QUINHENTISMO INDÍGENA
A visita de Macron e a hipoteca do Brasil ao neocolonialismo dos direitos humanos e sociais

Por Felix Soibelman

Ao lado de Macron, Lula fez o dever de casa encomendado pelo Primeiro Mundo, sob o guarda-chuva dos direitos humanos que tanto limitam a teoria política para disfarçar uma dimensão gigantesca de consequências.

Disse ele que 14% ainda é pouco, que os índios devem receber muito mais para poderem revivescer sua cultura. Macron ficou satisfeitíssimo pelo bom resultado que obteve ao prostituir a Ecologia e o respeito aos povos originários para os interesses do agronegócio francês, ameaçado pelo desenvolvimento brasileiro e o acordo do Mercosul.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

No lugar de colonizar o Brasil as Nações do hemisfério norte, colonizam o Brasil por meio dos direitos humanos e sociais que implicam estancar o desenvolvimento e favorecer a manutenção de hegemonias produtivas do primeiro mundo.

O mais paradoxal é que eles, os europeus, foram os ases da colonização, escravização, usurpação, genocídios, mas essa enganosa nova consciência é cobrada de nós como se fossem os brasileiros nativos que houvessem cometido crimes contra tribos originárias, ao passo que nos regalam esmolas compensatórias, como fundos para a preservação da Amazônia etc.

Poderíamos lembrar do número de colônias francesas no Oriente, na África etc., mas basta a recordar a revolução dos escravos, no Haiti, numa contenda que se estendeu até o Império napoleônico, quando os insurretos foram tratados com extrema violência, ainda dando conta H.G. Wells, em sua “Breve HIstória do Mundo”, de como Napoleão, o ditador francês, apontado amiúde como quem levou à Europa a disseminação dos ideais revolucionários de liberdade, igualdade e fraternidade, legando profunda transformação com seu Código Civil, houve, no entanto, de restabelecer a escravidão por lá…

Entendamos de uma vez como as falas melífluas de Lula trafegam entre o mau-caratismo e a estupidez. Os índios não têm 14% dos territórios, na verdade eles não têm nada. São terras devolutas da União onde não podem desenvolver coisa alguma. Chegam a ser multados se desenvolverem um extrativismo e muito menos podem se tornar uma potência do agronegócio, fazer convênios com empresas, explorar a terra de verdade, o que seria um triunfo econômico para o Brasil.

O que Macron quis aqui foi garantir uma fatia de subdesenvolvimento do Brasil mediante os direitos humanos das tribos originárias, bela desculpa que faz do Brasil um proxy da sua mea culpa colonialista, do mesmo modo que por meio do apoio aos palestinos situando israelenses como opressores tentam zerar a culpa da consciência europeia pelo Holocausto.

O que pretendem? É simples, é o que os antropólogos denominam como quinhentismo, ou seja, a revitalização da cultura indígena se daria por remeter as tribos para o mesmo estado em que se encontravam no ano do descobrimento, 1500. Coisa de idiotas, de canalhas, ou os dois? É algo bem análogo à célebre frase Joãosinho Trinta quando disse que “pobre gosta de luxo, intelectual é que gosta de miséria”.

Nas universidades é onde encontramos solo fértil para essa miopia do arcaísmo confundido com preservação da tradição. Seria como se os cristãos tivessem de ser enviados de volta às catacumbas originárias, nos esgotos de Roma, ou os judeus ao deserto com uma economia tendo em camelos e cabras por moeda como condição de manter sua cosmologia e suas crenças.

Neste contexto deformador temos o Parque do Xingu, do tamanho da Bélgica (28.000km²), destinado a esparsos dez mil índios, ainda condenados a permanecer na idade quinhentista como se isso fosse virtude, e assim o Brasil todo entrega de bandeja uma terra imensa para o atavismo, quando os índios, como brasileiros que são, poderiam dar grande contribuição ao país em tributos e divisas desenvolvendo aquelas terras. no lugar dessa prosperidade nem mesmo saneamento básico e eletricidade possuem.

Emblemático, a este respeito, é um artigo sobre o impacto ambiental da hidrelétrica de Belo Monte, no referido parque do Xingu, publicado no G1 em 15/08/2018 por Amelia Gonzalez, no qual se pode ler o seguinte:

“Os indígenas se viram muito bem no escuro quando estão em suas aldeias. Acendem tochas, andam em grupos, dormem cedo, acordam cedo. Para cozinhar, usam o fogo. Banham-se nos rios. Se precisam de energia, em geral pedem emprestado ao sol ou aos ventos.

Já a civilização ocidental é cada vez mais dependente de energia. Não gosta de escuridão, fica até tarde em computadores, inventou fornos mais rápidos que precisam ser conectados a tomadas, elevadores e, em geral, diverte-se e se relaxa em banhos de chuveiro demorados, com água bem quente. Chuveiros elétricos. Mas, quando é preciso fazer obras para obter eletricidade a partir do movimento das águas dos rios, quem está no caminho e é obrigado a ceder seus territórios são os índios.”

Vejam que estereótipo estrábico. Os índios, para a jornalista, devem permanecer na idade paleolítica, quando o homem conquistou o fogo, porque tal estado faz parte de sua cultura, que deve ser estabilizada no que teria sido entre 4 milhões a 8000 a. C. faltou pouco para ela dizer que ainda deveriam caçar mamutes até hoje… De permeio enxerga nos índios o arquétipo do bom selvagem de Rosseau, do qual nos distanciamos em nossa degeneração, precisando de chuveiros quentes, computadores etc. Gostaria muito de saber da jornalista o que ela diria se faltasse eletricidade no hospital em que sua mãe estivesse numa UTI ou no meio de uma operação para salvar-lhe a vida.

Pois bem, a usina, com o condão de beneficiar com energia elétrica dezenas de milhões de brasileiros, provocou, no entanto, grandíssimos danos ambientais e foi defendida por Lula em 2010. As empreiteiras ainda estiveram investigadas na Lava a Jato, o que dá margem a desconfiar dos motivos do PT em sua defesa.  Arrasou com a cidade de Altamira e afetou um sem-número de populações ribeirinhas que tiravam do rio seu sustento, sendo o ocorrido considerado um dos maiores desastres ecológicos do mundo.

Imaginemos, porém, se tal desastre houvesse sucedido num cenário de autonomia total dos índios para a exploração ilimitada da terra sem controles nacionais, como resultado de uma parceria entre as tribos e as empreiteiras. A hipótese nos mostra que deve haver um controle federal nos casos de interesse geral, e danos ambientais poderiam ser rigidamente contornados, sem, contudo, privar o Brasil desse benefício, por causa de umas quantas poucas pessoas.

Uma autonomia completa, assim como uma dependência que conserve os índios num estado primitivo, são extremos indesejáveis.

Deveriam perguntar aos índios o que eles preferiam: se continuar a disparar flechas em peixes para comer enquanto o homem ocidental lança sondas no espaço além do mundo sublunar, ou se quereriam ter fartos royalties de Belo Monte.

Há tribos, e não sei se este é o caso dos Juruna, que repudiam, de fato, o desenvolvimento material da civilização ocidental, mas a marcha da história não pode ser subjugada ou revertida e muito menos a ser herdada de outras gerações a culpa histórica, cabendo invocar, também, o utilitarismo de Mill e Benthan, como felicidade do maior número, num eudemonismo que tem, reconheço, alguns comprometimentos,  mas que pode ser equacionado de modo a não violar o direito de minorias e nem produzir o oposto, que é sacrificar a maioria.

A irreversibilidade da história pode ser mitigada pela recuperação parcial das condições de sobrevivência de uma cultura, mas jamais constituir um absoluto que, como tal, seria ficcional, e nos conduziria ao retorno a Adão como único dono de terras, se quiséssemos abolir da corrente do tempo todas as usurpações e apropriações que formaram os Estados.

Aqui, no entanto, entra em linha de conta o conceito de povo. Não é incontroversa a nomenclatura como “povos indígenas”, havendo quem, como eu, considere os índios como tribos integrantes do povo brasileiro, dado haver um só povo que concentra a identidade nacional, num território sobre o qual reina o ordenamento jurídico, formando o Estado, que tem a soberania entendida como poder ao qual nenhum  outro poder se encima.

O curso da história do Brasil foi compartilhado com os índios, assim como nós, judeus brasileiros, somos integrados perfeitamente a esta identidade, não apenas pelo ius solis ou ius sanguinis, mas porque tomamos da idiossincrasia formada a partir desse maciço cultural grande parte de nosso modo pessoal de ser, pensar e sentir. Os índios não precisam de uma autonomia nacional a que corresponda uma forma estatal distinta, quem quer isso é quem deseja que o Brasil seja esfacelado para que não cresça.

O discurso da autonomia cultural é uma espécie de negativo fotográfico da autonomia multinacional dentro de um só país, verdadeiro objetivo desse falso discurso de resgate cultural que serve só de fachada aos propósitos desagregadores da identidade brasileira abrindo caminho para a penetração sorrateira dos interesses estrangeiros.

A partir desse enfoque começamos a compreender a quem servia o ódio orquestrado pela imprensa europeia contra Bolsonaro. O presidente Bolsonaro lutava contra esse neocolonialismo terceirizado para governos locais, buscando que o Brasil explorasse ao máximo suas riquezas, batendo de frente com o establishment mundial corroído pela esquerda. É impressionante ver como essa serve de hospedeira para os objetivos de grandes capitais internacionais, por isto denominados como globalistas.

As identidades nacionais sempre foram nevrálgicas para a direita, e apelidadas de fascismo pela esquerda, que desde a internacional proletária preconizada por Marx deixou de divisar a necessidade de valorização nacional para impedir a apropriação de riquezas por espoliadores.

Nietzsche, em seu anticristianismo virulento e ressentido, dizia que o Papa recomendava o cristianismo ao imperador da China como meio de submissão; sem endossar de modo algum a loucura nietzscheana, podemos dizer, de modo análogo, que do mesmo modo o grande capital globalista recomenda o esquerdismo contra a índole nacional como meio de apropriação, e se encontrarem de permeio, no caminho, uma Suprema Corte como a nossa, ávida de se intrometer em tudo sem entender de nada, tal é o baixo coeficiente cultural de seus membros, capaz de sucumbir ao mais superficial discurso do “bom mocismo” contra o fascismo imaginário, ainda possuindo um acrobata da comédia tirânica como Moraes, melhor para seus objetivos.

Se quiserem medir o grau de cooptação e cegueira da inteligência de uma imprensa, basta olhar para a França e o modo como seus jornais paparicam Lula.  Não poderia ser diferente com quem parece ser o vendilhão messiânico ideal que a França veio buscar aqui.

Félix Soibelman é advogado no Rio de Janeiro

DEMARCAÇÕES DE TERRAS
STF contemplou a ‘‘teoria do indigenato”

Por Lívia Bíscaro de Carvalho

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Além de afastar a tese do Marco Temporal para demarcação de terras indígenas, o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou a tese de repercussão geral com 13 itens para o Tema 1.031, o que terá efeito vinculante a orientar o julgamento de outros processos.

A decisão do STF alinha-se à ‘‘teoria do indigenato’’, que sustenta o direito originário dos povos indígenas às terras que ocupavam antes da formação do estado brasileiro. Seu oposto é a ‘‘teoria do fato indígena’’, em que a data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988, é a referência para o reconhecimento das terras ocupadas – e serve de sustentação para o Marco Temporal.

Os debates não são novos. A tese do ‘‘fato indígena’’ surgiu em 2008 com o parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) sobre a demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima, quando esse critério foi usado – o documento foi redigido pelo vice-procurador da República Roberto Gurgel. Em 2009, o STF decidiu que os indígenas tinham direito à terra em disputa, pois viviam nela na data da promulgação da Constituição.

Na época, o STF definiu uma série de parâmetros para a demarcação dos territórios indígenas brasileiros. Em 2017, a publicação do Parecer Normativo 1/2017, publicado pela AGU, também abriu brechas para aplicação da tese do Marco Temporal ao determinar a adoção de uma série de restrições às demarcações das terras indígenas – chamadas ‘‘salvaguardas institucionais’’ no caso Raposa Serra do Sol, tornando-as mais tarde sem efeito vinculante.

O fato é que a presença dos povos indígenas no território brasileiro existe desde antes da chegada dos portugueses ao país e mesmo as constituições anteriores à de 1988 cuidaram de assegurar a posse de áreas em que estivessem localizados com caráter permanente.

Inclusive, pela ‘‘teoria do indigenato’’ a ocupação de terras ultrapassa tão somente a habitação para incluir espaços de relevância para cultura e exploração, tal como está disposto atualmente no artigo 231 da Constituição Federal. Em contraponto, a teoria do ‘‘fato indígena’’ considera o direito à terra uma concessão do estado, decorrente da ocupação, a partir da promulgação da Constituição de 1988. Ou seja, o texto constitucional de 1988 não estabeleceu limite temporal para o início da ocupação tradicional, bem como o direito dos indígenas sobre suas terras não depende de qualquer legitimação.

Diante deste impasse, o STF afastou a tese do ‘‘fato indígena’’ por 9 votos a 2, julgando o Marco Temporal inconstitucional. No entanto, a indenização, que até então só contemplava as benfeitorias, agora foi ampliada para terra nua se demonstrada a aquisição de boa-fé, inclusive com direito de regresso da União contra o ente federativo que titulou a área.

Na prática, é louvável que se reconheça o erro do estado e, consequentemente, os direitos daqueles que estão na posse e na exploração da área por terem adquirido títulos presumivelmente legítimos. Afinal, reconhecer a terra como pública não é motivo para deixar de compensar financeiramente aquele que investiu recursos baseados em ato jurídico revestido de boa-fé. O mesmo raciocínio, inclusive, deve ser adotado para faixa de fronteira.

De todo modo, ainda há incertezas se a indenização terá apuração justa e em prazo razoável a fim de que essa suposta compensação pela perda do bem não se torne mais uma longa disputa como em alguns tipos de desapropriação.

As discussões ultrapassam os limites do Judiciário. No final de 2023, o Congresso Nacional promulgou a Lei 14.701/23, que restabeleceu o Marco Temporal com a derrubada do veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a este dispositivo. Ocorre que o Congresso não pode restabelecer algo que o Supremo julgou inconstitucional – e uma série de ações contra a nova lei aponta isso para a Corte. Como se vê, é um debate que está longe de terminar.

Lívia Bíscaro Carvalho é coordenadora da área cível no escritório Diamantino Advogados Associados

RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
A importância de analisar a posição de dependência econômica das empresas

Por Lara Fernanda de Oliveira Prado

No intricado cenário das relações contratuais empresariais brasileiras, surge uma questão que transcende a mera formalidade dos acordos: a dependência econômica.

A reflexão sobre esse tema ganhou destaque à luz de um processo judicial recente, com o julgamento do Recurso Especial 1.989.291-SP, que gerou debates sobre a paridade contratual e o exercício abusivo de posição dominante. Este conflito evidenciou a complexidade das relações comerciais entre uma empresa multinacional e um representante brasileiro.

O cerne da polêmica está na validade de uma cláusula de limitação de responsabilidade, que foi objeto de análise da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

A decisão do STJ, ao validar a cláusula de limitação de responsabilidade em favor da multinacional, destaca a presunção de paridade nas relações contratuais comerciais. Contudo, é imperativo questionar se esta presunção é consistente com a realidade das relações de poder subjacentes a tais contratos.

Avaliação da dependência econômica

Nesta relação, o distribuidor brasileiro viu-se numa posição de dependência econômica da multinacional, o que comprometeu significativamente a sua capacidade de negociação. A multinacional, detentora de maior poder econômico e de mercado, aproveitando a sua supremacia contratual, impôs cláusulas desfavoráveis ​​cujo único objetivo era aumentar abusivamente os seus lucros em detrimento do distribuidor.

Surge então a necessidade de repensar a liberdade contratual ilimitada nos contratos comerciais, de abordar situações em que uma das partes se encontra em clara desvantagem, de considerar a presença de assimetrias de poder e vulnerabilidades que as prejudicam excessivamente.

A dependência econômica contratual não é uma mera abstração jurídica, é uma realidade vivida por diversas empresas que se encontram numa posição de inferioridade e sem poder de negociação, face aos gigantes corporativos. O exercício abusivo de uma posição dominante pode mesmo conduzir a concorrência desleal e dificuldades financeiras.

Dessa forma, a admissão irrestrita de cláusulas limitantes de responsabilidade incentiva a sua maior elaboração nos contratos societários. Acontece que o reforço desta cultura contratual é problemático, pois impede que a parte vulnerável seja compensada pela verdadeira magnitude do dano que lhe foi causado.

Neste contexto, é importante considerar a teoria do terceiro contrato, introduzida pela doutrina italiana, que reconhece a existência de uma categoria contratual intermediária entre o contrato clássico e o contrato de consumo. Esta teoria aplica-se especialmente às relações entre empresas, nas quais uma das partes se encontra numa posição fraca em relação à outra.

Sob esse ângulo, haveria uma intervenção judicial criteriosa, com delicado equilíbrio entre a proteção dos contratantes mais vulneráveis ​​e a preservação do princípio da autonomia contratual. Diante disso, destaca-se a importância de identificar no caso específico a real dependência econômica de uma das partes e verificar se houve abuso derivado desta situação.

Assim, o reconhecimento do terceiro contrato como uma categoria contratual distinta abre caminho para uma abordagem mais equilibrada das relações comerciais. Isto porque os extremos estabelecidos no domínio do direito contratual não abrangem todas as variedades contratuais que, pelas suas características específicas, não se enquadram neste binário. É preciso buscar uma regulamentação que leve em conta as particularidades das relações.

Enquanto os países europeus buscam soluções para enfrentar a dependência econômica contratual, aproximando-a do abuso de posição dominante no contexto da legislação antitruste ou da aplicação de princípios do direito do consumidor, o Brasil carece de estrutura para enfrentar esse problema.

Vale destacar que a presunção de paridade estabelecida pelo Código Civil Brasileiro é relativa (art. 421-A.), podendo ser descartada em função de elementos específicos que justificam o desequilíbrio entre as partes. No entanto, a interpretação desta presunção e a regulação da liberdade contratual deixam margem para divergências entre os tribunais. Enquanto alguns seguem uma abordagem mais cautelosa, utilizando princípios do Código de Defesa do Consumidor e do Código de Processo Civil, outros adotam uma postura mais liberal, priorizando a autonomia da vontade das partes sem restrições, conforme decidiu o STJ no REsp 1.989.291.

Esta reflexão torna-se relevante para empresas que buscam segurança jurídica em suas transações comerciais. Portanto, é fundamental promover um diálogo mais amplo e detalhado sobre a dependência econômica nas relações contratuais, considerando as suas implicações no ambiente empresarial. Só assim será possível criar soluções jurídicas mais equitativas e adaptadas às complexidades destas interações comerciais.

Lara Fernanda de Oliveira Prado é sócia da área cível e trabalhista no escritório Diamantino Advogados Associados

Painel de Riscos divulgou o desfecho do julgamento do STJ

JUDICIALIZAÇÃO
Negativas de planos fazem mal à saúde de pacientes e empresas

Por Maria Letícia Mesquita

Diamantino Advogados Associados

Quando se trata de planos e seguro saúde, uma das frequentes insatisfações de seus beneficiários são as negativas de serviço. O cerne da dúvida permeia sobre o limite das negativas por parte de tais empresas. Afinal, as recusas são abusivas?

Em recente decisão, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) condenou um convênio privado a garantir a uma beneficiária cobertura domiciliar para tratamento medicamentoso de bipolaridade. A decisão se pautou principalmente na Lei 14.454/2022, que introduziu o parágrafo 13 no artigo 10 da Lei 9.656/98, ao afirmar, categoricamente, que ‘‘cabe ao médico escolhido pelo beneficiário estabelecer qual o método e os materiais mais adequados para o tratamento da condição’’.

No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem fixado, desde 2022, que o rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) tem caráter exemplificativo. Apesar de os magistrados terem que analisar a particularidade de cada caso, a postura demostra cada vez mais a inclinação do Judiciário a adotar entendimentos pró-consumidor na matéria.

Por fim, demonstrando que os planos e seguradoras de saúde não conseguirão se eximir de suas obrigações, o STJ determinou (REsp 1.945.959) que uma empresa fosse compelida a ressarcir o Estado de Santa Catarina por atendimento não emergencial determinado judicialmente, via SUS, de paciente segurado. Tal medida se baseia no seguinte raciocínio: rejeitar o pedido do ente público na ação regressiva proposta culminaria no ‘‘patrocínio Estatal da atividade privada’’, conforme apontado pelo ministro Gilmar Mendes no RE 597.064/RJ.

Como se as excessivas negativas administrativas já não fossem o suficiente, o problema ganha novos contornos a partir de uma nova e ousada alternativa dos empresários do ramo: o não cumprimento de decisões judiciais. Em apenas um plano, um dos maiores do mercado, estima-se que apenas nos últimos seis meses de 2023 a operadora tenha descumprido aproximadamente uma centena de decisões judiciais em caráter de urgência – média de uma desobediência a cada dois dias.

Sobre a argumentação de que está apenas exercendo seu direito à ampla defesa, a seguradora agora é alvo de inquérito instaurado pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP) para apurar a suposta conduta irregular e abusiva praticada pelo grupo.

Em um país em que o acesso à saúde privada através de empresas do ramo já é realidade para mais de 22% da população, segundo dados da ANS, e a adesão a esse tipo de contrato é exponencial, ficam os questionamentos: é possível harmonizar os interesses dos clientes com a sustentabilidade financeira do negócio? Onde residirá a livre iniciativa empresarial dos ofertantes quando se há vasta judicialização da demanda em desfavor de suas negativas?

A resposta passa por uma conduta defendida por magistrados: as seguradoras poderão escolher para quais tipos de enfermidade oferecerão cobertura, mas não poderão limitar as modalidades de tratamento e intervenções médicas. Garantir uma prestação de serviço de qualidade se mostra muito palpável quando se observa que o necessário é apenas respeitar os critérios médicos e científicos estabelecidos por aqueles que já acompanham os segurados.

A consequente diminuição de judicialização de demandas se mostra benéfica tanto para consumidores quanto para as empresas, uma vez que os processos judiciais englobam não apenas o tratamento ou medicamento requerido, mas também verbas indenizatórias e custas processuais.

A quem insiste em descumprir decisões que revertem negativas abusivas negativas, cabe à ANS, junto com o Judiciário, investigar e coibir a prática com seriedade e da maneira mais ágil possível. É iminente a necessidade de garantir a que o princípio da dignidade da pessoa humana em seu acesso à saúde coexista em harmonia e bom funcionamento com o aspecto financeiro almejado pelas empresas do ramo.

Maria Letícia Mesquita é sócia da área cível no escritório Diamantino Advogados Associados.

REGULAMENTAÇÃO
IPVA na reforma tributária: o diabo mora nos detalhes

Por Vitor Fantaguci Benvenuti

Com a recente aprovação da Reforma Tributária (Emenda Constitucional 132/2023), o sistema tributário nacional já passou e ainda passará por mudanças significativas. Em relação ao Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), o ponto que mais chamou a atenção da mídia, certamente, foi a nova tributação de jatinhos e iates.

Contudo, apesar do apelo que envolve o tema, há questões que merecem ser acompanhadas de perto, especialmente em razão da necessidade de regulamentação específica de cada unidade federativa. Afinal, diz o ditado, ‘‘o diabo mora nos detalhes’’.

Em primeiro lugar, de fato, a reforma tributária passou a prever a competência dos Estados para a tributação de veículos aquáticos e aéreos.

Em mais de uma oportunidade, o STF decidiu que o texto anterior da Constituição não permitia que a cobrança de IPVA sobre embarcações e aeronaves. Então, a ideia da reforma foi superar esse impedimento, prevendo expressamente tal incidência.

Porém, a depender da regulamentação específica de cada Estado, pode haver discussão a respeito da constitucionalidade de leis estaduais que já previam a cobrança de IPVA sobre embarcações e aeronaves, antes mesmo da reforma – portanto, de forma indevida.

Isso porque o STF entende que a constitucionalidade das leis deve ser verificada com base no texto constitucional vigente à época da sua edição, ou seja, não se admite o fenômeno da constitucionalidade superveniente.

Se a lei foi editada com base no texto anterior da Constituição e, naquele momento, a tributação não era possível, a norma será inconstitucional. A Reforma Tributária, por si só, não irá validar essa lei que nasceu inconstitucional. Neste caso, deverá ser editada uma nova lei estadual, agora sob a vigência do texto da reforma, que passou a permitir a tributação.

Outro ponto que exige atenção é a previsão de que o IPVA poderá ter alíquotas diferenciadas em função do ‘‘impacto ambiental’’, possibilitando, em tese, a majoração das alíquotas de carros movidos a combustão, ou redução de alíquotas para carros elétricos.

Porém, é importante observar que os carros elétricos são uma realidade apenas para a população de maior poder aquisitivo, inclusive em razão do custo elevado desses veículos.

Na prática, a população de baixa renda, que muitas vezes depende dos seus carros movidos a combustão para gerar a renda da sua subsistência, não tem sequer condições financeiras de comprar um carro elétrico. Temos, então, uma inversão de propósitos: uma reforma que busca justiça fiscal, mas autoriza um IPVA mais oneroso para a população de menor renda.

Não bastasse isso, a reforma tributária também previu a possibilidade de alíquotas diferenciadas em função ‘‘do valor’’, com o objetivo de autorizar a tributação maior de veículos mais caros.

Falta saber qual será a altura desta régua. Tendo em vista que até mesmo os carros populares tiveram um enorme aumento de preço recente, resta torcer pelo bom senso das Assembleias Legislativas Estaduais na fixação do valor dos veículos que autorizará, eventualmente, a incidência de alíquotas maiores.

Com tantas indefinições, o cenário que se descortinou exige muita cautela. Afinal, tudo indica que a almejada justiça tributária, perseguida há mais de 30 anos e prometida como espinha-dorsal do texto aprovado no Congresso Nacional, será resumida no aumento da carga tributária para toda a população.

Vitor Fantaguci Benvenuti é advogado da área tributária no escritório Diamantino Advogados Associados (DAA)