo quanto de uma relação, em certa medida, ‘‘subordinada’’. Uma defesa sólida para o reconhecimento de vínculo reside na imposição unilateral de preços pela plataforma, o que impacta diretamente na precificação do serviço, atribuição tradicionalmente do próprio trabalhador no trabalho autônomo.

Entretanto, outros aspectos da subordinação não se apresentam claramente definidos a ponto de configurar uma relação empregatícia, como a questão da fiscalização. Argumenta-se que o motorista que atua na plataforma possui autonomia para determinar quando estará disponível para prestar o serviço de transporte, o que leva à tese do ‘‘trabalho exercido pela plataforma tecnológica e não para ela’’.

Surge, então, duas indagações cruciais: o controle exercido pela empresa, como o rastreamento das rotas e a avaliação da prestação de serviço pelo passageiro, está direcionado primariamente à fiscalização do motorista ou à proteção do consumidor? As sanções, como a atribuição de uma baixa nota no aplicativo e, em último caso, a exclusão do motorista da plataforma, visam assegurar a qualidade do serviço ao consumidor final ou necessariamente implicam subordinação?

É que a verdadeira subordinação demanda um controle mais efetivo e restritivo por parte do empregador, algo que a Uber parece não impor. Isso porque a empresa proporciona aos motoristas uma notável liberdade e maior flexibilidade se comparada ao tradicional regime da CLT, em que o requisito é nitidamente delineado, acompanhado de uma inspeção eficaz e direta.

Estes são pontos e contrapontos que suscitam incertezas quanto à determinação da natureza da relação, e ressaltam a indispensabilidade da regulamentação para lidar com as nuances dessas novas formas de trabalho. A ausência de legislação específica torna qualquer reconhecimento de vínculo empregatício, nesses casos, passível de questionamentos quanto à sua legalidade, dada a vedação à interpretação extensiva na aplicação de sanções.

Embora a subordinação possua um conceito relativamente aberto, este não deve ser demasiadamente expandido pelo Judiciário para abranger formas de emprego não previstas anteriormente. Nesse sentido, a sentença proferida em primeira instância extrapolou os limites de um conceito sequer consolidado nos tribunais superiores e em análise na academia, de modo que uma única decisão judicial pode ter um impacto desmedido nesse cenário em evolução.

Em conclusão, o caso Uber ilustra a necessidade premente de regulamentação para abordar as complexidades das relações de trabalho na era dos aplicativos. Enquanto a subordinação permanece uma questão em aberto, a resposta adequada não é a imposição de vínculos empregatícios através de decisões judiciais, mas sim a formulação de leis específicas que abordem essa nova realidade laboral de forma justa e equitativa. É hora de o Poder Legislativo assumir a responsabilidade e fornecer orientações claras.

Lara Fernanda de Oliveira Prado é sócia da área cível e trabalhista no escritório Diamantino Advogados Associados.

DIREITO DE OPOSIÇÃO
Contribuição assistencial para todos: avanço ou retrocesso?

Por Daniela Minervina Silva da Paz

Reprodução Sinfae

Recentemente, o Brasil se viu envolto em intensos debates sobre as contribuições assistenciais, um tema amplamente discutido após uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 11 de setembro de 2023, no âmbito do Tema 935 da Repercussão Geral, abrindo espaço para reflexões sobre avanços e retrocessos no cenário sindical do país.

Nessa decisão, o STF deliberou pela constitucionalidade da cobrança de contribuições assistenciais de trabalhadores, independentemente de estarem filiados a sindicatos, desde que seja assegurado o direito de oposição. O objetivo dessa contribuição é custear as despesas dos sindicatos com a negociação coletiva, incluindo assembleias e greves.

A fundamentação para tal decisão reside no entendimento de que os benefícios provenientes de acordos e convenções coletivas devem beneficiar todos os trabalhadores, independentemente de sua filiação, em virtude da ampla representatividade dos sindicatos, um direito garantido no artigo 8º da Constituição Federal.

No entanto, essa determinação do STF vem gerando debates acalorados e repercussões significativas no financiamento das instituições sindicais. Isso porque, anteriormente, a Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017) considerou inconstitucional a chamada ‘‘contribuição sindical obrigatória’’, reduzindo substancialmente o financiamento dos sindicatos. Já a recente decisão do STF, alinhada aos argumentos apresentados pelos ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, reconhece a constitucionalidade da cobrança de contribuições assistenciais por meio de acordos ou convenções coletivas para todos os trabalhadores.

Isso levanta preocupações legítimas sobre a liberdade individual dos trabalhadores. Ao invés de garantir a escolha pessoal de se associar ou não a um sindicato, essa decisão impõe uma obrigação financeira a todos, independentemente de seu consentimento, embora tenha como salvaguarda o ‘‘direito de oposição’’. Vale destacar que a contribuição sindical obrigatória, antes da Reforma Trabalhista, representava uma fonte significativa de financiamento para os sindicatos, com o Ministério da Economia relatando arrecadações de cerca de R$ 3,5 bilhões em 2016. Após a eliminação dessa obrigatoriedade, houve uma queda substancial nesse valor, com relatos de declínios de até 90% nas receitas sindicais.

A falta de regulamentação clara sobre como exercer esse direito de oposição pode criar um ambiente propício para abusos e controvérsias, como no caso de trabalhadores que não desejam pagar, mas enfrentam obstáculos burocráticos, taxas para exercer a oposição ou prazos rigorosos. Uma sugestão relevante seria modernizar o processo de oposição, permitindo o exercício desse direito por meios eletrônicos.

Num mundo cada vez mais digital, seria sensato permitir que os trabalhadores exerçam seu direito de oposição por meio eletrônico, como por e-mail. Isso eliminaria a necessidade de deslocamento físico até o sindicato para apresentar uma carta de oposição, tornando o processo mais acessível e eficaz.

Este é um dilema que transcende o aspecto legal e alcança questões de princípio: até que ponto o Estado e os sindicatos podem impor obrigações financeiras aos trabalhadores numa sociedade que valoriza a liberdade de escolha?

As discussões sobre as contribuições assistenciais e a ponte que liga a liberdade individual e a sustentabilidade sindical estão apenas no começo e poderão render muitos conflitos. O tema aqui abordado constitui o marco de um capítulo que vai moldar profundamente as relações no cenário sindical do país nos próximos anos.

Daniele Minervina Silva da Paz é sócia da área trabalhista no escritório Diamantino Advogados Associados (DAA)